O que é um crime contra a humanidade?
Os crimes contra a humanidade referem-se a determinados crimes cometidos no âmbito de ataques generalizados ou sistemáticos contra uma população civil. Estes crimes chocam a consciência da própria humanidade. A primeira acusação utilizando o termo ocorreu quando os líderes nazis foram julgados em Nuremberga no século passado, em resposta aos horrores do Holocausto.
Estes crimes incluem, mas não se limitam a:
Homicídio;
Tortura;
Escravatura;
Violação e outras formas de violência sexual;
Perseguição;
Desaparecimento forçado;
Apartheid.
Ao contrário dos crimes de guerra, podem ocorrer em tempo de paz ou de guerra. Alguns exemplos recentes prováveis incluem:
Afeganistão: Em 2023, a Amnistia relatou as severas restrições e a repressão ilegal dos Talibãs aos direitos das mulheres e das raparigas. A organização apelou a que estas medidas draconianas, juntamente com a prisão, o desaparecimento forçado, a tortura e outros maus-tratos, fossem investigadas como crime contra a humanidade de perseguição de género.
Etiópia: Em 2023, soldados eritreus cometeram crimes ao abrigo do direito internacional na região de Tigray, na Etiópia. Os crimes incluíram a violação e a escravatura sexual de mulheres e a execução extrajudicial de civis, o que pode constituir crimes contra a humanidade.
Irão: Em 1988, as autoridades iranianas forçaram o desaparecimento e executaram extrajudicialmente milhares de dissidentes políticos presos, em segredo, antes de despejarem os seus corpos, na sua maioria, em valas comuns não identificadas. Nunca nenhum responsável foi levado a tribunal. Desde então, os desaparecimentos forçados e a tortura e os maus-tratos infligidos às famílias das vítimas significam efetivamente que os crimes contra a humanidade continuam.
Estes são apenas alguns exemplos de crimes contra a humanidade, mas há muitos outros que são igualmente flagrantes. Só na última década, a Amnistia Internacional encontrou casos de tais atrocidades em pelo menos 18 países por todo o mundo. Nenhuma região do mundo está livre de crimes contra a humanidade.
Que mecanismos legais já existem para combater os crimes contra a humanidade?
Atualmente, existem vários mecanismos jurídicos especificamente concebidos para combater estes crimes, como o Estatuto de Roma do TPI e, mais recentemente, a Convenção de Ljubljana-Haia.
O Estatuto de Roma tem por objetivo julgar os indivíduos pela sua responsabilidade penal pessoal. Foi adotado como forma de estabelecer o Tribunal Penal Internacional em Haia. Na maioria dos casos, porém, o tribunal só tem jurisdição quando um Estado é membro. Mesmo assim, o tribunal só pode atuar se esse Estado não puder ou não quiser investigar e processar os casos ele próprio.
Alguns países também criminalizaram crimes contra a humanidade sem serem parte do Estatuto de Roma, como as Filipinas e a Indonésia.
Os tribunais nacionais podem, e nalgumas circunstâncias devem, processar indivíduos por crimes contra a humanidade cometidos onde quer que ocorram. Isto porque esses crimes dizem respeito à comunidade internacional como um todo e todos os Estados devem atuar para proteger as pessoas contra eles.
Porque é que precisamos de uma nova convenção se já temos mecanismos em vigor?
Os exemplos acima referidos são instrumentos jurídicos importantes e partilham, de facto, algumas sobreposições. No entanto, existem diferenças fundamentais nos respetivos âmbitos e funções. Ao contrário de outros crimes no âmbito do direito internacional, os crimes contra a humanidade carecem de uma convenção específica e autónoma.
O novo projeto de convenção procura colmatar esta lacuna de impunidade e harmonizar as abordagens. Oferece uma oportunidade para remediar alguns dos compromissos assumidos em Roma há mais de 25 anos. Ajudaria também a incorporar a evolução do direito internacional desde então. Esta última é especialmente importante no que diz respeito à igualdade de género e à proteção contra crimes baseados no género.
