10 Maio 2017

Crianças nascidas com características que não encaixam nas normas de feminino ou masculino estão em risco de serem submetidas a uma série de procedimentos médicos desnecessários, invasivos e traumatizantes, numa clara violação dos direitos humanos, sustenta a Amnistia Internacional em novo relatório publicado na terça-feira, 9 de maio.

A partir de uma série de casos de estudo feitos na Dinamarca e na Alemanha, este relatório – intitulado “First, Do No Harm” (Primeiro, não lhes façam mal) – demonstra como estereótipos de género obsoletos estão a conduzir a intervenções cirúrgicas irreversíveis, invasivas e sem nenhuma urgência em crianças intersexo, o termo normalmente usado para as pessoas com variações das características sexuais nos cromossomas, nos órgãos genitais ou nos órgãos reprodutivos.

“Estes chamados procedimentos ‘de normalização’ estão a ser feitos sem total conhecimento dos potenciais efeitos danosos e a longo prazo que têm nas crianças”, avalia a investigadora da Amnistia Internacional Laura Carter, perita em orientação sexual e identidade de género. “Estamos a falar de incisões em tecidos sensíveis, com consequências para toda a vida, e apenas devido a estereótipos sobre qual deve ser a aparência de um rapaz e de uma rapariga. A questão que se impõe é: em benefício de quem? Porque o que a nossa investigação mostra é que esta é uma experiência incrivelmente angustiante para quem é submetido a esses procedimentos”, explica ainda a perita da organização de direitos humanos.

O relatório “First, Do No Harm” pormenoriza a forma como procedimentos clínicos sem urgência, tipicamente realizados em bebés e crianças com menos de 10 anos, são feitos na Dinamarca e na Alemanha apesar da falta de investigação médica que alicerce a necessidade das intervenções cirúrgicas desta natureza. As estimativas indicam que até 1,7% da população global é detentora de variações das características sexuais – o que é tão comum como ter cabelo ruivo.

Assentando em entrevistas com pessoas intersexo, com profissionais de saúde na Dinamarca e na Alemanha, assim como com grupos de apoio e de pressão institucional por toda a Europa, a Amnistia Internacional recolheu provas de que crianças nascidas com variações nas suas características sexuais foram submetidas a procedimentos como:

  • Cirurgias para dissimular clitóris visivelmente grande, o que acarreta riscos de lesões nervosas, cicatrizes e dores.
  • Cirurgia vaginal, ou vaginoplastia, que pode envolver uma série de operações ao longo do tempo em crianças muito jovens para criar ou alargar o canal vaginal.
  • Gonadectomias, que consistem na remoção das gónadas (incluindo ovários ou tecido testicular) e são irreversíveis, além de exigirem tratamento hormonal durante toda a vida.
  • Operações de reparação da hipospadia, que são cirurgias para repor a uretra na ponta do pénis com o propósito de criar um pénis considerado normal em termos funcionais e cosméticos; estas cirurgias podem resultar numa série de complicações de saúde a longo prazo.

Estes procedimentos médicos são por vezes necessários clinicamente para proteger a vida ou a saúde da criança, mas não é sempre esse o caso. Muitas das pessoas entrevistadas nesta investigação da Amnistia Internacional, sobre as experiências pelas quais passaram ou a que os seus filhos foram submetidos, reportaram terem sofrido traumas psicológicos e mentais, tanto na altura das cirurgias como subsequentemente nas suas vidas.

“Quando penso no que me aconteceu, fico perturbado, porque não era algo que outra pessoa pudesse decidir por mim – é algo que podia ter esperado [pela minha decisão]”, frisou H, da Dinamarca, e que foi entrevistado pela Amnistia Internacional sob a condição de anonimato. Este dinamarquês só descobriu por acaso que fora submetido aos 5 anos a uma cirurgia da hipospadia quando acedeu aos seus antigos registos médicos. “Fico triste ao pensar que é considerado necessário operar estas crianças, apenas porque outras pessoas julgam que tem de ser feito”, avançou.

Quando penso no que me aconteceu, fico perturbado, porque não era algo que outra pessoa pudesse decidir por mim – é algo que podia ter esperado [pela minha decisão]

H, da Dinamarca

 

Direitos humanos em risco

A abordagem atualmente feita no tratamento das crianças intersexo na Dinamarca e na Alemanha fracassa na devida proteção dos direitos humanos das crianças, conclui a Amnistia Internacional – e aqui se inclui o direito à vida privada e o direito aos mais elevados padrões possíveis de cuidados de saúde.

Peritos das Nações Unidas já criticaram firme e explicitamente estas práticas médicas. A ONU classificou repetidas vezes as intervenções cirúrgicas desnecessárias nas crianças intersexo como práticas danosas e violadoras dos direitos da criança.

“As autoridades dinamarquesas e alemãs estão a falhar no dever de proteger estas crianças. Face à atual falta de investigação e de conhecimentos médicos nesta área, decisões irreversíveis e que mudam para sempre a vida de alguém não devem ser tomadas enquanto a criança é nova demais para poder expressar a sua vontade sobre aquilo que lhe está a ser feito”, defende Laura Carter.

