25 Maio 2021

Sobreviventes de experiências traumáticas e outros com necessidades de apoio na Serra Leoa, estão a ser deixados para trás pela grave ausência de serviços de saúde mental, anos após a brutal guerra civil e a devastadora epidemia de Ébola, alertou a Amnistia Internacional num novo relatório publicado hoje.

Em ‘Estão a esquecer-se de nós: O impacto de longo prazo da guerra e do Ébola na saúde mental na Serra Leoa’ (em inglês: ‘They Are Forgetting About Us’: The long-term mental health impact of war and Ebola in Sierra Leone), sobreviventes revelam como continuam a debater-se com um leque de sintomas de angústia, incluindo o luto prolongado.

No entanto, os serviços de saúde mental no país estão muito aquém das necessidades das pessoas, devido a múltiplas barreiras, como a falta de investimento governamental, apoio insuficiente dos doadores, escassez de profissionais de saúde mental qualificados, e a concentração dos poucos serviços disponíveis nas grandes cidades.

” A saúde mental não é um luxo, é um direito humano fundamental.”

Rawya Rageh, equipa de resposta a crises da Amnistia Internacional

“Na Serra Leoa, as pessoas suportaram traumas aterradores nas últimas décadas, e o país está agora também a lidar com o rescaldo da pandemia da COVID-19”, disse Rawya Rageh, da equipa de resposta a crises da Amnistia Internacional.

“A Serra Leoa, como muitos outros países, enfrenta constrangimentos financeiros e os desafios de um sistema de saúde enfraquecido – mas a saúde mental não é um luxo, é um direito humano fundamental”.

“O governo da Serra Leoa deve agora traduzir os seus compromissos políticos em ações tangíveis, investindo na melhoria dos serviços de saúde mental. Trabalhando em conjunto com agentes nacionais, governos doadores e agências devem providenciar a assistência necessária para priorizar estes sistemas de cuidados tão importantes.”

A Amnistia Internacional está também a apelar ao governo para agilizar o processo de aprovação de nova legislação de saúde mental para substituir a discriminatória ‘Lei da Loucura’ de 1902 – da era colonial -, de forma a alinhar a lei nacional com as obrigações internacionais de direitos humanos.

 

Trauma relacionado com o conflito

A exposição repetida a trauma em conflito torna as pessoas mais propensas a desenvolver problemas de saúde mental. Muitos sobreviventes da guerra civil disseram à Amnistia Internacional terem testemunhado a destruição das suas casas e povoações por forças rebeldes. Muitos viram os seus entes queridos serem abatidos a tiro, ou descobriram os seus corpos enquanto fugiam.

Muitas pessoas foram deixadas com lesões e incapacidades físicas permanentes após terem sido baleadas ou atingidas por estilhaços. Cinco entrevistados foram submetidos a amputações grosseiras por forças rebeldes, uma das atrocidades caraterísticas da guerra. Descreveram terem implorado pelas suas vidas enquanto os combatentes cortavam uma ou ambas as suas mãos ou braços.

Marie* disse à Amnistia Internacional que a sua aldeia foi atacada, no final dos anos 1990, por forças rebeldes que lhe cortaram a mão esquerda: – “Implorei-lhes, para que me poupassem em nome de Deus. Mas eles responderam-me, dizendo que ali, eles é que eram Deus e que decidiam se eu viveria ou morria”.  Marie disse que os combatentes a deixaram à morte, e teve de ser ela própria a acabar de cortar a sua mão esquerda de forma a salvar a sua vida.

 

Trauma relacionado com o Ébola

Sobreviventes do Ébola disseram à Amnistia Internacional o grande impacto psicológico que sofreram devido à doença e às suas repercussões. Muitos descreveram estar tão doentes que não sabiam se iriam sobreviver. Mencionaram ainda que a confusão, a ausência de informação e, em geral, a fraca gestão governamental da crise contribuíram para o seu sofrimento.

A maioria dos sobreviventes do Ébola entrevistados disse estar profundamente afetada pelo estigma e pela discriminação que enfrentaram, mesmo após a sua recuperação. Vários disseram que alguns membros da comunidade os culparam por trazerem a doença para as suas zonas.

Vários sobreviventes disseram que o vírus tirou a vida a familiares diretos. Kaday* descreveu ter partilhado um quarto de hospital com quatro irmãos, depois de todos terem contraído o vírus em 2014. “Eles morreram, e eu fui a única a cobri-los. Apesar de estar ligada a uma máquina, tive de gatinhar no chão para tapar os seus rostos.”, assume.

