27 Junho 2025

 

É difícil não reparar nos crescentes debates em torno da palavra “género”. Nas últimas décadas, registaram-se ganhos históricos na luta pela igualdade de acesso a direitos e oportunidades para mulheres e raparigas em todo o mundo. Embora ainda haja um longo caminho a percorrer, foram feitos alguns progressos no sentido do reconhecimento dos direitos das pessoas LGBTI.

No entanto, uma perigosa reação “antigénero” está a espalhar-se, ameaçando os direitos humanos de milhões de pessoas em todo o mundo. A desinformação está a ser utilizada como arma para usar o “género” para atacar tudo, desde a educação sexual abrangente e o desporto até aos direitos LGBTI e aos direitos sexuais e reprodutivos.

As recentes declarações políticas e jurídicas, incluindo o dececionante acórdão do Supremo Tribunal do Reino Unido sobre a leitura da Lei da Igualdade do Reino Unido e os decretos do Presidente dos EUA, Donald Trump, que procuram “proteger as mulheres da ideologia de género”, entre outras, revelam um retrocesso alarmante para a repressão, a intolerância e a discriminação.

 

O que é o género?

Em termos gerais, o género pode ser entendido como um conjunto de normas, papéis e comportamentos socialmente construídos. Estes estão associados ao sexo atribuído a uma pessoa à nascença, o que condiciona o seu acesso ao poder, aos recursos e ao usufruto equitativo dos direitos, entre outros domínios.

Quando um bebé nasce, é-lhe atribuído um sexo “masculino” ou “feminino”, com base nas caraterísticas sexuais (frequentemente os órgãos genitais externos, mas também as hormonas e os cromossomas em alguns casos). Normalmente, os que têm um pénis são designados como “masculinos” e os que têm uma vulva são designados como “femininos”.

No entanto, nem toda a gente tem caraterísticas sexuais que se encaixem na caixa típica de ‘homem’ e ‘mulher’. Por exemplo, há muitas pessoas que nascem com variações intersexuais – os seus cromossomas podem ser diferentes, os órgãos genitais externos, as hormonas ou os órgãos internos não se enquadram nas noções binárias típicas de corpos “masculinos” e “femininos”. Existem muitas variações saudáveis que ocorrem naturalmente. No entanto, a maior parte das pessoas é encaixada ou forçada a entrar em categorias binárias de sexo e género.

 

O que são normas e papéis de género?

Desde a infância que começamos a receber mensagens sobre como nos devemos comportar, em que atividades devemos participar, que roupas devemos usar, o que se espera de nós e como nos devemos expressar em função dessas caraterísticas sexuais. Estas ideias podem mudar ao longo do tempo e variam de sociedade para sociedade, sendo moldadas por vários fatores como a classe, a deficiência, a raça, a casta, a etnia, etc.

Estas mensagens iniciais podem levar muitos a seguir os papéis e as expressões de género que nos são atribuídos. Alguns podem não se importar com isso, mas para muitos isso é um desafio – simplesmente porque o que sentem sobre si próprios não corresponde ao que a sociedade lhes diz que devem ser.

As identidades transgénero, não-binária e uma série de outras identidades diferentes são utilizadas por pessoas cujo sentido de género e de si próprio não corresponde ao sexo e ao género que lhes foram atribuídos à nascença e às prescrições de normas, papéis e expressões de género que se seguiram.

Quer saber mais sobre o significado destes termos? Consulte a página Web sobre direitos LGBTI da Amnistia Internacional (textos em inglês)

Os papéis e as normas de género estruturam a sociedade de uma forma que determina o acesso dos indivíduos ao poder, aos recursos e aos direitos, muitas vezes de forma desigual. Normalmente, as caraterísticas associadas a atitudes e comportamentos masculinos (qualidades consideradas típicas de um “homem”) são mais valorizadas do que as caraterísticas associadas a atitudes e comportamentos femininos (qualidades consideradas típicas de uma “mulher”). Por exemplo, a assertividade de um homem é muitas vezes aplaudida e vista como uma vantagem, enquanto a sensibilidade, normalmente esperada numa mulher, é muitas vezes denegrida. Estes dois pesos e duas medidas traduzem-se em disparidades entre os sexos numa série de domínios, como a remuneração, o acesso à educação, o emprego e os cuidados de saúde.

