23 Dezembro 2021

 

  • Testemunho de pessoas obrigadas a regressar ao Iraque 
  • Pessoas relatam que as autoridades lhes deixaram o corpo “negro e azul” 
  • Retornos forçados da Polónia, mesmo com o conhecimento pleno dos abusos de direitos humanos

Os migrantes que tentavam entrar na União Europeia (UE) a partir da Bielorrússia e que enfrentavam deportações e outras violações de direitos humanos na fronteira polaca, estão sujeitos a tortura e outros maus-tratos, condições desumanas, roubos e outros abusos às mãos das forças de segurança bielorrussas, revelam novas provas recolhidas pela Amnistia Internacional.

Testemunhos angustiantes divulgam como as pessoas, mesmo famílias com crianças ou quem se encontrava em necessidade de assistência imediata, foram espancadas com bastões e coronhas de espingardas e ameaçadas com cães das forças de segurança bielorrussas, além de serem forçadas a atravessar repetidamente a fronteira em condições perigosas, tanto pelas autoridades bielorrussas como pelas polacas, como por exemplo, através de um rio com correntes fortes.

“As pessoas na fronteira estão encurraladas, bloqueadas naquilo que é efetivamente uma zona de exclusão na fronteira da Bielorrússia com a UE. Enfrentam fome, frio e níveis de brutalidade chocantes das forças bielorrussas, que as forçam a entrar na Polónia, onde são sistematicamente enviadas de volta por agentes polacos. Estas forças opostas estão a jogar um jogo sórdido com vidas humanas”, afirma Jennifer Foster, investigadora sobre direitos de refugiados e migrantes na Amnistia Internacional.

“[Os migrantes] enfrentam fome, frio e níveis de brutalidade chocantes das forças bielorrussas, que os forçam a entrar na Polónia, onde são sistematicamente enviados de volta por agentes polacos. Estas forças opostas estão a jogar um jogo sórdido com vidas humanas”

Jennifer Foster

A Amnistia Internacional entrevistou um total de 75 pessoas que, entre julho e novembro de 2021, foram atraídas para a Bielorrússia por uma falsa promessa de conseguirem entrar facilmente na UE. Estas pessoas vivenciaram retornos forçados por países da UE, como a Polónia. A lista de entrevistados integra 66 pessoas de nacionalidade iraquiana, sete de nacionalidade síria que viajavam do Egito, Líbano e Síria, um homem libanês e um homem sudanês. Com vários dos entrevistados a viajarem com família e amigos, os testemunhos dão conta de um total de 192 pessoas afetadas.

 

Bielorrússia: maus-tratos ao longo da fronteira  

A investigação da Amnistia Internacional revelou espancamentos, tortura e outros maus-tratos, incluindo pessoas que foram privadas de comida, água, abrigo e saneamento, assim como roubo de telefones e dinheiro, ou extorsão por subornos por membros das forças bielorrussas.

As pessoas entrevistadas pela organização testemunharam que enfrentaram estes abusos por parte de forças bielorrussas quando se deslocavam de Minsk para o que é na realidade uma zona de exclusão, normalmente vedada, na fronteira da Bielorrússia com a Polónia, a Letónia e a Lituânia. Os migrantes foram escoltados em grupos para “pontos de recolha” dentro da zona vedada, antes de serem violentamente obrigados a atravessar para a Polónia, enquanto eram perseguidos por cães e forçados pelas autoridades bielorrussas a transpor rios gelados.

Um homem sírio partilhou à organização que estava num grupo de cerca de 80 migrantes conduzidos para a fronteira num camião militar:

“Eles descarregaram-nos… Havia cerca de dez soldados [bielorrussos] e quatro cães com eles. Disseram-nos que iriam libertar os cães, e que seríamos mordidos se não corrêssemos depressa. Os soldados perseguiram-nos enquanto corríamos, espancando com bastões qualquer pessoa que não corresse suficientemente rápido. Depois de corrermos por cerca de 200 metros, os soldados abandonaram-nos, deixando-nos na zona-tampão no meio dos bosques. Existiam famílias separadas e as pessoas que foram mordidas pelos cães estavam a sangrar.”

