9 Outubro 2018

por Yara Boff Tonella, assessora de imprensa Amnistia Internacional Holanda

Azad sobreviveu uma vez à perigosa viagem do Afeganistão para a Europa. Nem nos seus piores pesadelos alguma vez imaginou que teria de fazer o mesmo caminho de novo.

Miranda conheceu Azad três anos após o jovem afegão ter chegado à Holanda. Ela trabalhava numa organização local que presta apoio a menores não acompanhados e de imediato ficou impressionada com a curiosidade de Azad. “Ele estava sempre muito interessado nas histórias das outras pessoas, em conversar com elas nas ruas”, recorda, a sorrir. “E fazia imensas piadas”.

Azad, que nasceu no Afeganistão, passou a maior parte da sua vida de um lado para o outro em busca de segurança. No início dos anos de 2000, viu-se forçado a fugir do país natal para o Irão, junto com a mãe e o irmão, depois de os talibãs lhe terem matado o pai.

A família não conseguiu obter estatuto legal no Irão, o que significou que os rapazes não poderiam ir à escola e, desesperada em dar aos filhos um futuro melhor, a mãe de Azad decidiu fazer a rota perigosa da Turquia até à Europa.

Tragicamente, ela morreu na travessia, e os seus filhos alcançaram a ilha grega de Lesbos sozinhos, em 2010.

Apesar de ter chegado à Holanda com o irmão mais novo, em 2011, Azad está de novo em Lesbos, encurralado num círculo vicioso pelas cruéis políticas da Europa.

“[Azad] estava sempre muito interessado nas histórias das outras pessoas, em conversar com elas nas ruas. E fazia imensas piadas.”

Miranda, trabalhadora numa ONG na Holanda

Nestes últimos quatro anos, Miranda tem sido a única constante na vida de Azad. Nesta altura, em que apoiantes da Amnistia Internacional por toda a Europa se juntam para uma semana de protestos contra as deportações para o Afeganistão, Miranda falou-nos da amizade incomum que travou com Azad.

Conhecer Azad

Quando Miranda se encontrou com Azad pela primeira vez, numa escola onde dava aulas para capacitar os jovens requerentes de asilo, o rapaz afegão estava ainda profundamente traumatizado e a aproximação foi difícil. Miranda recorda que sentiu que Azad a testava, de início, na tentativa de perceber se podia confiar nela.

Um dia, Miranda tinha combinado encontrar-se com Azad no final da aula, mas a sessão foi cancelada. Decidiu, mesmo assim, visitá-lo, indo à casa dele, a duas horas de distância, com um saco de mercearias. Miranda vê aqui o ponto de viragem na relação entre os dois. “Ele disse-me que se sentiu como se a mãe tivesse aparecido para cuidar dele”, conta, com os olhos a brilharem.

E acrescenta: “Mas ele só pede ajuda quando está desesperado. Não quer que a nossa relação se baseie na minha ajuda. O mais importante para ele é saber que estou lá sempre para o apoiar, mesmo se não concordar com ele”.

“[Azad] só pede ajuda quando está desesperado. Não quer que a nossa relação se baseie na minha ajuda. O mais importante para ele é saber que estou lá sempre para o apoiar, mesmo se não concordar com ele.”

Miranda, trabalhadora numa ONG na Holanda

O irmão mais novo recebeu autorização para permanecer no país pouco após os dois chegarem à Holanda, mas Azad ficou no limbo durante seis anos. Este jovem é homossexual, o que torna o Afeganistão especialmente perigoso para ele. As relações entre pessoas do mesmo sexo são criminalizadas no Afeganistão e os homossexuais são alvo de discriminação e violência horríveis. Apesar desta vulnerabilidade e do facto de viver na Holanda seis anos, as autoridades do país decidiram, ainda assim, fazer Azad regressar ao Afeganistão em 2017. E colocaram-no num centro de detenção enquanto aguardava a deportação.

Um período de luto

Miranda não teve sequer oportunidade de dizer adeus em pessoa a Azad antes de o deportarem, pois o jovem foi mantido em isolamento com as autoridades a temerem que ele fizesse mal a si próprio ou que tivesse reações violentas.

