26 Abril 2021

Na Líbia, tribunais militares condenaram centenas de civis no leste do país, em julgamentos secretos e extremamente injustos, com o objetivo de punir opositores e críticos (assumidos ou apenas suspeitos) das Forças Armadas Árabes da Líbia (FAAL) e grupos armados afiliados, referiu a Amnistia Internacional. Entre 2018 e 2021, pelo menos 22 pessoas foram sentenciadas à morte e, centenas de outras, a prisão. Muitos dos arguidos foram submetidos a tortura e maus-tratos em detenção preventiva.

Entre os civis julgados em tribunais militares no bastião das FAAL da Líbia Oriental, estão dois indivíduos sentenciados pelo seu trabalho jornalístico, um grupo de participantes de protestos pacíficos e dezenas de pessoas que defenderam os direitos humanos ou partilharam críticas às FAAL (ou grupos armados afiliados) nas redes sociais.

Ex-detidos reportaram à Amnistia Internacional um conjunto detalhado de abusos, que incluíam rapto e detenção até três anos antes de serem referenciados à procuradoria militar, onde permaneciam incontactáveis até 20 meses, em circunstâncias semelhantes a desaparecimentos forçados. Além disso, eram espancados, ameaçados, sujeitos a afogamento simulado e, alguns, mencionaram mesmo terem sido forçados a assinar “confissões” de crimes que não cometeram.

“Julgamentos militares de civis desrespeitam os padrões internacionais e regionais e são inerentemente injustos. A leste da Líbia, estes julgamentos ocorrem em segredo e, por vezes, sem a presença de advogados e dos arguidos, minando qualquer aparência de justiça. O uso de julgamentos militares para civis é uma cortina de fumo flagrante, pela qual as FAAL e grupos armados afiliados estão a exercer o seu poder para punir os oponentes e incutir um clima de medo”, disse Diana Eltahawy, diretora-adjunta da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.

“O Governo de Unidade Nacional deve pôr fim imediato aos julgamentos militares de civis e ordenar investigações aos crimes de direito internacional e ações de tortura, cometidos por grupos armados”.

“O uso de julgamentos militares para civis é uma cortina de fumo flagrante, pela qual as FAAL e grupos armados afiliados estão a exercer o seu poder para punir os oponentes e incutir um clima de medo”

Diana Eltahawy, diretora-adjunta da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África

Ao abrigo do direito internacional, o uso de tribunais militares deve ser restringido ao julgamento de profissionais militares por violações da disciplina do seu trabalho. Julgamentos militares de civis são problemáticos, porque os procuradores e juízes são membros das forças armadas em exercício e estão sujeitos à sua hierarquia, pelo que lhes falta independência e imparcialidade.

Em entrevistas a 11 indivíduos, incluindo ex-arguidos, defensores de direitos humanos e advogados, a Amnistia Internacional descobriu que aqueles que enfrentavam julgamentos militares foram ilegalmente retidos durante meses ou anos, torturados e sujeitos a procedimentos abusivos.

Um homem sentenciado por um tribunal militar em 2020, referiu que membros da “polícia militar”, um grupo armado aliado das FAAL, o espancaram, ameaçaram de violação e lhe colocaram um capuz na cabeça antes de lhe despejarem água para simular a sensação de afogamento, um método de tortura conhecido como “waterboarding”.

 

Enfrentar um julgamento militar por críticas pacíficas

Entre os que enfrentam processos de tribunais militares, está uma mulher que foi raptada de casa por um grupo armado em fevereiro de 2020, por uma publicação numa rede social a criticar as FAAL. Nem a sua família ou advogado foram autorizados a visitá-la antes da sua libertação provisória em abril de 2021, enquanto aguardava julgamento.

A Amnistia Internacional descobriu também que, pelo menos, 18 homens em ligação aos protestos contra grupos armados em setembro de 2020 foram detidos e remetidos para julgamento militar.

 

Simulacro de julgamentos

Os procedimentos nos tribunais militares a leste da Líbia desrespeitaram múltiplas normas de um julgamento justo, como os direitos a: aconselhamento legal antes e durante o julgamento; a permanecer em silêncio; a uma audiência justa e pública frente a um tribunal competente, independente e imparcial; a estar presente no julgamento; a uma sentença fundamentada e a uma revisão legítima, entre outros.

Os arguidos descreveram que lhes foi sistematicamente negado o acesso a um advogado em detenção preventiva e, por vezes, mesmo durante o seu julgamento. Os advogados têm sido também um alvo. Segundo a Libyan Crimes Watch, um grupo líbio de direitos humanos, dois advogados foram presos e detidos durante vários dias em março de 2020, com base em queixas contra eles por Slim al-Fergani, o chefe do tribunal militar permanente em Benghazi. Numa queixa, examinada pela Amnistia Internacional, um advogado acusou Slim al-Ferjani de proibir advogados de examinarem os processos ou de apresentarem argumentos de defesa em tribunal.

