16 Julho 2015

As conversações em curso de preparação para a primeira Conferência de Estados-parte do Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais, marcada para agosto próximo, estão a pôr em risco o sucesso futuro deste histórico acordo internacional, já em vigor, que visa regular o comércio de armamento de forma a evitar a morte de milhões de pessoas. O diretor do programa de Segurança, Polícias e Forças Armadas da Amnistia Internacional, Marek Marczynski, alerta aqui para a importância crucial de não haver recuos no princípio de transparência que o tratado consagra.

 

“Todos os anos, meio milhão de pessoas são mortas por armas, muitas das quais tendo sido objeto de fornecimentos e transferências de armamento irresponsáveis. Debilmente controlados, os fluxos do comércio das armas, alimentam conflitos em que mais milhões ainda  morrem devido ao deslocamento maciço de populações e a perda de acesso a serviços essenciais de saúde, a água potável e a alimentos.

É estimado que na República Democrática do Congo, por exemplo, mais de cinco milhões de pessoas morreram desde 1998, em resultado indireto do conflito armado.

Para encontrar solução para este desafio global, a Amnistia Internacional – a par de outros grupos da sociedade civil e vítimas da violência armada – defenderam a adoção de um tratado internacional para regular as transferências globais de armas. O argumento a favor do tratado era simples: não devem ser enviadas armas para locais onde é provável que sejam usadas para cometer graves violações de direitos humanos.

Os enormes esforços de campanha feitos resultaram na adoção do Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais (TCA, ATT na sigla em inglês), que entrou em vigor a 24 de dezembro de 2014.

Desde então, a comunidade internacional tem tentado desenvolver regras e procedimentos que tornarão o tratado totalmente funcional.

Com a primeira Conferência de Estados-parte do TCA agendada para agosto próximo, no México, várias reuniões têm decorrido ao longo de 2015, em Port-of-Spain (capital de Trindade e Tobago) e em Viena d’Áustria, para pavimentar o caminho para o sucesso. E o primeiro encontro preparatório da conferência decorreu na semana passada em Genebra.

Porém, o sucesso futuro do TCA está a ser posto em causa nestas conversações.

Países que apoiavam uma regulação mais apertada das transferências de armas estão agora a recuar, para chegarem a um compromisso com aqueles que querem que o tratado fique na lógica dos “negócios do costume”. Isto tem afetado o debate sobre como vai ficar definido o grau de transparência assim como o nível de conhecimento público da responsabilização no negócio de armas ao abrigo do TCA.

A transparência é um dos principais objetivos do TCA, avançando o reconhecimento de que o negócio das armas tem – até agora – sido feito sempre sob um véu de segredo.

Estima-se que o negócio de armas ascenda a perto de 100 mil milhões de dólares por ano – e está sempre em crescimento. Em 2010 estava à volta dos 72 mil milhões de dólares. Juntando-se-lhe os serviços associados aos fornecimentos de armamento, em que se incluem militares e construção, o comércio de armamento vale atualmente pelo menos 120 mil milhões de dólares.

Durante as reuniões preparatórias de Genebra, as discussões sobre as questões da transparência do negócio centraram-se na participação dos grupos da sociedade civil na Conferência dos Estados-parte do TCA e sobre quanta informação sobre as transferências de armas devem ser reportadas e tornadas públicas pelos países participantes.

Alguns sugeriram que os grupos da sociedade civil devem pagar uma taxa para participarem nos trabalhos da conferência marcada para agosto. Outros manifestaram-se dispostos a limitar a participação dos grupos às sessões plenárias, excluindo assim as organizações não-governamentais das reuniões dos órgãos subsidiários na conferência.

Estas propostas são chocantes. Minam a ideia central e de base do TCA, que é a de assegurar transparência no comércio de armas e reduzir o sofrimento humano. A sociedade civil é absolutamente crucial para garantir transparência no negócio do armamento.

A Amnistia Internacional e outros grupos têm vindo a fazer campanha pela adoção do TCA há mais de 20 anos e foi desenvolvida uma enorme experiência e peritagem que só pode fortalecer o tratado. E é por aqui também que é fornecida uma ligação muito importante às vítimas e aos sobreviventes da violência armada, cujo sofrimento é suposto ser reduzido pelo TCA.

Impedir o acesso da sociedade civil ao trabalho dos órgãos subsidiários na conferência do TCA traduzir-se-á inevitavelmente em que as mais importantes conversações sobre as transferências de armas continuarão a ser feitas em segredo. E isto será o “negócio do costume” – com todo o propósito do TCA a ficar seriamente prejudicado.

A informação que deve ser reportada e tornada pública pelos países no que toca às transferências de armas é também objeto de uma série de deliberações a serem feitas em Genebra. Infelizmente, os grupos da sociedade civil não puderam fazer qualquer contributo significativo para o desenvolvimento destas propostas.

Em consequência, as linhas norteadoras mais recentes sobre o que deve ser reportado pelos Estados-parte do TCA não estão à altura dos padrões de transparência definidos pelo próprio tratado. A informação a ser prestada ficou reduzida ao mínimo, o que significa que os países podem ficar obrigados apenas a revelar anualmente o valor das transferências de armas.

É essencial para o significativo e eficaz cumprimento e realização plena do TCA que os Estados-parte forneçam um quadro abrangente das transferências de armas que fazem. Para esses relatórios servirem o seu propósito, têm de incluir necessariamente informação sobre as autorizações de transferências de armas e também sobre as entregas que foram efetivamente feitas. E os detalhes da transferência têm de mencionar o número de unidades e o seu valor financeiro. Os países devem ainda reportar separadamente sobre cada categoria de armamento ligeiro portátil [pistolas, espingardas, metralhadoras ligeiras, manuais, semiautomáticas e automáticas].

Também crucial é que seja prestada informação sobre o destino do uso – e sobre o destinatário – das armas transferidas, e que essa informação seja publicamente conhecida. A questão sobre quem é que vai receber o armamento e como o vai usar é de enorme importância: tem influência direta na probabilidade dessas armas serem usadas para cometer violações de direitos humanos.

Com os encontros preparatórios para a Conferência de Estados-parte do TCA a chegarem ao fim, os países têm de entender que sem transparência o tratado terá muito poucos efeitos positivos.

Se os países não permitirem que os grupos da sociedade civil participem de forma significativa nos trabalhos do TCA, e se não adotarem parâmetros para uma prestação de informação abrangente e transparente, o tratado não estará a ser verdadeiramente respeitado e cumprido.

E isto irá significar o fracasso na tentativa de impedir a morte de meio milhão de pessoas no próximo ano por causa do irresponsável comércio de armas, ao mesmo tempo que é permitido à indústria de armamento embolsar mais 120 mil milhões de dólares.”

 

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