6 Março 2024

As autoridades iranianas estão a levar a cabo uma campanha em grande escala para fazer cumprir as leis repressivas do uso obrigatório do véu, através de uma vigilância generalizada de mulheres e raparigas em espaços públicos e de controlos policiais em massa dirigidos a mulheres condutoras, afirmou a Amnistia Internacional antes do Dia Internacional da Mulher.

Dezenas de milhares de mulheres viram os seus carros arbitrariamente confiscados como punição por desafiarem as leis iranianas sobre o uso do véu. Outras foram processadas e condenadas a açoites ou a penas de prisão ou enfrentaram outras sanções, como multas ou a obrigação de frequentar aulas de “moralidade”.

Os testemunhos de 46 pessoas – entre as quais 41 mulheres, incluindo uma mulher trans, uma rapariga e quatro homens – recolhidos pela Amnistia Internacional em fevereiro de 2024, juntamente com uma análise de documentos oficiais, incluindo sentenças judiciais e despachos de acusação, indicam que as agências estatais estão envolvidas na perseguição de mulheres e raparigas pelo simples exercício dos seus direitos à autonomia corporal e à liberdade de expressão e de crença. A organização publicou excertos de 20 dos testemunhos da assustadora realidade diária enfrentada pelas mulheres e raparigas no Irão.

“Numa tentativa sinistra de esmagar a resistência ao uso obrigatório do véu na sequência da revolta ‘Woman Life Freedom’, as autoridades iranianas estão a aterrorizar as mulheres e as raparigas, submetendo-as a uma vigilância e policiamento constantes, perturbando a sua vida quotidiana e causando-lhes um imenso sofrimento mental. As suas táticas vão desde a detenção de mulheres condutoras na estrada e a confiscação em massa dos seus veículos, até à imposição de penas desumanas de flagelação e de prisão”, afirmou Diana Eltahawy, Diretora Adjunta da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e o Norte de África.

“A intensificação da perseguição de mulheres e raparigas ocorre algumas semanas antes de o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas se pronunciar sobre a prorrogação de uma Missão de Averiguação para investigar as violações cometidas desde a morte sob custódia de Mahsa Amini, em especial contra mulheres e crianças. Os Estados membros do Conselho dos Direitos Humanos da ONU devem enfrentar a crise de impunidade dos ataques contra mulheres e raparigas, assegurando que um mecanismo internacional independente continue a recolher, consolidar e analisar provas, com vista a futuros processos judiciais”.

Os responsáveis pela aplicação das leis degradantes obrigatórias incluem a Polícia de Segurança Moral (police amniat-e akhlaghi), a polícia de trânsito, os gabinetes do Ministério Público, os tribunais, o Ministério dos Serviços Secretos e a Guarda Revolucionária, bem como a força paramilitar Basiji e outros agentes à paisana.

 

Perseguidas por não usarem véu nos automóveis

Informações oficiais indicam que, desde abril de 2023, a Polícia de Segurança Moral do Irão ordenou a confiscação arbitrária de centenas de milhares de veículos com condutoras ou passageiras de apenas nove anos de idade sem ou com véus na cabeça considerados “inapropriados”. De acordo com testemunhos, essas ordens baseiam-se em imagens captadas por câmaras de vigilância ou em relatórios de agentes à paisana que patrulham as ruas e utilizam uma aplicação da polícia, denominada Nazer, para comunicar as matrículas de veículos com condutoras ou passageiras que não cumprem as regras.

As mulheres visadas e os seus familiares têm recebido mensagens de texto e telefonemas ameaçadores, instruindo-as a apresentarem-se à Polícia de Segurança Moral para entregarem os seus veículos como punição por desafiarem o uso obrigatório do véu. A Amnistia Internacional analisou capturas de ecrã de 60 mensagens de texto deste tipo enviadas no ano passado a 22 mulheres e homens.

Nos últimos meses, as autoridades também efetuaram paragens e controlos aleatórios de automóveis, visando as mulheres condutoras em estradas movimentadas. Os agentes da polícia mandam parar as condutoras, passam as matrículas pelo sistema e, se estiverem marcadas para confisco, são obrigadas a dirigir-se às esquadras da polícia, onde os seus carros são apreendidos. São trazidas gruas para apreender os carros das mulheres que se recusam a cumprir as regras.

A Amnistia Internacional falou com 11 mulheres que descreveram perseguições intimidatórias, paragens e apreensões súbitas de viaturas enquanto realizavam as suas atividades quotidianas normais, como as deslocações para o trabalho, as visitas médicas ou as idas à escola. Salientaram o total desrespeito da polícia pela sua segurança, tendo algumas mulheres ficado retidas em auto estradas movimentadas ou em cidades distantes da sua cidade natal.

Mulheres e homens afirmaram que o processo de recuperação dos seus carros junto da Polícia de Segurança Moral envolve longas filas de espera e um tratamento degradante por parte dos agentes, incluindo insultos baseados no género e repreensões sobre a aparência de mulheres e raparigas de apenas nove anos, bem como instruções humilhantes para cobrirem o cabelo e ameaças de flagelação, prisão e proibição de viajar.