As novas iniciativas que procuram reforçar o sistema de justiça internacional a par dos mecanismos existentes não são concorrentes — são complementares. Ajudar-nos-ão a procurar e a fazer justiça, verdade e reparação para as vítimas e sobreviventes de crimes ao abrigo do direito internacional.
Como é que uma nova convenção sobre crimes contra a humanidade poderia ajudar?
Uma nova convenção obrigaria os Estados a garantir que esses crimes fossem investigados e julgados, mesmo que isso significasse investigar as suas próprias ações. Além disso, obrigaria os Estados não só a punir os crimes contra a humanidade, mas também a preveni-los (tal como é exigido pela Convenção sobre o Genocídio). Também promoveria a cooperação com outros Estados, por exemplo, através da assistência jurídica mútua.
A convenção ofereceria novas vias para as vítimas de crimes contra a humanidade e proporcionaria um quadro abrangente para os países incorporarem estes crimes nos seus sistemas jurídicos nacionais. Este passo, por si só, reduziria enormemente a capacidade dos autores de escapar à justiça.
As vítimas e os sobreviventes seriam os beneficiários finais. A humanidade precisa de poder procurar justiça e responsabilização quando são cometidos crimes contra a humanidade, e uma nova convenção poderia ajudar-nos a fazê-lo.
Estudo de caso: Venezuela
Desde 2017, os venezuelanos têm enfrentado execuções extrajudiciais em massa e detenções arbitrárias, bem como o uso excessivo da força pela polícia durante os protestos. Existe uma política sistemática de repressão contra opositores políticos e pessoas que possam ser consideradas como tal. Estes abusos podem constituir crimes contra a humanidade e os seus autores devem ser levados à justiça internacional.
Muitas organizações, incluindo a Amnistia, apelaram às Nações Unidas para que agissem, renovando o mandato da sua Missão Internacional Independente de Apuramento de Factos sobre a Venezuela. Em 2021, o TPI também reconheceu finalmente a necessidade de investigar os potenciais crimes documentados na Venezuela.
Mas outros Estados também podem ajudar. Um tribunal na Argentina está atualmente a analisar uma ação judicial intentada por vítimas de crimes contra a humanidade na Venezuela. A Amnistia afirma que os tribunais argentinos são plenamente competentes para investigar, processar e punir criminalmente os autores de crimes contra a humanidade cometidos fora da Argentina. Quando as autoridades de um Estado onde tais crimes ocorrem não podem ou não querem realizar investigações e processos genuínos, outro Estado poderia permitir a busca da justiça.
A convenção não substituiria as ações da ONU ou do TPI, mas funcionaria em paralelo com elas. Os crimes contra a humanidade são do interesse de todos. São necessários esforços concertados para os combater eficazmente. Uma nova convenção daria aos Estados um quadro global comum para combater os crimes contra a humanidade, o que lhes permitiria efetuar investigações e instaurar processos, promover a cooperação mútua e manter procedimentos de julgamento justos. Também preservaria os direitos básicos das vítimas e testemunhas.
O que está a Amnistia a fazer?
O projeto de convenção está a ser elaborado há mais de dez anos. Em outubro e novembro de 2024, a 6.ª Comissão da AGNU voltará a discutir este tema. Isto representa uma oportunidade única para os Estados exigirem que a ONU inicie o processo formal de adoção desta convenção.
A Amnistia pede a todos os Estados membros da ONU que apoiem a adoção de uma resolução que dê início às negociações para que se comece a negociar uma Convenção sobre a Prevenção e Punição de Crimes contra a Humanidade. Apelamos aos governos para que aprovem o projeto de resolução que está a ser distribuído na sessão de outubro.
Nos últimos dois anos, uma maioria global de Estados expressou apoio geral ao projeto. Se a ONU não levar o projeto de texto a negociações formais, é possível que não volte a ser apresentado para discussão durante muitos anos. Atualmente, a necessidade de um tratado internacional que ofereça novas possibilidades tanto para prevenir os crimes contra a humanidade como para garantir a justiça, a verdade e a reparação continua a ser mais urgente do que nunca.