14 Dezembro 2022

A pandemia de COVID-19, a agressão da Rússia contra a Ucrânia e um foco generalizado nos “valores tradicionais” contribuíram para a deterioração dos direitos humanos e para o aumento da violência doméstica e outras formas de violência com base no género na Europa de Leste e na Ásia Central, referiu hoje a Amnistia Internacional na sequência da publicação de um novo relatório.

O relatório “Europa de Leste e Ásia Central: Proteger as Mulheres da Violência em Crises e para além delas”, expõe os desafios institucionais, sociais e culturais enfrentados pelos sobreviventes de violência doméstica na região e demonstra o quanto as instituições estatais estão desinteressadas e mal adaptadas relativamente às suas necessidades. As salvaguardas institucionais, jurídicas e outras contra tais violências são amplamente inadequadas devido a um aumento da retórica política tradicional, patriarcal e abertamente misógina.

“Os efeitos da pandemia de COVID-19 não podem ser separados dos ineficazes quadros jurídicos e institucionais na região, nem de dinâmicas políticas e sociais profundamente danosas”

Natalia Nozadze

“A Amnistia Internacional documentou os efeitos nefastos da pandemia de COVID-19 e das medidas de confinamento sobre as salvaguardas contra a violência doméstica na Europa de Leste e na Ásia Central. Esses efeitos não podem ser separados dos ineficazes quadros jurídicos e institucionais na região, nem de dinâmicas políticas e sociais profundamente danosas”, afirmou Natalia Nozadze, investigadora da Amnistia Internacional para a Europa de Leste e a Ásia Central.

“A pandemia, a invasão russa da Ucrânia, os horrores indescritíveis dos conflitos e as suas ramificações em toda a região têm tornado tudo mais difícil para quem sofre com violência doméstica. Atualmente, também é mais difícil fugir de situações inseguras, aceder a abrigos e outros serviços de apoio críticos, obter ordens de proteção ou depender de soluções legais eficazes”.

 

Promoção de “valores tradicionais” prejudica a proteção a sobreviventes

De acordo com dados recentes da Organização Mundial de Saúde, cerca de 20% das mulheres na Europa de Leste e 18% das mulheres na Ásia Central sofreram violência física ou sexual durante a sua vida. Simultaneamente, a maioria dos países da região não tomou posição contra essa violência nem deu passos efetivos para proteger os direitos das mulheres.

Nos últimos anos, a proteção dos direitos das mulheres e raparigas, incluindo as sobreviventes de violência doméstica, foi reduzida em todo o mundo, sendo disso exemplo a decisão do Supremo Tribunal dos EUA de reverter o direito ao aborto e a retirada da Turquia da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul). Muitos governos na Europa de Leste e na Ásia Central acompanharam esta tendência geral.

“Os governos da Europa de Leste e da Ásia Central estão a promover cada vez mais os ‘valores tradicionais’ e a equiparar a proteção da igualdade de género e dos direitos das mulheres com uma perda de identidade cultural e tradicional, como parte dos esforços para garantir um apoio mais amplo à sua agenda contrária aos direitos humanos. As atitudes patriarcais, a misoginia e a homofobia não só se tornaram mais entrincheiradas, como floresceram”, sustentou Natalia Nozadze.

As autoridades russas dão um exemplo destacado, tendo introduzido a homofobia promovida pelo Estado e uma repressão implacável sobre os direitos humanos e os direitos das mulheres. Em 2017, o Parlamento russo até descriminalizou algumas formas de violência doméstica. As alterações constitucionais aprovadas em 2020 promoveram a “proteção da família” e a “proteção do casamento como união entre um homem e uma mulher”.

Da mesma forma, em 2017, o Cazaquistão descriminalizou a “inflição intencional de ferimentos ligeiros” e a “lesão corporal”, ao mesmo tempo que enfraqueceu a proteção a sobreviventes de violência doméstica. Tanto na Rússia, como no Cazaquistão, ativistas relataram um pico de casos de violência doméstica após a descriminalização.

A Bielorrússia contemplou um projeto de lei sobre violência doméstica, mas rejeitou-o em outubro de 2018, depois de o Presidente Aleksandr Lukashenko ter dito que o mesmo era contra as “tradições bielorrussas e eslavas” e ter acrescentado que um “bom cinto pode ser, por vezes, útil” em contextos domésticos. As mulheres bielorrussas são desencorajadas de denunciar a violência doméstica, pois tal pode desencadear um processo no qual a sua família entraria num registo de “risco social”, podendo resultar na perda de direitos parentais e na institucionalização dos seus filhos.

