As forças russas devem enfrentar a justiça pelos múltiplos crimes de guerra cometidos na região noroeste de Kiev, referiu hoje a Amnistia Internacional num novo briefing, após uma extensa investigação no terreno.
O briefing, “He’s Not Coming Back’: War Crimes in Northwest Areas of Kyiv Oblast”, é fundamentado em dezenas de entrevistas e numa extensa revisão de provas materiais. A Amnistia Internacional documentou ataques aéreos ilegais em Borodyanka, e execuções extrajudiciais noutras cidades e povoações, incluindo Bucha, Andriivka, Zdvyzhivka e Vorzel.
Uma delegação da Amnistia Internacional, liderada pela secretária-geral da organização, Agnès Callamard, tem visitado a região nos últimos dias, conversando com sobreviventes e famílias de vítimas, e encontrando-se com altos responsáveis ucranianos.
Legenda: Uma delegação da Amnistia Internacional, liderada pela sua secretária-geral, Agnès Callamard, visita edifícios residenciais destruídos por bombardeamentos da Rússia, em Borodyanka. Foto tirada a 2 de maio, 2022. © Amnesty International (Eduardo Quiros Riesgo)
“O padrão de crimes cometidos por forças russas que documentámos integra, quer ataques ilegais, quer mortes intencionais de civis”, declarou Agnès Callamard.
“Encontrámo-nos com famílias cujos entes queridos foram mortos em ataques aterradores, e cujas vidas mudaram para sempre devido à invasão russa. Apoiamos as suas exigências de justiça, e apelamos às autoridades ucranianas, ao Tribunal Penal Internacional e outras entidades para que assegurem a preservação das provas que poderão suportar futuras acusações por crimes de guerra. É essencial que todos aqueles responsáveis, nomeadamente os que se encontram em níveis superiores da cadeia de comando, sejam trazidos à justiça.”
“Apoiamos as suas exigências de justiça [das famílias que perderam entes queridos], e apelamos às autoridades ucranianas, ao Tribunal Penal Internacional e outras entidades para que assegurem a preservação das provas que poderão suportar futuras acusações por crimes de guerra”
Agnès Callamard
Legenda: Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional © Amnesty International (Eduardo Quiros Riesgo)
Em Borodyanka, a Amnistia Internacional descobriu que pelo menos 40 civis foram mortos em ataques desproporcionados e indiscriminados, que devastaram um bairro inteiro e deixaram milhares de pessoas sem abrigo.
Em Bucha, e várias outras cidades e localidades a noroeste de Kiev, a Amnistia Internacional documentou 22 casos de execuções por forças russas, a maioria das quais foram aparentes execuções extrajudiciais.
Durante 12 dias, investigadores da Amnistia Internacional entrevistaram residentes de Bucha, Borodyanka, Novyi Korohod, Andriivka, Zdvyzhivka, Vorzel, Makariv e Dmytrivka, e visitaram locais de numerosas mortes.
No total, foram entrevistadas 45 pessoas que testemunharam ou tiveram conhecimento em primeira mão de execuções de familiares e vizinhos seus por soldados russos, e outras 39 que testemunharam ou tiveram conhecimento em primeira mão dos ataques aéreos que atingiram oito edifícios residenciais.
Ataque aéreos ilegais em Borodyanka
A 1 e 2 de março, vários ataques aéreos russos atingiram oito prédios residenciais que alojavam mais de 600 famílias na cidade de Borodyanka, aproximadamente 60 quilómetros a noroeste de Kiev.
Os ataques mataram pelo menos 40 moradores e destruíram os edifícios, bem como dezenas de prédios e casas circundantes. A maioria das vítimas foi morta nas caves dos edifícios, onde tinha procurado abrigo. Outras, morreram nos seus apartamentos.
Legenda: Edifícios destruídos em Borodyanka que foram bombardeados pelas forças russas a 1 de março de 2022. © Amnesty International
Na manhã de 2 de março, um único ataque matou pelo menos 23 pessoas no Edifício 359 da Rua Tsentralna. Entre as vítimas, estão cinco dos parentes de Vadim Zahrebelny – a sua mãe Lydia, o seu irmão Volodymyr, a sua esposa Yulia, e os seus pais, Lubov e Leonid Hurbanov.
Vadim partilhou à Amnistia Internacional: “Eu e o meu filho deixámos o Edifício 359 mesmo antes das 7 horas da manhã. No entanto, a minha mãe, o meu irmão, a sua mulher e os pais dela insistiram em ficar na cave porque tinham medo de ser atingidos por soldados russos se saíssem à rua. Cerca de 20 minutos depois de partimos, o Edifício 359 foi bombardeado e eles foram todos mortos, juntamente com outros vizinhos.”
