26 Outubro 2018

por Andrew Gardner, coordenador de Investigação e Estratégia da Amnistia Internacional sobre a Turquia

As autoridades turcas despediram 130 mil pessoas dos seus empregos nos últimos dois anos. À vasta maioria não foi explicado porquê.

“Imagine o que é acordar um dia e ter ficado sem emprego e a sua mulher também. Não há nenhum outro trabalho para o qual tenha qualificações. Fica sem saber como irá subsistir. É essa a situação que eu e a minha mulher enfrentamos… Ninguém [no trabalho] nos informou de nada – descobrimos o que se passara online”.

Esta declaração foi proferida por Deniz*. Numa manhã de setembro de 2016, em tudo normal, Deniz e a mulher, Elif*, receberam notícias terríveis. Sem qualquer aviso nem razão, tinham ambos sido despedidos dos seus empregos como professores de uma escola na Turquia. Instalou-se o pânico; sem trabalho, como é que iam pagar as contas, comprar comida ou cuidar da família?

O mundo virado do avesso

A história de Deniz e Elif é, tristemente, demasiado comum. São dois dos cerca de 130 mil funcionários públicos que foram sumariamente despedidos por uma série de decretos executivos emitidos durante os dois anos do estado de emergência que vigorou na Turquia. Este estado de emergência, adotado após a tentativa de golpe de 2016, já terminou, mas, para quem ficou sem o emprego, a provação definitivamente não chegou ao fim.

A nenhuma das pessoas que perdeu o emprego foi dada uma razão específica para esse despedimento. A única informação que as autoridades prestaram nos decretos de emergência de despedimentos foi que estavam a ser demitidos por supostamente terem “ligações” a grupos “terroristas”. E não foram dados mais nenhuns pormenores.

“Pensámos que haveria uma investigação e que seríamos readmitidos. A minha mulher foi sujeita a uma investigação criminal [e as acusações] foram todas anuladas. Porém, aqui estamos, ainda na mesma situação ao fim de dois anos.”

Deniz, professor despedido nas purgas na Turquia

De início, Deniz pensou que rapidamente teria o seu emprego de volta, pois tratava-se obviamente de um terrível mal-entendido. “Pensámos que haveria uma investigação e que seríamos readmitidos. A minha mulher foi sujeita a uma investigação criminal [e as acusações] foram todas anuladas. Porém, aqui estamos, ainda na mesma situação ao fim de dois anos”.

Sem ressarcimento real

No novo relatório publicado esta quinta-feira, 25 de outubro – intitulado Purged beyond return? No remedy for Turkey’s dismissed public sector workers” (Purgas sem retorno? Nenhum ressarcimento para os funcionários públicos demitidos na Turquia)–, a Amnistia Internacional examina os falhanços sistemáticos do Estado turco em providenciar aos funcionários públicos a possibilidade de recorrerem dos despedimentos arbitrários com que foram visados.

Este relatório desenvolve e atualiza investigação feita anteriormente pela organização de direitos humanos aos despedimentos maciços na Turquia e às suas consequências – constante no relatório publicado em 2017 “No end in sight: Purged public sector workers denied a future in Turkey” (Sem fim à vista: Purga nega a funcionários públicos um futuro na Turquia).

Tal como aconteceu com dezenas de milhares de funcionários na Turquia afetados pelas purgas, Deniz viu ser-lhe negado inicialmente o direito de recorrer do despedimento. A Comissão de Inquérito do Estado de Emergência foi eventualmente criada em janeiro de 2017 para examinar recursos, mas só começou a aceitar requerimentos nesse sentido em julho de 2017, tendo emitido a sua primeira decisão em dezembro desse ano – quase um ano e meio após as primeiras pessoas terem perdido os seus empregos.

Muitas das pessoas com as quais conversámos, reportaram-nos as enormes dificuldades que surgem quando apresentam os seus requerimentos à Comissão. Têm pela frente uma provação kafkiana: como é que podem argumentar contra a demissão a que foram sujeitos sem saber, em primeiro lugar, por que foram despedidos? Isto significa que tiveram de apresentar o recurso em termos gerais ou, pior, porem-se a adivinhar as razões pelas quais as autoridades decidiram rescindir os seus contratos.

Ayşegül*, cujo marido, Ali*, foi despedido do emprego na televisão pública TRT, descreveu sucintamente: “Interpusemos recurso sem saber do que é que estávamos a recorrer”.

Obrigar os funcionários públicos a basearem os recursos em suposições é apenas uma das muitas falhas que detetámos durante a investigação feita para o nosso relatório.

“Interpusemos recurso sem saber do que é que estávamos a recorrer.”

Ayşegül, cujo marido foi despedido da televisão pública TRT

Apurámos igualmente que a Comissão está desprovida de verdadeira independência institucional, que emprega procedimentos de revisão morosos, que fracassa em providenciar a oportunidade de as pessoas efetivamente contestarem as alegações que estiveram na base do despedimento e ainda que apresenta atividades rotineiras e lícitas, seja o depósito de dinheiro num certo banco ou a matrícula de uma criança em determinada escola, como “provas” para validar as decisões originais do despedimento.

