15 Maio 2014

 

Há três décadas os governos do mundo inteiro prometeram acabar com a tortura – mas esta está bem viva e prospera, explica o secretário-geral da Amnistia Internacional, Salil Shetty, no artigo de opinião onde partilha, na primeira pessoa, também a história de quando o pai, jornalista na Índia, esteve detido durante longas semanas nas prisões onde a tortura era a norma.

Eu tinha 23 anos quando as Nações Unidas aprovaram a Convenção Contra a Tortura, em dezembro de 1984, e este acontecimento parecia estar a um mundo de distância da minha cidade-natal, Bangalore. A Índia estava então imersa numa profunda instabilidade. No verão antes, militantes sikh [minoria do país que habita sobretudo no Punjab] tinham ocupado o Templo Dourado em Amritsar, e o exército tinha sido chamado para os dispersar do santuário. Centenas de homens, na maioria sikhs, foram mortos na batalha brutal que se seguiu.

Meses mais tarde, a então primeira-ministra Indira Gandhi foi assassinada no que aparentou ser um ataque de vingança. O meu pai, jornalista de um dos jornais de referência na Índia, escreveu um artigo sobre a luta dos sikhs pela autodeterminação. Algum tempo mais tarde, a polícia apareceu à nossa porta. Passaram-se semanas até o voltarmos a ver.

Naquela altura, em 1984, ir parar a uma esquadra de polícia da Índia significava ser-se espancado. Ou pior. A polícia batia e só depois fazia perguntas. Uns anos antes da detenção do meu pai, agentes da polícia tinham detido um meu colega de escola – quando os pais dele souberam disto correram para a esquadra a tempo de o ouvir a gritar do outro lado das paredes. Os polícias tinham-no atado ao teto de forma ao peso do corpo dele lhe desconjuntar as articulações.

Quando a tortura nos bate à porta, traz consigo medo e desamparo. Para muitas pessoas no mundo atualmente este medo é ainda um muito doloroso facto das suas vidas.

Trinta anos depois da aprovação da convenção, 155 países assinaram o seu compromisso em erradicar a tortura e outros maus-tratos. Mas em 2014, mais de metade desses mesmos países continuam a praticá-la. Espancamentos, choques elétricos, violação, chicotadas, queimaduras, uso de drogas e de cães: o leque de técnicas usadas para infligir sofrimento e dor a outro ser humano é ao mesmo tempo surpreendente e chocante. No trabalho de investigação feito este ano pela Amnistia Internacional, registámos pelo menos 27 métodos diferentes de tortura que continuam a ser usados atualmente.

Os torturadores são hoje em dia bandidos internacionais

Isto não significa que a convenção não funcionou. Para aqueles que países que levam a sério as responsabilidades assumidas, o documento fornece um manual de instruções sobre como combater a tortura. E dá ao mundo uma referência pela qual os países se devem esforçar e em relação à qual serem avaliados. Os torturadores são hoje em dia bandidos internacionais.

Significa, porém, que ainda há muito trabalho a fazer. A Amnistia Internacional bateu-se pela aprovação da Convenção Contra a Tortura; agora luta pelo cumprimento daquelas promessas feitas há 30 anos. A 13 de maio lançámos a campanha mundial STOP Tortura para isso mesmo.

É mais que tempo de pôr fim às práticas de presos serem encarcerados longe da vista, espancados e feridos, abandonados em celas escuras e solitárias. O acesso pronto a advogados, tribunais e familiares tem de ser garantido e as condições de detenção humanas. Os interrogatórios têm de ser gravados e a verificação no local do que acontece nas prisões irá asseverar que os torturadores não têm mais onde se esconder. E exames médicos independentes aos presos exporão as marcas que os torturadores deixam.

Queremos acabar com os processos complexos e os métodos que dificultam a resolução das denúncias de tortura e torna-los ágeis e virá-los na direção daqueles que deram azo aos abusos com consequências catastróficas. Cada denúncia de tortura ou outros maus-tratos tem de ser investigada de forma eficiente, independente e imparcial.

E exigimos que os torturadores – quem quer que sejam, onde quer que estejam e quaisquer que tenham sido as razões porque torturaram – sejam julgados. Não apenas o guarda-prisional que usa o bastão, mas também os oficiais que o comandam. E a responsabilidade inerente ao poder não pode ser diminuída com desculpas débeis como “foi feito por um bem maior”.

A nossa campanha STOP Tortura é um apelo à ação do mundo inteiro, com foco especial em cinco países onde sentimos que podemos alcançar maior impacto e contribuir para uma mudança duradoura através de uma ação concertada nos eixos de mobilização do apoio a esta causa, ativismo e pressão nos media. O objetivo é implantar reformas nas leis e nas práticas que já provaram dar resultados em países em todas as partes do mundo.

Vamos manter a pressão implacavelmente

Em Marrocos e no Uzbequistão, na Nigéria, no México e nas Filipinas, estamos a pressionar as agências policiais que cometem abusos num esforço de concretizar esta mudança. A Amnistia Internacional manterá as atenções do mundo em cada um destes países, um a seguir ao outro, implacavelmente.

Vamos denunciar como as práticas de tortura continuam a ser toleradas e sem diminuir no México, apesar da relativamente consistente legislação no país que o pune e previne. De acordo com um estudo global comissionado pela Amnistia Internacional para esta campanha, cerca de dois terços dos mexicanos não sentem que estariam seguros caso fossem parar a uma esquadra de polícia.

Vamos expor como em Marrocos e no Sara Ocidental juízes e procuradores têm falhado redondamente na investigação das denúncias de tortura e outros maus-tratos perpetrados por agências policiais e de segurança, permitindo aos torturadores infligirem violência sobre as suas vítimas com total impunidade.

Vamos dar mostras de como a tortura continua a não ser impedida nas Filipinas, mesmo ao fim de cinco anos de ter sido aprovada uma lei anti tortura no país. Nem uma só pessoa foi condenada por praticar tortura, apesar das numerosas denúncias feitas contra a polícia.

Vamos condenar as rotinas dos abusos de suspeitos de práticas de crime pelas forças de segurança na Nigéria, onde a tortura, de resto, nem sequer está criminalizada.

E vamos tomar de frente o grande Uzbequistão, onde procuradores e juízes, todos, assobiam para o lado e ignoram os gritos das vítimas de tortura. Um espesso véu de segredo encobre as maquinações do Governo e aqueles que ousam fazer ouvir a sua dissidência – desde o manifestante pacífico ao oligarca caído em desgraça – arriscam-se a represálias brutais.

A campanha STOP Tortura visa a implantação das recomendações consolidadas ao longo de mais de 50 anos de investigação da Amnistia Internacional sobre a tortura no mundo.

Quando o meu pai foi detido, eu e a minha mãe pedimos desesperadamente ajuda a todas as organizações de direitos humanos que conhecíamos. Eu acreditava nessa altura que organizações como a Amnistia Internacional fazem uma enorme diferença. E acredito nisso agora mais do que nunca.

O meu pai teve a sorte de sair em liberdade no fim daquela provação. Muitos outros na Índia – e em todo o mundo – não. Temos de parar a tortura. Ajudem-nos a fazê-lo.

 

Este artigo de opinião foi originalmente publicado na revista Foreign Policy

 

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