Vasyl Yaroshenko estava perto de um dos prédios quando este foi atingido: “Eu deixei o meu apartamento para ir trabalhar na garagem, enquanto a minha mulher estava prestes a levar uns vizinhos mais idosos para a cave. Quando cheguei à garagem, a uns 150 metros do edifício, houve uma explosão enorme, que me obrigou a esconder atrás da garagem. Quando olhei, vi uma grande abertura no prédio. Toda a sua secção central tinha colapsado – exatamente onde os moradores estavam abrigados na cave. A minha mulher, Halina, foi uma das vítimas. Eu ainda a vejo junto à porta do nosso apartamento, a casa onde vivemos durante 40 anos.”
“A minha mulher, Halina, foi uma das vítimas. Eu ainda a vejo junto à porta do nosso apartamento, a casa onde vivemos durante 40 anos”
Relato de Vasyl Yaroshenko, ucraniano que perdeu a esposa num ataque
A 1 de março, múltiplos ataques atingiram seis edifícios próximos. Pelo menos sete pessoas foram mortas no Edifício 371 da Rua Tsentralna, incluindo Vitali Smishchuk, um cirurgião com 39 anos, a sua esposa Tetiana e a sua filha de quatro anos, Yeva.
Ludmila, a mãe de Vitali, relatou à Amnistia Internacional: “Enquanto a situação se deteriorava, tornou-se demasiado perigoso deslocarmo-nos de uma parte da cidade para outra. Havia tanques nas ruas… as pessoas tinham medo de estar lá fora.
“Estava a falar com o meu filho e a dizer-lhe para partir, mas isso estava a preocupá-lo. Refugiaram-se na cave por segurança – mas o ataque destruiu toda a parte do edifício onde se localizava a cave.”
Não se sabe se foram localizados alvos militares ucranianos em qualquer dos edifícios atingidos ou perto destes, ainda que, por vezes, indivíduos armados apoiantes das forças ucranianas tenham alegadamente disparado à passagem de veículos militares russos a partir – ou perto – de alguns daqueles edifícios. Ainda assim, lançar ataques diretos de forma intencional sobre infraestruturas civis ou ataques desproporcionados, constitui crimes de guerra.
A Amnistia Internacional criou uma nova representação Interativa de 360º dos extensos danos causados pelos ataques aéreos em Borodyanka, que pode ser vista aqui.
Execuções a noroeste de Kiev
A cidade de Bucha, a aproximadamente 30 quilómetros a noroeste de Kiev, foi ocupada por forças russas no final de fevereiro. Cinco homens foram mortos pelas mesmas, em aparentes execuções num complexo de edifícios dispostos em redor de um pátio perto do cruzamento das ruas Yablunska e Vodoprovidna, todos entre 4 e 19 de março.
Yevhen Petrashenko, um gerente comercial de 43 anos e pai de dois filhos, foi morto a tiro no seu apartamento na Rua Yablunska, a 4 de março.
Tatiana, a esposa de Yevhen, contou à Amnistia Internacional que se encontrava na cave do seu prédio, enquanto Yevhen tinha ficado no seu apartamento a ajudar um vizinho quando os soldados russos faziam buscas porta-a-porta. Tatiana perdeu o contacto com o marido, cujo corpo foi encontrado no seu apartamento no dia seguinte.
A seu pedido, os soldados russos permitiram que Tatiana visitasse o apartamento: “Yevhen estava morto no chão da cozinha. Foi baleado nas costas, perto dos pulmões e fígado. O corpo permaneceu no apartamento até 10 de março, quando conseguimos sepultá-lo numa campa rasa no pátio.”
Os investigadores da Amnistia Internacional descobriram duas balas e três cartuchos no local do assassinato. O investigador de armas da organização identificou as balas como balas perfuradoras 7N12, de ponta preta com uma blindagem de 9x39mm, que só podem ser disparadas por espingardas especializadas utilizadas por algumas unidades russas de elite, nomeadamente unidades cujas operações em Bucha foram reportadas durante este período.
Um conjunto de documentos militares russos recuperados em Bucha e analisados pelos investigadores da Amnistia Internacional dá indicações adicionais quanto às unidades envolvidas. Entre eles, existiam registos de recrutamento e treino pertencentes a um condutor-mecânico do 104º Regimento das VDV, as forças aerotransportadas russas. Notavelmente, algumas unidades das VDV estão equipadas com espingardas especializadas que disparam a munição perfurante de 9x39mm.
