INTRODUÇÃO: DIREITO A UMA HABITAÇÃO CONDIGNA

O direito à habitação em Portugal está consagrado no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa e, desde 2019, na lei de bases da habitação, que destaca o direito à habitação como um direito fundamental de todos os cidadãos e cidadãs. Contudo, no ano de 2021, foram contabilizadas em Portugal mais de 38 mil famílias a viver em situação de habitação indigna, segundo dados do Ministério das Infraestruturas e da Habitação.

Estas famílias encontram-se distribuídas por 124 concelhos, a maioria delas na região da grande Lisboa (12.728) e do grande Porto (9.927), mas também com elevados números nos concelhos de Odemira (1.744) e Portimão (1.154).

Estes dados revelam um aumento face ao número de famílias nesta situação em 2018, quando o Instituto Nacional da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) identificou 25.762 famílias como estando em situação habitacional claramente insatisfatória. No Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional, o IHRU deu nota de 327 famílias a viver em acampamentos clandestinos, 941 em bairros ilegais e 11.999 em barracas ou construções precárias. Ainda segundo dados do IHRU, sabe-se também que, desde 2018, houve um aumento de mais 11.456 novas residências ilegais, o que é mais um indicador do aumento de famílias em Portugal a viver em condições extremamente precárias.

Ainda segundo dados do IHRU, sabe-se também que, desde 2018, houve um aumento de mais 11.456 novas residências ilegais, o que é mais um indicador do aumento de famílias em Portugal a viver em condições extremamente precárias.

O direito à habitação deve ser interpretado num sentido abrangente. Providenciar habitação condigna não se trata apenas de proporcionar um espaço que sirva de abrigo, mas também um lugar onde seja possível viver em segurança, em paz e com dignidade, a base para uma vida digna e de contributo para a sociedade.

Além da legislação nacional, o direito a uma habitação adequada está ainda protegido por vários tratados de direitos humanos internacionais e regionais, que Portugal assinou e ratificou, incluindo o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a Carta Social Europeia Revista ou o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Portugal está assim vinculado a tratados internacionais que sublinham o direito à habitação como direito fundamental.

 

LEI DE BASES NÃO PROÍBE DESALOJAMENTOS FORÇADOS

A lei de bases da habitação de 2019, apesar de reconhecer o direito à habitação adequada como direito fundamental e reforçar as salvaguardas existentes contra os despejos, não acautelou as precárias e instáveis condições em que alguns dos processos de desalojamento-realojamento são efetuados. Falamos de situações em que, esgotados todas as opções prévias, e que o desalojamento é a única opção, as autarquias deveriam ter efetuado consultas genuínas com todas as pessoas afetadas e explorado todas as alternativas viáveis e não o fizeram; casos em que deveria ter sido garantido que fossem fornecidas informações completas, precisas e atempadas, bem como que fossem ouvidas e tidas em consideração todas as preocupações das partes afetadas e isso não sucedeu.

Assim, e para que as pessoas em situação de vulnerabilidade habitacional não tenham de viver com um constante e fundado receio de eventual desalojamento forçado que não respeite os seus direitos, é crucial que a Lei de Bases da Habitação salvaguarde os direitos dos moradores e que os proteja contra a precariedade e vulnerabilidade de um eventual desalojamento forçado. Nesse sentido, é importante garantir que haja uma comunicação clara e eficaz com as populações em causa e que qualquer ação seja feita mediante aviso prévio, adequado e razoável, providenciando recursos legais e assistência jurídica quando necessário. Ademais, em situação de desalojamento forçado, deve ser imediatamente fornecido alojamento alternativo e adequado às necessidades de cada caso concreto.

TRABALHO DA AMNISTIA INTERNACIONAL

As fragilidades habitacionais em Portugal foram agravadas pela pandemia da COVID-19, que teve um impacto universal, mas foi especialmente desfavorável àqueles já se encontravam em situação de vulnerabilidade antes da crise pandémica. Neste sentido, a Amnistia Internacional tem vindo a alertar para o impacto significativo que a pandemia teve no respeito pelos direitos humanos, sobretudo nos direitos económicos, sociais e culturais, entre os quais se inclui o direito à habitação.

