14 Julho 2016

Mais de mil pessoas, muitas detidas arbitrariamente, estão detidas em condições horríveis e dezenas morrem devido a doenças ou subnutrição ou são torturadas até à morte nas prisões, no contexto do combate do Governo e forças de segurança dos Camarões ao grupo armado islamita Boko Haram, é revelado esta quinta-feira, 14 de julho, em novo relatório da Amnistia Internacional.

 

 

 

  • Todos os meses morrem até oito pessoas devido a desesperante sobrelotação na prisão de Maroua

  • Mais de cem pessoas, incluindo mulheres, condenadas à morte por tribunais militares

  • Ataques do Boko Haram nos Camarões causaram a morte a quase 500 pessoas em 2015

Este relatório, intitulado Right cause, wrong means: Human rights violated and justice denied in Cameroon’s fight against Boko Haram” (A causa certa, os meios errados: violações de direitos humanos e falta de justiça na luta dos Camarões contra o Boko Haram) detalha como a ofensiva militar camaronesa contra o grupo armado islamita está a resultar numa vaga generalizada de violações de direitos humanos da população civil na região do Extremo Norte do país.

“Ao tentar proteger a população da brutalidade do Boko Haram, os Camarões estão a prosseguir o objetivo certo; ao deter arbitrariamente, torturar e sujeitar as pessoas a desaparecimentos forçados, as autoridades estão a usar os meios errados”, frisa o diretor da Amnistia Internacional para a região da África Ocidental e Central, Alioune Tine.

O perito sustenta que “com centenas de pessoas presas sem que exista uma suspeita razoável de que cometeram algum crime, e pessoas a morrerem todas as semanas em prisões sobrelotadas, o Governo dos Camarões têm de tomar ações urgentes para cumprir a promessa de que respeitariam os direitos humanos na luta ao Boko Haram”.

As descobertas feitas pela investigação da Amnistia Internacional surgem apenas algumas semanas após o ataque suicida rem Djakana, perto de Limani, reivindicado pelo Boko Haram, em que morreram 11 pessoas. Este foi o mais recente ataque devastador na violenta campanha do grupo armado que causou a morte a mais de 480 civis apenas este ano. Cerca de metade dos 46 atentados suicidas perpetrados pelo Boko Haram foram cometidos por crianças.

Seis a oito mortos por mês na prisão de Maroua

Mais de mil pessoas acusadas de serem apoiantes do Boko Haram estão atualmente detidas em prisões desesperadamente sobrelotadas, em condições sanitárias deploráveis e onde a subnutrição é galopante. Na prisão de Maroua, por exemplo, morrem entre seis e oito pessoas todos os meses.

Apesar de se registarem alguns esforços para melhorar o fornecimento de água e ter sido iniciada a construção de novas celas, as condições na prisão permanecem desumanas, com cerca de 1 500 pessoas detidas num espaço cuja lotação máxima é de 350. As visitas de familiares aos detidos são estritamente limitadas.

Detenções arbitrárias e execuções extrajudiciais

As detenções feitas pelas forças de segurança, frequentemente com base em muito pouca informação ou critérios arbitrários e por vezes visando grupos inteiros, têm vindo a fazer com que a população prisional aumente significativamente.

Em Kossa, por exemplo, foram detidos 32 homens, em fevereiro de 2015, com base apenas em acusações de que aquela aldeia estaria a fornecer alimentos ao Boko Haram. A maior parte destes detidos foi eventualmente liberta, mas um deles morreu sob tutela das forças de segurança camaronesas.

Estas detenções têm sido frequentemente marcadas pelo recurso a um desnecessário uso excessivo da força. Num caso ilustrativo, que ocorreu em novembro de 2014, membros da Brigada de Intervenção Rápida (BIR) mataram ilegitimamente sete homens que estavam desarmados, durante uma operação em Bornori, e detiveram 15 outros; semanas depois a BIR regressou à aldeia e queimou casas. Num outro caso ainda, em julho de 2015, soldados do Exército camaronês entraram na aldeia de Kouyapé, onde juntaram cerca de 70 habitantes e os atacaram.

Torturados até à morte em detenção em regime de incomunicabilidade

A Amnistia Internacional documenta no relatório Right cause, wrong means” 29 casos de pessoas que foram torturadas por agentes das forças de segurança, entre novembro de 2014 e outubro de 2015, incluindo seis que morreram na sequência da violência física que sobre eles foi exercida.

A maior parte dos casos de tortura analisados pela organização de direitos humanos ocorreram em situações em que as pessoas se encontravam em locais ilegais de detenção, dentro de bases militares da BIR em Salak, perto de Maroua, e em Mora, e impedidos de fazer qualquer contacto com o exterior. Só posteriormente estes detidos foram transferidos para prisões oficiais. As vítimas reportaram aos investigadores da Amnistia Internacional que foram agredidas ao longo de várias horas com paus, chicotes e facas de mato, em alguns casos até perderem a consciência.

Um homem de 70 anos que esteve detido em Salak descreveu à Amnistia Internacional como assistiu ao filho ser torturado ao longo de dez dias, na base da BIR, por um grupo de homens não fardados. Esta testemunha presenciou também um homem a ser espancado até à morte.

“Éramos todos interrogados na mesma sala, um a um, por um homem que envergava o uniforme da BIR. Dois outros, não fardados, eram os que espancavam e que faziam outras torturas. Num dia dois presos foram agredidos de tal forma que morreram à nossa frente. Os torturadores pontapearam-nos, esbofetearam-nos, violentamente, bateram-lhes com paus”, contou.