A Amnistia Internacional insta os legisladores e os profissionais médicos nos dois países a assegurarem que nenhuma criança é submetida a tratamentos invasivos, irreversíveis e que não constituem uma emergência clínica. Nesse mesmo sentido, quaisquer decisões devem ser adiadas até que a pessoa em causa possa participar significativamente nas decisões sobre o que é feito no seu corpo.

A organização de direitos humanos exorta também a que os profissionais médicos recebam treino sobre a diversidade de género e de morfologia corporal e a que as autoridades da Dinamarca e da Alemanha ponham fim à perpetuação de estereótipos de género danosos. Os dois países têm, ainda, de garantir que quem foi submetido a intervenções médicas desnecessárias tem acesso a indemnizações.

Casos de estudo

Os investigadores deste relatório entrevistaram 16 pessoas na Dinamarca e na Alemanha com variações das características sexuais e oito pais e mães de crianças detentoras destas variações, sobre as experiências pelas quais passaram. Em alguns casos, os nomes destas testemunhas foram mudados para proteger as suas identidades.

Eis excertos de algumas das suas histórias (para mais informação ver também as páginas 34 a 39 do relatório “First, Do No Harm”):

Sandrao, Alemanha

“O meu maior problema é ter-me esquecido por completo dos meus primeiros 11 anos e tentar perceber o que me aconteceu. Só descobri [algo sobre] o que se passou comigo há dois anos. Antes disso, senti-me miserável ao longo de 34 anos. Passei por uma cirurgia para remoção dos testículos aos 5 anos. Fiz outras operações, outras cirurgias genitais. Não sei se tinha vagina quando nasci ou se foi reconstruída. A minha uretra está numa posição diferente. Consultei um ginecologista em 2014 e soube então que tinha muito tecido cicatrizado. Eu sabia que era diferente, pensava que era um monstro. Não consegui desenvolver qualquer identidade de género. Sofri pressão para encaixar no papel feminino, tinha de usar saias, tinha de usar o cabelo comprido. Foi muito doloroso ter sexo com homens e eu pensava que isso era normal”.

H, Dinamarca

“Sabia que tinha feito uma cirurgia em 1984, aos 5 anos. Mas nunca soube que cirurgia fora. A minha mãe disse-me que eu não urinava a direito – foi essa a explicação que recebi e foi nisso que acreditei”. H recorda que, após a cirurgia, urinar “doía mesmo muito”. “Por isso aguentava, porque doía tanto. Eu gritava de dores na casa-de-banho, corria de um lado para o outro, estava totalmente despido. Acabei por urinar por mim abaixo. Gritei, tive muito medo, não percebia o que estava a acontecer. E estava um pouco envergonhado por ter urinado por todo o lado. É só isso que recordo desse incidente em 1984… Agora é frequente sentar-me para urinar porque nem sempre consigo controlar o fluxo. Quando penso no que aconteceu, fico perturbado, porque não era algo que outra pessoa pudesse decidir por mim – é algo que podia ter esperado [pela minha decisão]. Fico triste ao pensar que é considerado necessário operar estas crianças, apenas porque outras pessoas julgam que tem de ser feito”.

D, Alemanha

“As minhas cirurgias começaram antes de eu ter 1 ano. Fiz pelo menos cinco operações antes dos 18 anos. Deram-me anestésicos, mas, como não tinha cateter, se quisesse urinar, ardia como o inferno. Depois, entre 2004 e 2006, fiz quatro cirurgias. Disseram-me que as operações que fizera em criança tinham sido em vão. Quando era criança ninguém me perguntou se eu queria ou não fazer as cirurgias… foram outros a tomar a decisão por mim e não tive palavra nenhuma a dizer. Eu já passei por estas cirurgias todas, é tarde demais para mim, mas se ficar em silêncio é como se estivesse de acordo com as operações. Só conseguirei mudar as coisas se me fizer ouvir”.

Pais de Johannes, Alemanha

Johannes nasceu em 2013 e foi submetido a cirurgia da hipospadia em 2014 e de novo em 2015. A mãe desta criança contou aos investigadores da Amnistia Internacional que não recebeu qualquer apoio psicológico nem lhes foram prestados nenhuns cuidados pós-tratamento. “O Johannes é uma criança assustada por causa das operações que teve. Tem problemas de sono. Não nos foi oferecido apoio psicológico para ele. Tomámos a iniciativa de procurar métodos alternativos de cura e, ao fim de quase quatro anos, estamos agora a fazer terapia familiar de trauma. Gostava que tivéssemos tido um médico conhecedor que nos aconselhasse bem. Antes das operações, estávamos cheios de medo. Gostávamos de ter tido um cirurgião capaz de nos apoiar. O pediatra não nos recomendou [um psicólogo, mas] eu gostava que nos tivesse sido dado apoio psicológico”.

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