Outros líderes, incluindo o Presidente Ilham Aliyev, do Azerbaijão, em 2019, apoiaram abertamente “um Estado baseado nos valores tradicionais”, em oposição a uma sociedade que “não distingue entre homens e mulheres”. O Azerbaijão continua a forçar as sobreviventes de violência doméstica a passarem por uma mediação obrigatória com os seus abusadores para um “restabelecimento dos assuntos familiares”.

 

Insuficiências legais, abordagens erradas

Apenas três países na região, a Geórgia, a Moldávia e a Ucrânia, são Estados membros da Convenção de Istambul, que juntamente com o Quirguistão criminalizaram diretamente a violência doméstica. Embora a maioria dos países na região tenha feito alguns progressos ao adotar ou reformar as suas leis para combater a violência doméstica, a região carece de mecanismos eficazes de proteção e apoio a sobreviventes de violência doméstica, uma vez que as leis e as políticas existentes continuam a ser inadequadas.

No Uzbequistão, as autoridades locais foram incumbidas de “fortalecer as relações familiares e de se opor a várias influências prejudiciais alheias à mentalidade nacional”. Para as autoridades da Arménia e do Azerbaijão, alcançar a reconciliação familiar em situações de violência doméstica é o objetivo principal. No Cazaquistão, os processos judiciais contra um abusador podem ser encerrados em caso de reconciliação. Na Rússia e no Tajiquistão, as sobreviventes da violência carregam o fardo de provar que sofreram danos — normalmente, a polícia e os procuradores não as assistem nesta tarefa.

Mesmo em países onde a violência doméstica é criminalizada, muitas vezes os penosos obstáculos legais deixam as sobreviventes sem proteção ou acesso à justiça efetivos. Na Ucrânia, a violência doméstica só cumpre o patamar de uma infração penal se tiver sido oficialmente documentada como “sistemática”, o que significa que o perpetrador tem de ter enfrentado processos administrativos por violência doméstica em pelo menos três ocasiões distintas.

 

Falta de infraestruturas de apoio

Em toda a Europa de Leste e na Ásia Central, o acesso a proteção e a informação para sobreviventes de violência doméstica continua a ser totalmente inadequado. Nenhum dos países da região está perto de atingir os padrões mínimos estabelecidos pelo Conselho da Europa, que exigem um espaço disponível num abrigo para cada 10 mil pessoas.

Em muitos países da região, as autoridades recusaram-se a cumprir a sua obrigação de criar instituições de apoio a sobreviventes. Ao invés, os abrigos são muitas vezes geridos e suportados financeiramente por organizações sem fins lucrativos. Na Rússia, existem apenas 14 abrigos estatais para mulheres, entre uma população de 146 milhões de pessoas. Na Ucrânia, antes da invasão da Rússia, existiam apenas 33 abrigos para uma população de cerca de 42 milhões de pessoas.

As mulheres também vivenciam dificuldades significativas em aceder a serviços de saúde sexual e reprodutiva. Na Ásia Central, três em cada cinco mulheres relatam dificuldades no acesso a tais serviços.

O acesso ao aborto também se deteriorou durante a pandemia de COVID-19. Na Rússia, um grupo de defesa dos direitos das mulheres reportou que, no auge da pandemia, em abril de 2020, apenas três dos 44 hospitais de Moscovo que contactaram estavam prontos para prestar serviços de aborto não urgente.

 

Mais apoio para sobreviventes de violência é crucial

Todos os países na região devem urgentemente criminalizar a violência doméstica, remover o ónus da prova sobre as sobreviventes e desistir das políticas que exigem mediação obrigatória e reconciliação em benefício da preservação familiar. As autoridades devem igualmente disponibilizar recursos adequados para serviços de proteção e apoio, incluindo abrigos, e garantir que os serviços de saúde sexual e reprodutiva permanecem disponíveis e acessíveis.

“É absolutamente crucial que a proteção e o empoderamento das mulheres desempenhem um papel central nas políticas de saúde pública, contudo, para muitos países da Europa de Leste e da Ásia Central, este ideal continua a ser um objetivo totalmente inalcançável. Mas há uma ferramenta para estabelecer um quadro jurídico eficaz e abrangente sobre a violência doméstica – a inovadora Convenção de Istambul. Está aberta à Bielorrússia, à Rússia e aos países da Ásia Central, juntamente com os que pertencem ao Conselho da Europa”, disse Natalia Nozadze.

“No entanto, quaisquer mudanças institucionais serão débeis a menos que os governos abordem o aumento das narrativas ‘tradicionais’, que continuam a reverter os direitos das mulheres. Em vez de explorar estas atitudes para obterem ganhos políticos, os governos da região devem colocar os direitos das mulheres no centro das suas políticas”.

Recursos

Artigos Relacionados