10 Março 2023

 

  • A invasão da Rússia à Ucrânia tem tido um efeito nocivo sobre a saúde mental, física, sexual e reprodutiva das mulheres
  • Crescem as preocupações sobre a violência sexual e violência baseada no género
  • As mulheres devem ter um papel proativo nos processos de decisão

 

À medida que a guerra na Ucrânia entra no seu segundo ano, as mulheres que permanecem nas zonas de conflito deparam-se com graves desafios, responsabilidades acrescidas e grandes níveis de stress.

“As mulheres suportam repetidamente o peso da brutalidade da guerra. Também elas estão na linha da frente do conflito – enquanto militares e combatentes, médicas e enfermeiras, voluntárias, ativistas, cuidadoras das suas comunidades e famílias, pessoas deslocadas internamente, refugiadas e, com demasiada frequência, vítimas e sobreviventes”, declarou Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional.

“Também as mulheres estão na linha da frente do conflito – enquanto militares e combatentes, médicas e enfermeiras, voluntárias, ativistas, cuidadoras das suas comunidades e famílias, pessoas deslocadas internamente, refugiadas e, com demasiada frequência, vítimas e sobreviventes”

Agnès Callamard

“A invasão em larga escala da Rússia à Ucrânia não é diferente. As mulheres enfrentam um aumento da violência sexual e violência com base no género, assim como condições de saúde perigosas, enquanto são forçadas a tomar decisões de vida ou morte para as suas famílias. No entanto, são frequentemente excluídas dos processos de decisão e os seus direitos e necessidades permanecem desprotegidos e ignorados.”

A Amnistia Internacional insta a comunidade internacional a apoiar e a solidarizar-se com as mulheres que sofrem violações de direitos humanos no conflito em solo ucraniano. Garantir a segurança e proteção dos civis, em especial dos que se encontram em zonas de guerra, é crucial. Assegurar o acesso a ajuda financeira e serviços, como cuidados de saúde, é de igual indispensabilidade. A organização relembra ainda que os perpetradores de crimes à luz do direito internacional devem ser responsabilizados.

“[As mulheres] são frequentemente excluídas dos processos de decisão e os seus direitos e necessidades permanecem desprotegidos e ignorados”

Agnès Callamard

A Amnistia Internacional tem documentado crimes de guerra e prováveis crimes contra a humanidade cometidos na Ucrânia, tendo recolhido testemunhos angustiantes de mulheres na Ucrânia que detalham o impacto da invasão sobre a sua segurança, saúde e bem-estar.

 

‘Não há ninguém para cuidar deles a não ser eu’

Na Ucrânia, ainda que muitas mulheres se tenham juntado às equipas ucranianas de resistência à agressão russa, há vários casos onde os cuidados de crianças e de outros familiares continuam a recair, de forma desproporcionada, sobre elas mesmas. Gerir estas responsabilidades é especialmente difícil sob as perigosas condições do conflito.

Tamara*, uma mulher residente na zona de conflito de Donetsk Oblast, partilhou à Amnistia Internacional os efeitos da invasão sobre si, enquanto mãe e cuidadora dos seus pais: “Tudo mudou para pior. Os homens da família estão na guerra, as mulheres são deixadas sozinhas, muitas com crianças pequenas às costas e sem qualquer rendimento. Não existe ajuda.”

“As mulheres são deixadas sozinhas, muitas com crianças pequenas às costas e sem qualquer rendimento. Não existe ajuda”

Relato de uma sobrevivente ucraniana

Forçada a escolher entre abandonar os seus pais e manter seguros os seus filhos, Tamara enfrentou uma decisão impossível:“Voltei para a zona de perigo com os meus filhos. Talvez tenha sido um erro, mas preciso de cuidar dos meus filhos e os meus pais idosos. Este é o meu dever, não há ninguém para cuidar deles a não ser eu. Não tenho escolha”.

Para muitas mulheres, viajar para um local seguro pode acarretar um custo emocional e físico devastador. Maryna*, deslocada interna que fugiu da ocupação russa de Donetsk Oblast com os seus filhos, declarou à Amnistia Internacional: “É muito difícil. Estou sozinha e tenho três crianças. Ninguém acreditava que a guerra viria. Tem sido aterrador. Houve combates intensos aqui perto e ouvimos tudo. Havia aviões militares russos a voar tão baixo que podíamos ver os olhos dos pilotos — isso amedrontava muito as crianças.

“Havia aviões militares russos a voar tão baixo que podíamos ver os olhos dos pilotos — isso amedrontava muito as crianças”

Relato de uma sobrevivente ucraniana

“Desde aquele dia, vivemos numa cave durante quase um mês, porque as crianças estavam mesmo assustadas. A minha filha já não conseguia dormir em casa. Os meus filhos estão a enfrentar graves sequelas mentais e emocionais. Em geral, não há nenhum lugar onde possamos sentir-nos seguros, devido aos bombardeamentos e aos alertas de ataque aéreo”, afirmou.