Em muitos casos, os funcionários superiores da Polícia de Segurança Moral ordenam a libertação da viatura ao fim de 15 a 30 dias, depois de liquidadas as taxas arbitrárias de pagamento do estacionamento e das transferências de gruas e depois de terem sido obtidos compromissos escritos de cumprimento do véu obrigatório por parte das mulheres e raparigas e/ou dos seus familiares masculinos.

Noutros casos, a Polícia de Segurança Moral encaminha as mulheres e raparigas para o Ministério Público, registando sucessivas denúncias de que não usam o véu nos veículos, e condiciona a libertação dos seus automóveis.

Maus-tratos e recusa de acesso a locais e serviços públicos

As mulheres também descreveram à Amnistia Internacional como o acesso aos transportes públicos, aeroportos e serviços bancários é regularmente negado e condicionado ao uso do véu na cabeça. As mulheres contaram como os agentes do Estado, especialmente nos aeroportos, negaram o acesso a mulheres e raparigas com chapéus e examinaram o comprimento e a forma das suas mangas, calças e uniformes.

As mulheres descreveram ainda que esses encontros são habitualmente acompanhados de abusos verbais, incluindo insultos com base no género e ameaças de perseguição. Uma mulher também contou à organização sobre um incidente ocorrido no final de 2023, em que um agente de execução numa estação de metro em Teerão deu um murro no peito da sua sobrinha de 21 anos.

Uma rapariga de 17 anos contou à Amnistia Internacional que o diretor da sua escola a suspendeu temporariamente depois de uma câmara CCTV a ter captado sem véu numa sala de aula e ameaçou denunciá-la à Organização de Inteligência dos Guardas Revolucionários se voltasse a tirar o lenço.

 

Ações judiciais e condenações injustas

A Amnistia Internacional teve conhecimento de que 15 mulheres e uma rapariga de 16 anos foram processadas apenas em sete províncias por aparecerem sem véu na cabeça ou por usarem hijab ou chapéus “inapropriados” quando se encontravam nos seus veículos; em locais públicos como centros comerciais, teatros, aeroportos ou metro; ou em fotografias publicadas nas suas contas de redes sociais.

A dimensão destes processos é difícil de determinar, uma vez que as autoridades não publicam estatísticas. No entanto, uma declaração do chefe da polícia da província de Qom, Mohammad Reza Mirheidary, em janeiro de 2024, referindo-se a 1986 casos criminais relacionados com o uso obrigatório do véu só em Qom, desde março de 2023, indica que tais casos são amplamente sub-reportados. Uma mulher contou à Amnistia Internacional que um juiz apontou para uma pilha de cerca de 30 ou 40 processos na sua secretária, comentando que estavam todos relacionados com o uso obrigatório do véu. Várias outras mulheres disseram que os funcionários do Ministério Público e da polícia lamentaram a sua pesada carga de trabalho devido à resistência das mulheres contra o uso obrigatório do véu.

A Amnistia Internacional documentou casos de quatro mulheres que receberam ordens do Ministério Público exigindo que participassem em até cinco aulas de “moralidade” e evitassem qualquer conduta “criminosa” durante um ano, para que o processo penal contra elas fosse arquivado. Uma das mulheres contou como o funcionário do Ministério Público que dirigia as aulas culpou as 40 mulheres participantes nas aulas pelas elevadas taxas de divórcio e repreendeu-as por aparecerem “nuas”.

A organização documentou os casos de três outras mulheres que foram condenadas a multas.

Outra mulher foi condenada a escrever uma carta de arrependimento e ameaçada com uma multa.

A Amnistia Internacional analisou um relatório do Ministério dos Serviços Secretos que instruía a vigilância contínua das atividades online de uma artista, visada pelas suas publicações no Instagram.

À data da publicação, estavam em curso processos contra seis das mulheres cujos casos a Amnistia Internacional documentou.

Para além das penas, as autoridades do Ministério Público e os juízes ameaçaram a maioria das mulheres e raparigas com flagelação e prisão, enquanto uma foi ameaçada de morte e outra de violência sexual. O pai de uma rapariga de 16 anos contou à Amnistia Internacional que, durante o seu julgamento, o juiz de um tribunal de menores lhe perguntou de forma agressiva por que razão ela não usava o véu obrigatório e ameaçou-a com flagelação e prisão. A rapariga acabou por ser absolvida, mas foi obrigada a assinar um compromisso na Polícia de Segurança Moral.

Em janeiro de 2024, as autoridades aplicaram uma pena de 74 chicotadas a Roya Heshmati por ter aparecido sem véu em público. Num testemunho publicado na sua conta das redes sociais, Roya Heshmati contou que foi açoitada por um funcionário do sexo masculino, na presença de um juiz, numa sala que descreveu como uma “câmara de tortura medieval”.

 

Contexto

Um projeto de lei, que visa intensificar a agressão das autoridades às mulheres e raparigas que desafiam o uso obrigatório do véu, está prestes a ser aprovado pelo Parlamento iraniano. Em fevereiro de 2024, o Presidente Ebrahim Raisi aceitou formalmente os custos financeiros significativos da aplicação da lei proposta, abrindo caminho para que o Conselho dos Guardiães aprovasse o projeto de lei.

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