A testemunha contou ainda que não foi espancado por ser “tão velho”. “Por isso, coube-me ajudar a carregar os corpos dos dois mortos da sala de interrogatórios para a cela. Nessa noite dormimos na cela com os dois cadáveres e, no dia seguinte, a BIR veio e atirou-nos sacos de plástico e disseram-nos para enfiarmos os corpos lá dentro. Depois vieram buscá-los à cela. Não sei para onde levaram os cadáveres nem se chegaram a ser enterrados”.

Foram também documentados casos de tortura cometida no edifício da Direção-geral de Investigação Externa (DGRE), em Yaoundé, a capital dos Camarões, incluindo do jornalista Ahmed Abba, correspondente da Radio France Internationale- RFI, o qual foi despido e espancado após ter sido detido em julho de 2015.

A Amnistia Internacional documentou ainda 17 casos de desaparecimentos forçados, em que o paradeiro das vítimas permanece desconhecido desde que foram detidas há quase dois anos.

Mais de cem pessoas condenadas à morte em julgamentos militares injustos

Nos casos em que os suspeitos de prestarem apoio ao Boko Haram são levados a julgamento, fazem-no perante tribunais militares onde a pena de morte é o desenlace mais do que provável. Mais de cem pessoas, incluindo mulheres, foram condenadas à pena capital no tribunal penal de Maroua desde julho de 2015; não foi ainda feita nenhuma execução destas sentenças.

Os arguidos são frequentemente condenados com bases numa demonstração de prova muito limitada, incluindo testemunhos de informadores anónimos que não podem ser contra inquiridos pelos advogados e mesmo provas circunstanciais como, por exemplo, o arguido não conseguir explicar uma viagem que fez para fora da sua aldeia ou a perda de um documento de identificação. E os advogados oficiosos, poucos para as necessidades e parcamente remunerados, não dispõem dos recursos precisos para prestarem uma defesa adequada.

A equipa de investigação da Amnistia Internacional monitorizou presencialmente o julgamento de quatro mulheres que foram condenadas à morte em abril de 2016, apenas com base numa declaração feita por um membro de um comité local de vigilantes depois de as arguidas terem regressado aos Camarões após terem estado a trabalhar na Nigéria como empregadas domésticas. O único contacto que estas duas mulheres tiveram com um advogado durante o processo foi durante um curto intervalo na sessão de julgamento.

“Após serem detidas sem causa provável e a sofrerem em condições terríveis nas prisões à espera de julgamento, as pessoas nos Camarões ficam em risco de serem condenadas à morte em tribunais militares, com base em poucas ou nenhumas provas, em julgamentos claramente injustos”, avalia Alioune Tine.

Leis antiterrorismo draconianas

A maior parte dos arguidos são acusados ao abrigo da legislação antiterrorismo que foi aprovada em dezembro de 2014. Esta lei contém definições vagas de terrorismo que ameaçam a liberdade de expressão.

Aquela legislação foi usada, por exemplo, para acusar Fomusoh Ivo Feh, de 27 anos, o qual foi detido após ter enviado uma mensagem de telemóvel sarcástica a alguns amigos, na qual fazia uma piada sobre o Boko Haram recrutar jovens licenciados. Está atualmente a ser julgado pelo tribunal militar de Yaoundé e pode ser condenado à pena capital.

“Se um estudante pode enfrentar a pena de morte por enviar uma mensagem sarcástica, é bastante claro que existe um problema muito grave na redação e no uso da legislação antiterrorismo dos Camarões. As autoridades têm de encetar reformas à lei e assegurar que a mesma passa a fornecer o enquadramento para proteger a população sem lhes retirar os seus direitos”, insta Alioune Tine.

A Amnistia Internacional exorta o Governo dos Camarões a aprovar e executar urgentemente uma série de medidas destinadas a prevenir violações de direitos humanos na luta contra o Boko Haram. Entre elas está o fim das detenções arbitrárias e maciças, a colocação direta dos suspeitos em locais oficiais de detenção, acabar com as práticas de tortura, garantir que os detidos têm acesso a advogados e aos familiares, criar um registo central das detenções, melhorar as condições prisionais, reformar a legislação antiterrorismo e investigar todas as alegações e denúncias de violações de direitos humanos.

Autoridades não responderam à Amnistia Internacional

A Amnistia Internacional entrevistou mais de 200 pessoas, entre outubro de 2015 e julho de 2016, na região do Extremo Norte dos Camarões, tendo documentado incidentes em que centenas de pessoas foram detidas, visitado prisões, feito observação de julgamentos e coligindo informação detalhada sobre 82 casos individuais de violações de direitos humanos cometidas pelas autoridades e forças de segurança do país.

A organização de direitos humanos analisou também imagens de satélite de uma aldeia em que as casas foram incendiadas pelas forças de segurança camaronesas.

As principais provas recolhidas e conclusões contantes do relatório Right cause, wrong means” foram enviadas às autoridades dos Camarões, a 7 de maio de 2016, não tendo ainda sido recebida qualquer resposta.

Em resultado dos abusos cometidos pelo grupo armado islamita Boko Haram, mais de 170 000 pessoas dos Camarões, na maioria mulheres e crianças, tiveram de fugir das suas casas e estão atualmente internamente deslocadas por todo o Extremo Norte. Os Camarões acolhem ainda mais de 65 000 refugiados que se escaparam aos ataques do Boko Haram na Nigéria.

 

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