É porque todas as pessoas têm o direito a viver com dignidade, paz e segurança, que a Amnistia Internacional tem vindo a sinalizar, ao longo dos anos, e em especial durante a pandemia, o direito à habitação como um dos graves problemas que se tem verificado em Portugal e que se concretiza na violação de um dos direitos fundamentais e mais básicos da dignidade humana.

 

 

Neste contexto, em 2021, a Amnistia Internacional – Portugal realizou diversas visitas e consultas junto das populações afetadas por esta problemática, nomeadamente reunindo com associações de defesa do direito à habitação, visitando bairros informais e ouvindo as preocupações de moradores e ativistas. Foram incluídos nesta análise, entre outros, o bairro de Montemor em Loures, o bairro do Jamaica na Amora-Seixal e o (já demolido) bairro 6 de Maio na Amadora.

Através deste trabalho, pudemos constatar que:

1 – Apesar das diversas promessas de garantir uma habitação condigna a toda a população, muitas pessoas encontram-se ainda a residir em condições extremamente precárias em Portugal.

Há famílias a morar, por exemplo, em habitações autoconstruídas e em risco de ruir, muitas delas com condições de higiene extremamente precárias, sem acesso a água canalizada e onde são relatados casos de infestações de ratazanas. Estas são habitações com fraco ou nenhum isolamento térmico, muitas delas sem janelas e com poucos recursos, o que torna para estas pessoas os invernos ainda mais difíceis de suportar.

Esta é a realidade de muitos bairros informais de norte a sul do país. No contexto de crise pandémica que vivemos desde 2020, a falta de habitação condigna significa um risco de saúde acrescido para muitas pessoas. Por viverem em habitações que não permitem cumprir o isolamento ou ter cuidados básicos de higiene, em alguns casos por falta de água corrente e sobrelotação, estas famílias ficam inevitavelmente mais expostas ao vírus da COVID-19 e menos capazes de se proteger, agravando a já difícil situação em que vivem.

2 – Continuam a notar-se falhas por parte das autarquias e do Estado central em processos de realojamento, havendo casos em que o bem-estar dos moradores e os seus interesses não foram tidos em conta.

Os processos de desalojamento-realojamento são um procedimento extremamente exaustivo, quer a nível emocional quer a nível físico. Estes perturbam a vida das pessoas e das comunidades onde estão inseridas.

Quando alguém perde a sua casa, muitas vezes é também privada de um ambiente familiar, de vizinhança, de sentido de comunidade, de laços sociais e oportunidades de trabalho. Em alguns casos, o acesso à educação, saúde e outros serviços públicos pode também ser interrompido. Neste sentido, é essencial que haja por parte das autarquias uma comunicação atempada, uma avaliação do impacto na vida dos moradores e um acautelamento do menor sofrimento possível para as populações.

3 – Todavia, de acordo com os testemunhos ouvidos, este procedimento não é ainda inteiramente respeitado por todas as autarquias. Em alguns dos processos de desalojamento-realojamento analisados, os moradores queixam-se que não foi cumprido o dever de providenciar aviso prévio, com antecedência razoável, e de garantir soluções habitacionais alternativas. Assim, foi-nos relatado que, houve casos de desalojamentos e demolições realizados sem uma garantia prévia de uma nova habitação para as famílias afetadas, tendo como consequência a falta de habitação alternativa, ficando estas sem local para onde ir, muitas delas a dormir em casas de amigos e/ou familiares.

Este foi o caso, por exemplo, do já demolido bairro 6 de maio, na Amadora. Os antigos moradores apontam, com frequência, a falta de transparência e de clareza na informação prestada sobre desalojamentos, reparação e opções para alojamento alternativo, nomeadamente numa linguagem que possam compreender plenamente por parte da autarquia local. Consideram que a autarquia não teve qualquer preocupação com os habitantes do bairro e que foram menosprezados pela mesma.

Alguns habitantes ouvidos pela Amnistia Internacional alegaram ainda que não houve uma preocupação em acautelar o impacto dos desalojamentos na vida das pessoas, nomeadamente em termos de saúde mental e bem-estar.

É possível assim constatar que o trabalho de proximidade, diálogo e de procura de soluções em conjunto com as comunidades, não foi respeitado por parte da autarquia, que insistiu na imposição, pelo recurso à força, de algumas das decisões que tomou.