Só lhe permitiram usar o telefone: e ao falar com Miranda, contou como se sentia extremamente assustado com o regresso ao Afeganistão. Miranda temeu que ele se suicidasse e esse medo quase se concretizou: na noite anterior à deportação, Azad tentou cortar a garganta com um vidro partido. O caco não era suficientemente afiado e o jovem tentou então engoli-lo. Os seguranças do centro impediram-no.

Miranda descreve os dias e semanas que se seguiram à deportação de Azad como “um período de luto”. O jovem conseguiu telefonar-lhe de um abrigo em Cabul, gerido pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), no qual fora instalado. Azad contou então que os seguranças do local o alertaram para que não saísse à rua por ser muito perigoso.

Alguns dias apenas depois de Azad ter chegado a Cabul, o jovem viu enormes colunas de fumo pela janela: a embaixada alemã tinha acabado de ser alvo de um atentado à bomba. Mais tarde houve um tiroteio em frente ao abrigo da OIM, pelo que o jovem já não se sentia seguro naquele local – ao longo dos meses que se seguiram andou sempre a mudar-se de um sítio para o outro. Algumas vezes conseguiu alugar quartos nas casas de pessoas, mas frequentemente os talibãs ou outros homens apareciam a bater à porta a fazerem perguntas sobre ele.

“Quando falo contigo, estou feliz o dia todo e sinto que vou conseguir ficar bem.”

Azad, requerente de asilo afegão

“Azad parecia um estrangeiro para as pessoas lá”, explica Miranda.

O jovem tinha ainda os buracos nas orelhas, dos piercings que fizera na Holanda, e isto chamava muito a atenção. Outras pessoas notavam o seu sotaque e pensavam que Azad era do Irão. As pessoas viam que ele era diferente.

Fugir do Afeganistão outra vez

Os receios de Azad eram alimentados também pelo facto de a sua família ser da minoria religiosa xiita naquele país. Durante os anos recentes, os xiitas no Afeganistão têm sido cada vez mais visados pelos talibãs e pelo grupo armado autoproclamado Estado Islâmico.

Azad contou a Miranda que tinha lido um artigo sobre uma família xiita que fora atacada e as pessoas decapitadas, todas. Azad sentia que jamais estaria seguro. Sem possibilidade de começar uma vida no Afeganistão, o jovem fugiu uma vez mais para o Irão. Aí arranjou emprego numa fábrica de calçado, onde dormia debaixo da mesa de trabalho. Ao fim de uns dias, tinha as mãos cobertas de bolhas.

Miranda recebeu fotografias dele no telemóvel: “Ele não conseguia mexer as mãos. Não era capaz sequer de segurar e beber uma chávena de chá”.

O Irão estava a mandar os afegãos de volta ao país natal todos os meses e Azad sabia bem que, de novo, não tinha ali nenhum futuro. Continuando a busca por segurança, decidiu partir para a Turquia. Mas aí havia ainda mais perigos: assim que passou a fronteira, Azad foi intercetado e mantido preso por traficantes junto com os outros homens do grupo em que se deslocava.

Conta Miranda: “Eles deixaram-no telefonar-me para pedir dinheiro. Tinham-no espancado”.

“Eles deixaram [Azad] telefonar-me para pedir dinheiro. Tinham-no espancado.”

Miranda, trabalhadora numa ONG na Holanda

Ao fim de uma semana, Azad conseguiu escapar-se. A próxima vez que Miranda soube dele, já o jovem estava na Grécia.

No campo de Moria: de novo sem saída

Um telefonema, de um voluntário da organização não-governamental Euro Relief, tranquilizou um pouco Miranda com a informação de que Azad estava seguro e instalado no campo de Moria, em Lesbos. Ela sentiu-se aliviada, mas também preocupada. As condições no campo de Moria deterioraram-se desde o verão passado, registando-se altos níveis de violência, incluindo violência sexual, e uma necessidade extrema de cuidados médicos e psicossociais.

Algum tempo depois, foi Azad quem telefonou a Miranda, contando-lhe que tinha sido atacado com uma faca no campo. O jovem afegão estava em perigo não só por ter raízes xiitas e por ser homossexual, mas também porque se convertera ao cristianismo na Holanda.