Em maio de 2020, um tribunal militar sentenciou o jornalista Ismail Bouzreeba Al-Zway a 15 anos de  prisão, acusando-o de apoiar o terrorismo. A Amnistia Internacional acredita que foi punido por conteúdo encontrado no seu telefone, onde constavam mensagens críticas das FAAL e comunicações com órgãos de comunicação no exterior. O jornalista foi impedido de contactar a família e o advogado ao longo da detenção preventiva, tendo sido julgado na sua própria ausência.

Em vários casos, as acusações exatas contra aos arguidos não lhes foram comunicadas até ao julgamento. São julgados em audiências à porta fechada e não lhes é concedido acesso a ficheiros do caso, provas, ou a sentenças fundamentadas uma vez condenados.

Além disso, as sentenças dos tribunais militares só podem ser objeto de recurso por um tribunal militar superior.

Tanto os procuradores como os juízes militares carecem de independência e imparcialidade, já que são afiliados às FAAL ou a grupos armados aliados. Por exemplo, Faraj Al-Soussa’a, o atual chefe do Ministério Público Militar no leste da Líbia, também representa as FAAL nas conversações da Comissão Militar Conjunta da Líbia (5+5), mediadas pelas Nações Unidas, enquanto Khairi al-Sabri, chefe da Autoridade Militar Judicial Geral, liderou previamente os serviços secretos militares sob as FAAL. Por sua vez, o juiz do tribunal militar permanente em Benghazi é subordinado do chefe da Autoridade Militar Judicial Geral.

 

Pena de morte

Segundo declarações da UNSMIL e das FAAL, entre 2018 e 2020, os tribunais militares sentenciaram pelo menos 22 pessoas à morte, na sequência de julgamentos injustos. As organizações líbias de direitos humanos estimam, no entanto, que tenham sido realizadas pelo menos 31 execuções.

A Amnistia Internacional opõe-se ao uso da pena de morte em quaisquer circunstâncias. De acordo com o direito internacional, os procedimentos em casos de pena capital devem observar escrupulosamente todas as normas de julgamento justo relevantes e, aplicar execuções após julgamentos injustos, viola o direito à vida.

“Apelamos ao Governo de Unidade Nacional da Líbia para que anule todas as condenações e sentenças de civis tramitadas por tribunais militares. Todos aqueles detidos por exercerem pacificamente os seus direitos humanos devem ser imediatamente libertados e, os que estão ilegalmente detidos, devem ser protegidos de tortura e contactar com as suas famílias e advogados. Qualquer civil acusado de infrações internacionalmente reconhecíveis deve ser julgado perante tribunais civis, em procedimentos justos e sem recurso à pena de morte”, disse Diana Eltahawy.

 

Consequências de longo alcance para civis condenados

Os civis libertados após cumprirem sentenças, afirmaram que os seus processos tinham prejudicado a sua vida futura, nomeadamente nas perspetivas de encontrar emprego. O receio de novas detenções também permanece.

Ibrahim el-Wegli, um médico que trabalhou no Hospital do setor público em Benghazi, disse à Amnistia Internacional que, após a sua libertação, o seu contrato no setor público tinha sido anulado devido ao veredicto de um tribunal militar contra si.

Dois homens condenados por tribunais militares revelaram ainda à Amnistia Internacional que, após a sua libertação, receberam ameaças verbais constantes de novas detenções com penas mais severas por parte de indivíduos associados à “polícia militar”. Isto levou-os a fugir da Líbia.

 

Fundamentos legais duvidosos

Em 2017, membros da Câmara dos Representantes (CdR), o último parlamento eleito da Líbia, aprovaram a Lei Nº 4/2017, que estabelece jurisdição para os tribunais militares sobre civis acusados de “terrorismo” e crimes cometidos em “áreas militares”. À época, o país estava dividido entre duas entidades concorrentes, com a CdR, baseada em Tobruk e aliada das FAAL, no controlo de grande parte do leste da Líbia e em conflito com o Governo do Acordo Nacional (GAN), reconhecido internacionalmente e sedeado em Trípoli.

Em novembro de 2018, um porta-voz das FAAL afirmou que as emendas de 2017 providenciavam uma base legal para o julgamento de indivíduos acusados de “terrorismo” por tribunais militares.

Contudo, em 2020, o então ministro da Justiça do GAN alegou que a lei aprovada pela CdR não estava em vigor e afirmou que só os tribunais civis tinham jurisdição sobre civis.

O atual Governo de Unidade Nacional ainda não comentou publicamente a validade das emendas à legislação militar de 2017 ou o julgamento de civis por tribunais militares.

 

Contexto

O Fórum de Diálogo Político da Líbia liderou a unificação nominal das Instituições líbias e do Governo de Unidade Nacional, que foi juramentado pela CdR a 10 de março de 2021. Na prática, as FAAL e grupos armados aliados continuam a exercer controlo efetivo sobre o leste da Líbia.

 

Soluções e propostas

É necessário que o governo líbio se torne respeitador e garante do direito humanitário internacional, bem como promotor de direitos humanos para todas as pessoas que entram no país à procura de refugio e proteção.

 

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