Descobrimos também graves problemas que afetam as pessoas que foram readmitidas. Apurámos que os pacotes de indemnização que recebem são inadequados e que são despromovidas na reintegração caso tenham ocupado cargos de gestão antes de terem sido despedidas.

É perfeitamente claro que a Comissão não tem condições para providenciar ressarcimento real e significativo aos funcionários públicos que foram despedidos na Turquia. De facto, parece que só existe para ser carimbo de aprovação na vasta maioria dos despedimentos, em vez de analisar com rigor os méritos de cada caso.

Nos 15 meses desde que começou a aceitar requerimentos de recurso, a Comissão apreciou apenas 36 mil dos 125 mil submetidos. E, dos casos avaliados, apenas 2 300 resultaram na readmissão dos trabalhadores.

Ostracização, isolamento, depressão

Uma vez que os nomes dos funcionários públicos demitidos dos seus empregos são publicados em listas anexas aos decretos de emergência, o impacto social deste apontar de dedo é profundo.

Deniz contou-nos a sua experiência em sentir-se como um pária: “As pessoas hesitam até em dizer-nos olá. Os vizinhos olham-nos de maneira diferente. Fazem de conta que não nos veem, quando se cruzam connosco na rua. Apesar de não sabermos exatamente do que é que nos acusam, somos catalogados como ‘terroristas’ e empurrados para um isolamento total, até daqueles que nos estão mais próximos”.

“As pessoas hesitam até em dizer-nos olá. Os vizinhos olham-nos de maneira diferente. Fazem de conta que não nos veem, quando se cruzam connosco na rua.”

Deniz, professor despedido nas purgas na Turquia

E não são apenas aqueles que perderam o emprego que enfrentam as consequências das purgas. Os despedimentos maciços também afetam gravemente as suas famílias: “O meu filho estuda Engenharia na universidade”, explicou Ayşegül. “Ele disse-nos que os amigos (…) deixaram de falar com ele. A certa altura ele chegou a pensar em deixar a universidade. O estigma social perturbou os seus estudos a tal ponto”.

Enorme custo económico, impacto psicológico incalculável

O impacto financeiro dos despedimentos maciços tem sido especialmente debilitante para muitas pessoas. Permanentemente banidos de trabalhar no sector público, quem foi demitido não tem alternativa senão a de se virar para o amiúde adverso sector privado, onde muitos empregadores se mostram relutantes em dar trabalho a quem foi despedido pelas autoridades.

Esta pressão financeira e o profundo estigma social inerente ao despedimento causaram a muitos trabalhadores graves problemas psicológicos. Desempregado há 16 meses, Kerem*, técnico hospitalar de radiologia, conseguiu recuperar o seu trabalho no início deste ano, depois de a Comissão ter considerado que não tinha nenhumas ligações a quaisquer grupos terroristas. Mas as cicatrizes psicológicas não desapareceram.

“Ver o meu nome naquela lista… foi devastador para mim e para a minha família. Não consegui sair de casa durante oito meses. Tive de receber tratamento psicológico… continuo a fazer terapia.”

Kerem, técnico hospitalar despedido nas purgas na Turquia

“Foi um choque quando descobri que tinha sido despedido. Não era algo de que estivesse à espera. Não fizera nada de errado. Ver o meu nome naquela lista… foi devastador para mim e para a minha família. Não consegui sair de casa durante oito meses. Tive de receber tratamento psicológico… continuo a fazer terapia. E tudo isto aconteceu comigo sem que eu tivesse feito nada de mal”, desabafou.

Kerem avançou ainda: “Tenho dois filhos, de 11 e de cinco anos. Ambos também sofreram trauma psicológico… A polícia veio a minha casa e fez buscas. Andaram à procura de livros, de jornais ou de documentos que me pudessem incriminar. Confiscaram-me o computador. Confiscaram-me o telefone”.

Futuro? Que futuro?

O estado de emergência na Turquia foi finalmente levantado a 18 de julho passado, mas para dezenas de milhar de funcionários públicos demitidos a vida ainda não voltou à normalidade. Continuam a viver com os efeitos devastadores dos seus muito públicos despedimentos.

“Um dos valores mais fundamentais que uma pessoa tem é o sentido de justiça. Na Turquia, o sistema de justiça está subserviente aos políticos… muda conforme o clima político… No momento em perdemos a convicção de que temos [acesso à] justiça, perdemos a sensação de pertencer a um país.”

Cengiz, académido despedido após ter assinado uma petição pelo fim do conflito na Turquia com o PKK

“Não vamos voltar a ser quem éramos”, sublinhou Cengiz*, académico que foi despedido depois de ter assinado uma petição pelo fim do conflito na Turquia, de há décadas, com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). “Fundamentalmente, fui publicamente marcado. Fui impedido de prosseguir a minha carreira académica. Tive de arranjar trabalho na construção porque ninguém mais me dava trabalho”, precisou.

Este académico frisou ainda: “Um dos valores mais fundamentais que uma pessoa tem é o sentido de justiça. Na Turquia, o sistema de justiça está subserviente aos políticos… muda conforme o clima político… No momento em perdemos a convicção de que temos [acesso à] justiça, perdemos a sensação de pertencer a um país”.

*nomes alterados para proteção da identidade dos entrevistados

Recursos

  • Artigo 19

    A liberdade de expressão é protegida pelo Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas.

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