Forçar as pessoas a conformarem-se com as ideias socialmente ditadas em torno do género pode deixar marcas emocionais e psicológicas profundas nas pessoas e impedi-las de viver plenamente a sua vida. É importante lembrar que estas ideias são aprendidas e, por isso, também podem ser desaprendidas.

Tem dúvidas sobre o significado de identidade de género, expressão de género, orientação sexual, orientação romântica e outras palavras frequentemente utilizadas neste contexto? A explicação de Gingerbread desenvolvida por “It’s Meterosexual(textos em inglês) é um ponto de partida fácil e acessível para compreender estes termos

 

A que se deve a preocupação com a “ideologia de género”?

Ao assumir o cargo em janeiro de 2025, o Presidente dos EUA, Donald Trump, emitiu uma ordem executiva (decreto) com o objetivo de defender as mulheres “do extremismo da ideologia de género”. O termo, utilizado por políticos e grupos religiosos, entre outros, tornou-se uma abreviatura para atacar vários aspetos da sexualidade, normas progressistas de género e autonomia corporal. Em 1997, o Vaticano referiu-se à “ideologia de género” para argumentar que os papéis entre homens e mulheres eram biologicamente determinados, “naturais” e imutáveis. O mesmo argumento tem sido utilizado inúmeras vezes desde então, sendo qualquer tentativa de o desafiar vista como um ataque às “tradições” e aos “valores familiares”.

Desde que o termo “ideologia de género” entrou no discurso público, tem sido utilizado para diminuir os direitos à autonomia corporal, à privacidade, à expressão, à saúde e a uma série de outros direitos das mulheres, raparigas e pessoas LGBTI. Em consequência, a educação sexual abrangente, os direitos sexuais e reprodutivos, os direitos das pessoas LGBTI, a aceitação de diversas configurações familiares, os esforços para abordar a violência baseada no género de forma holística, a prevenção do VIH e uma série de outras questões sofreram retrocessos.

No entanto, uma vez que o género é socialmente construído e a sua manifestação muda ao longo do tempo, é necessário expor esta preocupação artificialmente criada por aquilo que ela é: uma tentativa de impedir a afirmação de diferentes grupos para uma estrutura social, económica e política mais equitativa e não discriminatória.

 

A promoção dos direitos baseados no género prejudica os direitos das mulheres?

Em suma, não.

A hierarquia dos papéis de género e a sua aplicação rígida geram discriminação, violência e abuso para todas as mulheres, raparigas e pessoas com diversidade de género.

A rigidez das regras de género e o facto de obrigar as pessoas a cumprirem-nas têm consequências graves, uma vez que impedem as pessoas de atingirem o seu pleno potencial e de se expressarem plenamente. Por exemplo, ideias como “os homens são agressivos” e “as mulheres são passivas” podem encorajar e normalizar a violência. Do mesmo modo, as ideias sobre as capacidades de prestação de cuidados das mulheres e das raparigas resultam numa distribuição desigual das responsabilidades de prestação de cuidados, pelo que as mulheres e as raparigas são obrigadas a abandonar a escola, a sua saúde é afetada e não podem ter um emprego remunerado. As pessoas cuja identidade e/ou expressão de género é diferente destas normas rígidas enfrentam discriminação e violência em todo o mundo por “desafiarem” estas normas.

Por conseguinte, em vez de minimizar os danos contra um grupo, a compreensão de que a violência contra as mulheres e as raparigas tem raízes comuns com a violência contra as pessoas LGBTI e se baseia na aplicação rigorosa de normas, papéis, estereótipos e expressões de género e sexualidade, reforçando estruturas de poder injustas, permite-nos abordar a questão como um problema estrutural que exige uma análise mais profunda e soluções holísticas.

 

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