6 Fevereiro 2015

A tragédia numa praia fronteiriça de Espanha há um ano mostra bem como as políticas de fronteiras da União Europeia estão a forçar milhares de pessoas a cada vez maiores riscos para chegarem à Europa. Aqui, Alberto Senante, da Amnistia Internacional Espanha, passa em revista o que sabemos sobre o que aconteceu ao largo de Ceuta, o que talvez nunca descubramos e o que é preciso fazer para que as 14 mortes do Tarajal não se repitam.

Faz um ano hoje [6 de fevereiro] que pelo menos 14 pessoas morreram a apenas alguns metros da costa da praia do Tarajal, em Ceuta, um pequeno enclave espanhol que faz fronteira com o Norte de Marrocos.

Sabemos já muito sobre o que aconteceu naquela manhã, graças a filmagens de vídeo e testemunhos prestados por sobreviventes da tragédia. Mas um ano passado e apenas uma das vítimas mortais foi formalmente identificada pelo Governo espanhol – todas as outras permanecem anónimas.

Cerca de 200 pessoas tentaram entrar naquele território de Espanha na madrugada de 6 de fevereiro de 2014. Pelo menos 14 morreram afogadas a metros da costa e 23 foram levadas de volta para Marrocos após terem sido apanhadas já em solo espanhol por agentes da Guarda Civil.

Depois de repetidos desmentidos feitos pelo ministro do Interior, Fernández Díaz, o secretário de Estado para a Segurança, Francisco Martínez, veio finalmente admitir perante o Parlamento que agentes da Guarda Civil usaram “equipamento antimotim” para impedir os migrantes de chegarem a solo espanhol, tendo disparado 145 balas de borracha e cinco granadas de fumo.

Sabemos assim que agentes das forças policiais espanholas dispararam contra pessoas que se encontravam nas águas ao largo de Ceuta, as quais estavam também a ser perseguidas por uma patrulha marroquina. Mas não sabemos os seus nomes, nem tão pouco quem deu a ordem para disparar.

Francisco Martínez fez questão de frisar que nenhum dos homens que conseguiram alcançar a costa de Ceuta estava ferido e que a Guarda Civil disparara apenas enquanto as pessoas ainda estavam em águas marroquinas. Mas porque é que ninguém tentou socorrer aqueles que se estavam a afogar?

O secretário de Estado para a Segurança sustentou que os agentes não estavam autorizados a entrar em águas estrangeiras. Quer dizer: a fronteira impediu-os de salvar os homens que se afogavam à frente deles, mas não travou as balas de borracha que dispararam contra eles. E pelo menos 14 pessoas pagaram isto com as suas vidas.

O que aconteceu naquele dia é o exemplo mais gritante a que já assistimos daquilo em que consiste a política de fronteiras do Governo espanhol: Entrada proibida. A qualquer custo.

Os mortos sem nome

Quem eram as pessoas que morreram naquela manhã? Pensa-se saber a identidade de pelo menos seis homens, mas só um foi oficialmente identificado e parece que passado todo este tempo é impossível identifica-los a todos. Uma vez mais: conhecemos os números, mas oficialmente estas pessoas não têm nomes.

Vídeos e testemunhos indicam que a maior parte eram homens jovens de países da África subsariana. Podemos deduzir que morreram já na última fase de uma viagem que lhes custou meses a fazer, se não mesmo anos. Talvez estivessem em fuga de conflitos em África ou no Médio Oriente. Talvez quisessem reunir-se a familiares na Europa. Ou talvez estivessem apenas a fugir da fome.

Talvez alguns dos 14 que morreram nas águas ao largo de Ceuta e dos 23 que foram mandados de volta para Marrocos depois de terem conseguido alcançar solo espanhol fossem perseguidos nos seus países de origem pelas suas ideias políticas, pela sua etnicidade ou orientação sexual.

Se assim era, tal exigia que a Espanha (cumprido as suas próprias leis) lhes desse o estatuto de refugiados.

Nunca o saberemos.

Para o Governo espanhol é agora rotina esta prática de empurrar as pessoas para trás, de volta para o outro lado da fronteira, antes de fazer quaisquer perguntas, tanto em Ceuta como em Melilla, o outro enclave espanhol no Norte de África.

Uma tragédia simbólica

O que aconteceu em El Tarajal mostra como as políticas de fronteiras da Espanha e da Europa estão a obrigar milhares de pessoas a correrem cada vez maiores riscos para concretizarem os seus sonhos de uma vida melhor, ou apenas para sobreviverem. Estima-se que 22.000 pessoas morreram a tentar chegar à Europa desde 2000.

E porquê arriscar a vida se é possível tão simplesmente requerer asilo e apresentar o caso às autoridades, seguindo os procedimentos consagrados na lei internacional?

Passou-se um ano, mas as políticas de fronteiras da Espanha não mudaram. A investigação ao que se passou em Tarajal parece ter paralisado. Poderemos nunca conseguir responsabilizar ninguém por estas mortes, e garantir que uma tragédia similar não volta a acontecer.

Há porém algo que mudou neste último ano. Para pior. O Governo espanhol planeia agora lançar mão da nova Lei de Segurança Pública para reenviar automaticamente para Marrocos quem quer que passe as fronteiras de Ceuta e de Melilla. Isto será uma violação clara dos padrões internacionais a que a Espanha está vinculada.

Nenhuma lei pode impedir o drama e sofrimento humano que se desenrola nas fronteiras da Europa. Só tratando os migrantes e os refugiados com humanidade, cumprindo a lei internacional, é que conseguimos impedir que se repitam novas tragédias de mortes anónimas nas nossas costas.

 

A Amnistia Internacional tem em curso desde 20 de março de 2014 a campanha “SOS Europa, as pessoas acima das fronteiras“, iniciativa de pressão a nível global para que a Europa mude as políticas de migração e asilo, no sentido de que migrantes, refugiados e candidatos a asilo sejam tratados com dignidade à chegada às fronteiras europeias. Aja connosco! Inste os líderes europeus a porem as pessoas acima das fronteiras, assine a petição.

 

Artigos Relacionados