8 Setembro 2020

O governo de Malta recorreu a medidas perigosas e ilegais para lidar com a chegada de refugiados e migrantes por via marítima, expondo inúmeras pessoas a um sofrimento terrível e arriscando as suas vidas, revela a Amnistia Internacional no relatório Waves of impunity: Malta’s violations of the rights of refugees and migrants in the Central Mediterranean (“Ondas de impunidade: Violações de Malta aos direitos dos refugiados e migrantes no Mediterrâneo Central”).

“Malta está a usar táticas cada vez mais ignóbeis e ilegais para se esquivar às suas responsabilidades para com os necessitados. Vergonhosamente, a União Europeia e a Itália normalizaram a cooperação com a Líbia no controlo das fronteiras”

Elisa De Pieri, investigadora da Amnistia Internacional

A mudança de abordagem em relação às chegadas através do Mediterrâneo Central, em 2020, fez com que fossem tomadas medidas ilegais e, às vezes, sem precedentes para evitar a ajuda a refugiados e migrantes. Entre as táticas utilizadas estão o retorno ilegal destas pessoas para a Líbia, o desvio de barcos para Itália, em vez de ser feito o resgate, a detenção ilegal de centenas de pessoas em balsas mal equipadas ao largo das águas nacionais e a assinatura de um novo acordo com a Líbia para evitar que as pessoas cheguem a Malta.

“Malta está a usar táticas cada vez mais ignóbeis e ilegais para se esquivar às suas responsabilidades para com os necessitados. Vergonhosamente, a União Europeia [UE] e a Itália normalizaram a cooperação com a Líbia no controlo das fronteiras, mas mandar pessoas para o perigo que constituiu a Líbia é tudo menos normal”, afirma a investigadora Elisa De Pieri da Amnistia Internacional.

“Os Estados-membros da UE devem parar de dar assistência ao regresso de pessoas a um país onde enfrentam atrocidades indescritíveis”, nota.

Algumas das ações tomadas pelas autoridades maltesas podem ter envolvido atos criminosos, resultando em mortes evitáveis, detenções arbitrárias prolongadas e retornos ilegais para uma Líbia devastada pela guerra. Além disso, usaram a pandemia de COVID-19 como pretexto para declarar que Malta não era um local seguro para o desembarque, de forma a desencorajar as pessoas a procurarem segurança e uma vida digna na Europa.

As práticas abusivas do governo maltês são parte integrante de esforços mais amplos dos Estados-membros da UE e das instituições para terceirizar o controlo do Mediterrâneo Central à Líbia – para que as autoridades líbias, apoiadas pela UE, possam intercetar refugiados e migrantes no mar antes que cheguem à Europa.

As pessoas são devolvidas à Líbia e detidas arbitrariamente em locais onde a tortura e outros maus-tratos são altamente prováveis. Desde o início de janeiro e 27 de agosto, 7256 pessoas foram obrigadas a regressar à Líbia pela Guarda Costeira do país africano, com o apoio da UE, que muitas vezes foi alertada da presença de barcos no mar por aviões envolvidos na Frontex e outras operações da UE.

Um caso ilustrativo

Há um caso que ilustra bem até onde as autoridades de Malta estão dispostas a ir para evitar que as pessoas cheguem à sua costa. No dia 15 de abril deste ano, um grupo de 51 pessoas, incluindo sete mulheres e três crianças, foi devolvido ilegalmente a Trípoli, depois de ser resgatado na zona de busca e salvamento de Malta por um barco de pesca comercial, o Dar Al Salam 1.

A embarcação, que havia sido contratada pelo governo maltês, levou todos a bordo para a Líbia e entregou-os às autoridades líbias, expondo refugiados e migrantes – que haviam acabado de sobreviver a um naufrágio mortal – a mais riscos para as suas vidas.

Cinco pessoas morreram quando o barco chegou à Líbia e os sobreviventes relataram que mais sete estavam desaparecidas no mar. Quem seguia a bordo relatou que não receberam assistência médica. Num comunicado oficial, as autoridades maltesas confirmaram que coordenaram a operação.

Ausência de responsabilização

Apesar de ter sido feita uma investigação, muitas perguntas ficaram sem resposta. Ainda não se sabe como morreram 12 pessoas e como 51 foram devolvidas à Líbia, mesmo sendo ilegal esse tipo de transferência. O magistrado que conduziu o inquérito não ouviu os depoimentos dos sobreviventes, nem investigou toda a cadeia de responsabilidade na contratação do Dar El Salam 1 e na ordem dada para a transferência de pessoas para a Líbia.

“Os horrores enfrentados pelas pessoas que regressaram à Líbia devem alertar os líderes europeus contra a cooperação com países que não respeitam os direitos humanos”

Elisa De Pieri, investigadora da Amnistia Internacional

A organização não-governamental (ONG) Alarm Phone dispõe de evidências de que este tipo de ação também pode ter ocorrido em 2019 e 2020. No entanto, não foram abertas investigações.

Cooperação da UE e Itália com a Líbia

A Itália tem trabalhado em estreita colaboração com a Líbia, tendo prestado apoio às autoridades marítimas do país, fornecendo navios, formação e assistência no estabelecimento de uma área de busca e salvamento para facilitar a atuação da guarda costeira líbia.

Apesar da intensificação do conflito e da pandemia de COVID-19, que ameaça a situação humanitária dos refugiados e migrantes na Líbia, a Itália continuou a implementar políticas para manter as pessoas no país africano. Isso inclui a extensão do seu Memorando de Entendimento sobre Migração com a Líbia, com o objetivo de aumentar os recursos das autoridades líbias para evitar partidas, por mais três anos, estender as operações militares na região com foco no apoio às autoridades marítimas e manter a legislação e práticas destinadas à criminalização de ONG que resgatam pessoas no Mediterrâneo Central.

Em 2020, a Amnistia Internacional também documentou abusos nas fronteiras entre a Croácia e a Bósnia, e a Grécia e a Turquia. A UE necessita urgentemente de um sistema independente e eficaz de monitorização dos direitos humanos nas suas fronteiras externas para garantir a responsabilização pelas violações e pelos abusos.

“A Comissão Europeia deve virar a página quando lançar o Novo Pacto sobre Migração e Asilo, depois do verão, e garantir que o controlo das fronteiras europeias e as políticas de migração respeitem os direitos dos refugiados e migrantes”, defende Elisa De Pieri.

“Os horrores enfrentados pelas pessoas que regressaram à Líbia devem alertar os líderes europeus contra a cooperação com países que não respeitam os direitos humanos. Ao continuar a capacitar os abusadores e a enfiar a cabeça na areia, quando as violações são cometidas, esses líderes da UE são também responsáveis”, conclui.

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