 

A saúde mental, física, sexual e reprodutiva das mulheres  

Os ataques contínuos da Rússia às principais infraestruturas civis, que equivalem a crimes de guerra, prejudicaram gravemente o acesso aos cuidados de saúde para quem vive na Ucrânia.

Kateryna*, deslocada interna que estava grávida de nove semanas e vivia em Donetsk Oblast quando a invasão começou, relatou à Amnistia Internacional: “Não sabia o que nos aconteceria. Havia rumores sobre os processos de retirada de civis, sobre médicos a partir. Não consegui fazer o ultrassom e todos os testes, não havia acesso. Tudo isso agravou a minha ansiedade.”

Após fugir para Dnipro, Kateryna enfrentou constantes dificuldades ao tentar lidar com um bebé recém-nascido enquanto trabalhava numa zona de conflito: “A linha da frente está a aproximar-se da nossa cidade. A incerteza é o aspeto mais assustador. Onde estaremos amanhã? Conseguiremos voltar para casa? Falta ajuda psicológica e, com a minha bebé, não tenho tempo suficiente para conciliar terapia por telemóvel. Mas sinto que preciso disso.”

Para as mulheres e raparigas que menstruam, os fornecimentos limitados e o aumento dos preços dos produtos para a menstruação estão a forçá-las escolher entre alimentos e produtos sanitários: “Há pensos e tampões à venda, mas com os problemas financeiros que a guerra trouxe, preciso de escolher a comida em primeiro lugar. Depois do início da invasão, comecei a usar meios improvisados”, relatou Tamara.

“Há pensos e tampões à venda, mas com os problemas financeiros que a guerra trouxe, preciso de escolher a comida em primeiro lugar”

Relato de uma sobrevivente ucraniana

Yulia*, cuja casa foi destruída pelos ataques aéreos russos, contou à Amnistia Internacional que conseguiu ter acesso a produtos menstruais para si e para a sua filha num centro de apoio para pessoas deslocadas internamente.

 

Violência sexual e violência com base no género

A violência com base no género intensifica-se nas regiões afetadas pelos conflitos. Entre os motivos estão a falta de segurança, a ausência ou erosão do Estado de direito, a impunidade generalizada dos perpetradores de crimes e a falta de confiança nas autoridades ocupantes.

Maryna*, trabalhadora humanitária, mencionou à Amnistia Internacional: “O abuso sexual é um problema enorme para as mulheres. Nas formações para este trabalho, fomos informados de que também crianças, após os processos de retirada de zonas ocupadas, mostravam sinais de terem vivenciado abuso sexual.”

Enquanto trabalhava num ponto de concentração para pessoas deslocadas internas, Maryna testemunhou a intensificação da violência doméstica: “Havia cerca de 60 pessoas a viver num ginásio. Eu trabalhava neste tema antes mas, mesmo sem a minha experiência, os sinais de violência podiam ver-se a olho nu. Vi muita violência naquele sítio.”

Kateryna afirmou à Amnistia Internacional: “Sinto-me mais vulnerável agora. Há mais conflitos em casa. A agressão do meu marido deixou só de ser contra mim e passou também para o meu filho mais velho. Sinto que não posso deixar os meus filhos com o meu marido devido à incerteza que sinto ao longo do dia. Ele perdeu o seu emprego e está mais instável.”

 

Incluir as mulheres nos processos de tomada de decisão

As mulheres devem participar proativamente nos processos de tomada de decisão a todos os níveis, para assegurar que as suas necessidades e perspetivas específicas têm reflexo e são integradas nas leis, políticas e práticas.

À medida que a invasão avança para o seu segundo ano, as crianças veem a sua segurança ser relegada para segundo plano devido ao conflito, as mulheres são forçadas a submeter-se a viagens difíceis e perigosas para conseguir alcançar relativa segurança, gerindo um maior esforço de responsabilidades e cuidados.

A Amnistia Internacional está a apelar a um esforço concertado da comunidade internacional para garantir a participação significativa das mulheres em processos de tomada de decisão – desde as deliberações internacionais sobre apoio financeiro, reparações e esforços de reconstrução até à provisão de ajuda humanitária e de processos de justiça para vítimas e sobreviventes desta guerra. Só através da inclusão das mulheres em todos os níveis podemos assegurar que as suas necessidades são supridas, apoiadas e priorizadas, e que os seus direitos são respeitados, protegidos e cumpridos.

*Nomes alterados para proteger identidades.

Artigos Relacionados