A Amnistia Internacional Portugal tentou contactar, por diversas vezes, a Câmara Municipal da Amadora, não tendo tido qualquer tipo de resposta. Das várias vezes que em 2021 e já em 2022 a AI tentou contactar, foi constantemente reencaminhada de departamento para departamento, não tendo nenhum deles providenciado qualquer esclarecimento.

RECOMENDAÇÕES

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Face ao exposto, a Amnistia Internacional sublinha a necessidade de uma resposta governamental imediata e prioritária para as famílias que residem nas condições supramencionadas, que lhes permita viver com dignidade e garanta a sua segurança e bem-estar, nomeadamente através de:

  1. Atribuição adequada de recursos financeiros que garanta uma habitação condigna para toda a população, e em particular para as mais de 38 mil famílias (dados do último levantamento por parte do governo) que vivem em situação de habitação indigna em Portugal. Os fundos europeus do Programa de Recuperação e Resiliência deverão dar resposta a estas necessidades primordiais.
  2. As soluções podem incluir o aumento da oferta de habitação social, bem como assegurar a regulação adequada do mercado de arrendamento de curta duração, longa duração e de compra e venda, onde o Estado, sem estrangular a iniciativa privada e sem se aproveitar cegamente dos rendimentos de impostos fruto da especulação imobiliária, possa definir políticas públicas que incentivem a iniciativa privada e o dinamismo económico a dar resposta a este problema social grave, garantindo uma adequada oferta de arrendamento de longa duração e em que sejam praticados preços acessíveis que possam satisfazer todas as necessidades atuais.
  3. Introduzir mecanismos eficazes para monitorizar a situação habitacional no país. Estes mecanismos devem identificar pessoas às quais falta um grau mínimo de segurança de posse tais como pessoas sem-abrigo, pessoas que vivem em habitação desadequada e os grupos que enfrentam os principais obstáculos ao direito à habitação adequada. Assim, o Estado deve atualizar regularmente essas informações para avaliar o seu progresso e agir de acordo com essas informações.
  4. Adotar uma política de habitação que dê prioridade a um nível básico de habitação para todas as pessoas e estabeleça metas limitadas no tempo para melhorar progressivamente as condições de habitação, garantindo a participação das pessoas, particularmente de grupos desfavorecidos, na formulação de tal estratégia.
  5. Introduzir padrões para garantir que a habitação é condigna, estabelecendo os requisitos de habitabilidade, localização e disponibilidade de serviços, instalações e infraestruturas, em linha com as normas internacionais.
  6. Dar prioridade à prestação de serviços mínimos, incluindo os níveis mínimos essenciais de água potável e serviços de saneamento.
  7. Em situações em que os desalojamentos são a única opção viável, deve ser levada a cabo uma real e genuína consulta com todas as pessoas afetadas, sobre o processo de desalojamentos, as opções de reparação e alojamento alternativo.

Através desta consulta, as autarquias devem providenciar mecanismos adequados às pessoas e comunidades visadas, para que possam submeter sugestões, preocupações e formular queixas, e ainda obter informação sobre apoio jurídico disponível. Estas consultas devem acontecer com a maior antecedência possível, de modo a permitir aos moradores o recurso a mecanismos de proteção dos seus direitos. Esta consulta deve também culminar em encontros, trabalho conjunto, comunicação efetiva entre moradores e responsáveis políticos, em que estes procedem à explicação de forma detalhada e clara como foram atendidas as suas preocupações durante o processo.

A Amnistia Internacional relembra que, como consequência destes processos e à luz do respeito pelos direitos humanos, ninguém poderá ficar em situação de sem-abrigo, nem ser prejudicado face à sua situação anterior, particularmente quando os agregados familiares englobam menores de idade, pessoas em situação de dependência ou pessoas idosas.

Estas e outras recomendações podem ser encontradas e aprofundadas no manual “Guia para a Prevenção de Desalojamentos Forçados”, entregue a todas as autarquias nacionais em dezembro de 2019

Em 2022, a Amnistia Internacional continuará a monitorizar e investigar o estado do direito à habitação em Portugal, alertando para eventuais violações deste direito, e pressionando os decisores políticos locais e nacionais a cumprir as suas obrigações de respeito pelos direitos humanos.