“Disseram-nos que iriam libertar os cães, e que seríamos mordidos se não corrêssemos depressa. Os soldados perseguiram-nos enquanto corríamos, espancando com bastões qualquer pessoa que não corresse suficientemente rápido. Existiam famílias separadas e as pessoas que foram mordidas pelos cães estavam a sangrar”

Relato de um migrante sírio

Uma vez num “ponto de recolha”, não é permitido às pessoas sair nem regressar a zonas não vedadas acessíveis a civis. Elas estão bloqueadas em condições desumanas durante dias ou semanas. Os migrantes descreveram como foram deixados sem qualquer comida durante dias, ou sem quantidades mínimas de água e pão, abrigo ou saneamento. Vários indivíduos reportaram à Amnistia Internacional que só lhes foi permitido deixar os “pontos de recolha” e a faixa da zona fronteiriça após um pagamento de subornos.

Uma família curda síria entrevistada pela Amnistia Internacional permaneceu na zona vedada durante 20 dias. Comiam apenas uma vez por dia e, numa ocasião, estiveram pelo menos 24 horas sem nada para alimentar as suas duas crianças.

“Por vezes estivemos quase inconscientes. Tínhamos fome, sede e não conseguimos encontrar qualquer ajuda, nem das autoridades polacas nem das bielorrussas.”, mencionou o pai da família.

Os agentes bielorrussos também agrediram as pessoas que entravam nas zonas vedadas, espancando-as violentamente enquanto atravessavam, roubando-lhes os telemóveis e dinheiro durante o processo. Um requerente de asilo referiu mesmo que foi esmurrado com “soqueiras” e pontapeado com botas de biqueira de aço. Um outro homem curdo iraquiano partilhou o seguinte relato à Amnistia Internacional:

“Alguns tinham soqueiras e botas com biqueiras de aço. Pontapearam-nos enquanto estávamos deitados no chão. Fizeram-nos entregar o dinheiro e os telemóveis. O meu corpo ficou negro e azul.”

“[As autoridades bielorrussas] pontapearam-nos enquanto estávamos deitados no chão. O meu corpo ficou negro e azul”

Relato de um migrante curdo iraquiano

O direito internacional de direitos humanos incorpora o direito a requerer asilo, bem como o direito a estar livre de tortura ou outros maus-tratos. A Bielorrússia está a violar estes direitos de forma flagrante, apesar de ser parte integrante de tratados internacionais relevantes que os protegem.

 

Polónia: Retornos forçados como prática comum, ignorando procedimentos de asilo e garantias de direitos humanos

A maioria dos migrantes que conseguiu atravessar a vedação da fronteira para entrar na Polónia, foi capturada pelas autoridades polacas centenas de metros à frente e forçada a voltar para trás. A Amnistia Internacional também documentou vários casos de indivíduos que conseguiram permanecer em território polaco, chegando a caminhar durante dias até serem apanhados pelas autoridades policiais, ou a terem de abordar, eles mesmos, as autoridades depois de dias sem comida ou abrigo.

Todas as pessoas com quem a Amnistia Internacional falou, à exceção de uma, foram devolvidas à Bielorrússia, sem qualquer devido processo. Apesar de expressarem a sua intenção de requerer asilo na UE, os migrantes foram impedidos de o fazer ou sequer de apresentar o seu caso. Em vez disso, foram alvo de expulsões sistemáticas e em massa que desrespeitam totalmente as obrigações legais da UE e internacionais.

Por outro lado, as forças de segurança polacas testemunharam os maus-tratos que os migrantes sofreram do lado bielorrusso, mas mesmo assim fizeram-nos regressar ao lado bielorrusso da fronteira.

A maioria das pessoas com quem a Amnistia Internacional contactou mais recentemente, relatou que as autoridades bielorrussas continuam a forçar os migrantes a atravessar a fronteira, que permanecem as agressões, os roubos e as danificações a telemóveis, e que existem crianças a ser atingidas com gás pimenta e adultos empurrados para os rios.

Um homem sírio que viajava com a sua mulher e duas crianças partilhou à Amnistia Internacional que as autoridades polacas o colocaram, a ele e à sua família, no interior da traseira de um camião militar: “Era suficientemente grande para 50-60 migrantes e eles conduziram cerca de uma hora. Depois, empurraram-nos de volta para a zona-tampão. No camião, um soldado ouviu-nos falar e utilizou gás pimenta contra nós. O meu filho e filha choraram durante uma hora”.