A maioria dos sobreviventes do Ébola entrevistados continuam a lidar com várias complicações de saúde, incluindo dor e fraqueza muscular, problemas oculares, pressão sanguínea irregular e amnésia. Outros disseram ainda que a COVID-19 tinha trazido de volta memórias angustiantes e reavivado o seu medo persistente da morte.

Estigma social e ausência de apoio

Na Serra Leoa, persiste um enorme estigma em torno das condições de saúde mental, com mitos comuns a atribuí-las a causas sobrenaturais. As pessoas com sofrimento psicológico e condições de saúde mental enfrentam frequentemente abuso, com o esforço do governo, através de campanhas de sensibilização e informação do público, a ser insuficiente para combater este panorama.

Apesar da clara e enorme necessidade, a provisão de cuidados de saúde mental é escassa. Com uma população de sete milhões de pessoas, a Serra Leoa tem apenas cerca de 20 enfermeiros de saúde mental e três psiquiatras.

O número muito reduzido de enfermeiros de saúde mental colocados em hospitais gerais em todo o país, recebe um apoio totalmente insuficiente, suportando condições de trabalho difíceis e carecendo de provisões formais de transporte para visitas domiciliárias.

Dos 25 sobreviventes da guerra e do Ébola entrevistados pela Amnistia Internacional, 15 disseram não ter conhecimento de qualquer serviço de aconselhamento psicológico, quer através de instalações de saúde governamentais, quer de ONGs. Globalmente, os serviços de saúde mental formais que estão disponíveis permanecem extremamente centralizados; existe uma clara escassez de cuidados de base comunitária.

Amina*, uma sobrevivente da guerra, disse à Amnistia Internacional: “Precisamos desse tipo de apoio e desse tipo de serviços de aconselhamento na nossa comunidade, para que as pessoas com experiências traumáticas e as que estão a atravessar todo este tipo de stress sejam capazes de compreender que a vida devia continuar, [que] há uma vida e eles precisam de a viver.”

Ao invés, muitos sobreviventes dependem de redes de apoio de pares que, ainda que importantes, não são um substituto suficiente de serviços profissionais de saúde mental.

A pobreza é um fator adicional que afeta gravemente a saúde mental. Muitos sobreviventes disseram que as promessas não cumpridas de proteção social e as oportunidades de sustento reduzidas prejudicaram ainda mais o seu bem-estar, fazendo-os sentir abandonados, pelo governo e pelas organizações internacionais que, anteriormente, providenciavam assistência.

Mariatu*, uma sobrevivente de Ébola, afirma: “De tantas maneiras diferentes, eles estão a esquecer-se de nós.”

Embora os programas de emergência humanitária tenham ajudado a providenciar apoio de saúde mental temporário, uma grande parte terminou no rescaldo das respetivas crises imediatas. O relatório mostra que é necessário investimento de longo prazo em serviços governamentais para providenciar cuidados sustentáveis e efetivos.

“Não só a saúde mental é um direito humano, como é um bem público. O governo da Serra Leoa deve agora priorizar suficientemente a saúde mental e requerer alocações específicas de doadores para expandir adequadamente os seus serviços de saúde mental e psicossociais”, sublinha Rawya Rageh.

“Estamos também a apelar a doadores internacionais para que deem apoio adicional a campanhas dirigidas a combater o estigma que persiste em torno da saúde mental. Esta crise não pode continuar.”

Metodologia

Entre novembro de 2020 e maio de 2021, a Amnistia Internacional realizou investigação e entrevistou 55 pessoas, incluindo 25 serra-leoneses através de cinco regiões, que estiveram diretamente expostos a violência durante a guerra ou contraíram o vírus Ébola. As idades dos sobreviventes entrevistados – 16 mulheres e nove homens – variavam entre os 28 e os 73 anos.

A Amnistia Internacional também entrevistou, entre outros, profissionais de saúde mental serra-leoneses; responsáveis governamentais; membros de organizações da sociedade civil, incluindo a Mental Health Coalition – Serra Leoa; especialistas em saúde pública e especialistas em saúde mental.

Contexto

Entre março de 1991 e janeiro de 2002, a Serra Leoa vivenciou um conflito armado durante o qual foram mortos dezenas de milhares de civis, e mais de dois milhões de pessoas foram forçadamente deslocadas.

Em 2014, quando a Serra Leoa ainda se debatia com a reconstrução pós-guerra, um surto de Ébola afetou a África Ocidental. Segundo a Organização Mundial de Saúde, entre maio de 2014 e março de 2016, foram registados no país uns estimados 14.124 casos, que culminaram em 3.956 mortes.

 

Recursos

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