A 22 ou a 23 de março, Leonid Bodnarchuk, um trabalhador da construção com 44 anos que vivia no mesmo prédio que Yevhen Petrashenko, foi também morto. Residentes que se abrigavam na cave descreveram à Amnistia Internacional que soldados russos o balearam enquanto Leonid subia os degraus, lançando de seguida uma granada para as escadas. Mais tarde, o seu corpo mutilado foi encontrado caído nas escadas, numa poça de sangue.
Investigadores da Amnistia Internacional descobriram grandes manchas de sangue em vários degraus das escadas que conduziam à cave, assim como marcas de queimaduras e um padrão de estragos na parede consistente com a explosão de uma granada.
Em cidades e localidades vizinhas, a Amnistia Internacional recolheu provas e testemunhos adicionais de mortes, que incluem aparentes execuções: algumas vítimas tinham as mãos amarradas atrás das costas, enquanto outras mostravam sinais de tortura.
Na localidade de Novyi Korohod, Viktor Klokun, um construtor civil de 46 anos, foi morto. Olena Sakhno, a sua parceira, revelou à Amnistia Internacional que alguns locais lhe trouxeram o corpo de Viktor a 6 de março: “As suas mãos estavam amarradas atrás das costas com plástico branco, e ele tinha sido baleado na cabeça.”
“As suas mãos estavam amarradas atrás das costas com plástico branco, e ele tinha sido baleado na cabeça”
Relato de Olena Sakhno, ucraniana que perdeu o marido
A esposa de Oleksii Sychevky, de 32 anos, e o pai, de 62, foram mortos quando a coluna de veículos em que viajavam foi alvejada pelo que acreditavam serem forças russas.
Oleksii partilhou à Amnistia Internacional: “A coluna era toda composta por civis em fuga. Quase todos os carros tinham crianças no interior. Quando o nosso carro chegou a uma zona de árvores, ouvi tiros – primeiro, disparos únicos, depois uma explosão de tiros.
“Os disparos atingiram o primeiro veículo do grupo, que parou. Nós éramos o segundo veículo e tivemos de parar também. Depois, fomos atingidos. Pelo menos seis ou sete disparos atingiram o nosso carro. O meu pai foi morto instantaneamente com uma bala na cabeça. A minha mulher foi atingida por estilhaços de metal, e o meu filho também.”
“Pelo menos seis ou sete disparos atingiram o nosso carro. O meu pai foi morto instantaneamente com uma bala na cabeça. A minha mulher foi atingida por estilhaços de metal, e o meu filho também”
Relato de Oleksii Sychevky, ucraniano que perdeu o pai e a esposa num ataque
Os investigadores da Amnistia Internacional que visitaram Bucha, Borodyanka e outras cidades e vilas à volta em abril, após as vítimas terem sido exumadas (quer dos escombros de edifícios desmoronados, ou de campas rasas temporárias nas quais muitas tinham sido enterradas), descobriram que muitos membros das famílias estavam descontentes com o tratamento dos restos mortais dos seus parentes. Os familiares estavam preocupados com o facto de o processamento dos restos mortais ser caótico, de não terem sido mantidos devidamente informados e, em alguns casos, os restos mortais não estarem a ser corretamente identificados.
Em busca de justiça para os crimes de guerra
Execuções extrajudiciais cometidas em conflitos armados internacionais são mortes intencionais e, por isso, crimes de guerra. Ataques indiscriminados e desproporcionados, realizados com intenção criminosa, também o são.
Todos os responsáveis por crimes de guerra devem ser responsabilizados criminalmente pelas suas ações. Sob a doutrina da responsabilidade de comando, os superiores hierárquicos – entre os quais, os comandantes e líderes civis, como ministros e chefes de Estado – que sabiam ou tinham razões para conhecer os crimes de guerra cometidos pelas suas forças, mas não tentaram pôr-lhes fim ou punir os responsáveis, devem igualmente ser responsabilizados sob a justiça.
Quaisquer processos ou mecanismos judiciais devem ser tão abrangentes quanto possível, e garantir que todos os perpetradores de crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e do crime de agressão na Ucrânia, de todas as partes do conflito, sejam levados à justiça em julgamentos justos, sem recurso à pena de morte. Adicionalmente, os direitos das vítimas devem estar no primeiro plano da investigação e acusação por crimes internacionais, e todos os mecanismos judiciais devem adotar uma abordagem centrada nos sobreviventes.
A documentação da Amnistia Internacional sobre as violações de direitos humanos cometidas durante a guerra na Ucrânia e o direito internacional humanitário está disponível aqui.
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