“Um soldado ouviu-nos falar e utilizou gás pimenta contra nós. O meu filho e filha choraram durante uma hora”

Relato de um migrante sírio

Um homem Yazidi iraquiano disse à Amnistia Internacional que, cerca de uma hora após ter atravessado para a Polónia, foi detido pelas forças polacas e levado, juntamente com outros homens, para um pequeno rio que marca a fronteira com a Bielorrússia: “O rio só tem cerca de 10 ou 15 metros de largura, mas era profundo e de corrente forte. A polícia forçou-nos a sair dos veículos e empurrou-nos para a água. Qualquer pessoa que não entrasse no rio era espancada com bastões. [Eles] também tinham cães. O nosso grupo tinha mulheres, crianças e alguns homens que foram levados para outro lado. Dos que ficaram, vi um homem ser levado pela corrente. Quem não sabia nadar, afogava-se”.

A Polónia está em clara violação do direito internacional e dos padrões internacionais em matéria de direitos humanos, nomeadamente pela violação da proibição de tortura e outros maus-tratos. O princípio de non-refoulement (não-repulsão) estabelece que as autoridades não devem enviar uma pessoa à força para outro país ou território onde esta ficará em risco de tortura ou outros maus-tratos.

Comissão Europeia falha na atuação contra abusos

Apesar das notórias violações de direitos humanos por parte dos Estados da UE que fazem fronteira com a Bielorrússia, a Comissão Europeia (CE) falhou em levar adiante procedimentos legais para fazer cumprir as leis da UE. Além disso, a 1 dezembro de 2021 a CE propôs medidas de emergência provisórias que poderiam permitir à Letónia, à Lituânia e à Polónia derrogar de regras da UE, incluindo manterem requerentes de asilo nas fronteiras durante 20 semanas com salvaguardas mínimas, e tornar mais fáceis as deportações. A decisão é injustificável e enfraquecerá o quadro legal da UE sobre migração e asilo.

“Milhares de pessoas – incluindo muitas que fogem de guerra e conflito – encontram-se presas no inverno profundo da Bielorrússia em condições indignas. Em vez de receberem o cuidado de que necessitam, estão sujeitas a violência brutal. A Bielorrússia deve cessar esta violência de imediato, e os Estados-membros da UE devem parar de negar aos migrantes a oportunidade de escaparem a estas graves violações, e mais ainda de devolvê-las à Bielorrússia para que as enfrentem de novo”, disse Jennifer Foster.

A Amnistia Internacional está preocupada com aqueles que permanecem presos com estatuto irregular na Bielorrússia, quer seja nas regiões fronteiriças, na capital Minsk, ou ainda noutras cidades, já que estão em risco de graves violações de direitos humanos. Confrontadas com o número crescente de migrantes bloqueados, as autoridades bielorrussas começaram a forçá-los a regressar aos seus países de origem, nomeadamente devolvendo-os ilegitimamente, sem uma avaliação das suas necessidades de proteção. Muitas pessoas com quem a organização falou, enfrentam retornos forçados para a Síria e não para os países dos quais partiram, como o Egito, a Turquia e o Líbano, devido às proibições de reingresso.

 

Contexto 

Desde junho 2021, o número de pessoas que chegam ao território europeu vindas da Bielorrússia começou a aumentar. Os líderes da UE descreveram isto como uma “ameaça híbrida” orquestrada pelas autoridades bielorrussas em resposta às sanções da UE face às violações generalizadas de direitos humanos pós-eleições presidenciais de 2020. O resultado oficial foi amplamente disputado e conduziu a protestos pacíficos em massa.

A Amnistia Internacional realizou nove entrevistas aprofundadas com pessoas sírias, libanesas e sudanesas que viajavam, algumas acompanhadas pelas suas famílias. E também do Egito, Líbano, Síria e Rússia com a intenção de solicitarem asilo na UE. No momento das entrevistas, estes indivíduos estavam na Alemanha, no Líbano e ainda na Bielorrússia. Além disso, a organização viajou para o Iraque, onde conseguiu falar com 66 indivíduos que tinham sido obrigados a regressar, tanto voluntária como involuntariamente, ao seu país, após tentativas falhadas de alcançar a UE. Estas entrevistas tiveram lugar nos arredores e nas cidades de Bagdade, Dohuk, Baadre, Khelakh, Shariya, Zakho e Raniya.

A Amnistia Internacional pediu às autoridades bielorrussas acesso à zona fronteiriça e às pessoas ali bloqueadas. Na sua resposta, as autoridades declararam que “o lado bielorrusso não vê qualquer utilidade na visita de representantes da Amnistia Internacional com o referido propósito.”

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