Temendo pela sua segurança, Azad abandonou o campo e encontra-se atualmente em Lesbos sem abrigo. Não sabe se conseguirá partir da ilha nem se lhe será atribuído asilo na Grécia. A situação é agora diferente de quando Azad fez a sua primeira viagem para a Europa – desta vez ele está enredado nos efeitos do acordo firmado entre a União Europeia e a Turquia, o qual deixou muitos requerentes de asilo encurralados em Lesbos ao longo de vários anos.

Miranda está muito preocupada com o estado emocional de Azad.

“Ajudar alguém não tem de passar por fazer algo prático, como reunir coisas para lhe mandar. A atenção que lhe dedicamos, estar com a pessoa ou falar com ela, tratá-la como uma pessoa, isso faz mesmo uma grande diferença.”

Miranda, trabalhadora numa ONG na Holanda

“Aquilo por que ele está a passar é tão mau e já há tanto tempo. Por isso é tão urgente ajudá-lo. Não julguei que ele fosse capaz de fazer outra vez a perigosa viagem para chegar à Europa”, expressa.

Permanecer positivo é um enorme desafio. Miranda sabe que muitas pessoas se sentem esgotadas ou impotentes ao saberem o que se passa nas ilhas gregas, assim como no Afeganistão.

“Mas ajudar alguém não tem de passar por fazer algo prático, como reunir coisas para lhe mandar. A atenção que lhe dedicamos, estar com a pessoa ou falar com ela, tratá-la como uma pessoa, isso faz mesmo uma grande diferença”, explica Miranda.

Quando Azad se sente deprimido, e nem lhe apetece pegar no telefone para falar com Miranda, ela envia-lhe uma mensagem de voz ou uma fotografia, às vezes dela com a filha. É assim que ele “recarrega as baterias”. Azad disse a Miranda: “Quando falo contigo, estou feliz o dia todo e sinto que vou conseguir ficar bem”.

Europa: porque estás a mandar as pessoas para o perigo?

Miranda não compreende por que razão a Holanda e outros países da Europa estão a fazer os afegãos regressarem ao perigo. “Até as Nações Unidas dizem que o Afeganistão não é um país seguro. A situação é mesmo muito má e só está a piorar. O conflito no Afeganistão arrasta-se há já tanto tempo; o mundo tem responsabilidades para com o Afeganistão”, sustenta ainda. E acrescenta: “No final de contas, é uma questão de compaixão. Se isto nos acontecesse a nós, o que gostaríamos que as outras pessoas fizessem?”

“É uma questão de compaixão. Se isto nos acontecesse a nós, o que gostaríamos que as outras pessoas fizessem?”

Miranda, trabalhadora numa ONG na Holanda

E como vê Miranda o futuro de Azad?

“Se ele receber a autorização para ficar na Grécia, a história começa toda de novo. E mesmo que um dia lhe seja dada a autorização na Holanda, tudo será muito difícil para ele. [Azad] está à espera há tanto tempo, e num período da vida em que a maior parte dos jovens começam as suas vidas… Mas ele também é muito forte, as pessoas gostam dele imediatamente. Ele é bom com as coisas técnicas. Talvez possa começar alguma espécie de treino técnico.”

Azad não deveria estar preso neste pesadelo, em fuga constante de um risco para outro. É mais do que chegada a hora de a Europa assumir as responsabilidades que tem de libertar Azad – e tantos outros como ele – deste círculo vicioso, prestando-lhe a proteção de que ele precisa. E tem de parar de o mandar de volta para o perigo.

  • 80 milhões

    80 milhões

    Em 2020, existiam mais de 80 milhões de pessoas que foram forçadas a sair do seu local de origem devido a perseguição, violência, conflito armado ou outras violações de direitos humanos.
  • 26 milhões

    26 milhões

    No final de 2020 estimava-se a existência de 26 milhões de refugiados no mundo.
  • 45 milhões

    45 milhões

    Mais de 45 milhões de pessoas foram forçadas a deixar as suas casas permanecendo dentro do seu próprio país (deslocados internos).
  • 4 milhões

    4 milhões

    Estima-se que existam mais de 4 milhões de pessoas em todo o mundo consideradas "apátridas" – nenhum país as reconhece como nacional.

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