29 Maio 2019

  • Novos abusos depois de o governo ordenar combate a grupos armados

  • Unidades do exército responsáveis por outras atrocidades estão a cometer crimes de guerra e mobilização de mais meios sugere envolvimento de generais de topo

  • Comunidade internacional volta a falhar

 

Há novas provas de que o exército do Myanmar está a cometer crimes de guerra e outras violações de direitos humanos no estado de Rakhine. A Amnistia Internacional terminou uma investigação, divulgada esta quarta-feira, sobre a operação militar que está em andamento e antevê que o futuro não será diferente.

O mais recente relatório, intitulado No one can protect us”: War crimes and abuses in Myanmar’s Rakhine State (Ninguém nos pode proteger: Crimes de guerra e abusos no estado Rakhine do Myanmar), documenta como os militares, conhecidos como Tatmadaw, mataram e feriram civis em ataques indiscriminados, desde janeiro deste ano. Além disso, realizaram execuções extrajudiciais, prisões arbitrárias, tortura e outros maus-tratos, e desaparecimentos forçados.

“Menos de dois anos depois de o mundo se ter indignado com as atrocidades em massa cometidas contra a população Rohingya, os militares do Myanmar estão a cometer, outra vez, abusos horríveis”

Nicholas Bequelin, diretor para o Sudeste Asiático e Ásia Oriental da Amnistia Internacional

O relatório analisa em detalhe o período de intensas operações militares que se seguiram aos ataques coordenados a postos da polícia, no dia 4 de janeiro, pelo Exército de Arakan (AA na sigla inglesa), um grupo armado étnico Rakhine. A instrução do governo do Myanmar foi de “esmagar” o AA.

“Menos de dois anos depois de o mundo se ter indignado com as atrocidades em massa cometidas contra a população Rohingya, os militares do Myanmar estão a cometer, outra vez, abusos horríveis contra grupos étnicos no estado de Rakhine”, aponta o diretor para o Sudeste Asiático e Ásia Oriental da Amnistia Internacional, Nicholas Bequelin.

“Um exército sem arrependimentos, sem reformas e irresponsável, que aterroriza os civis e comete violações generalizadas”

Nicholas Bequelin, diretor para o Sudeste Asiático e Ásia Oriental da Amnistia Internacional

“As novas operações no estado de Rakhine mostram um exército sem arrependimentos, sem reformas e irresponsável, que aterroriza os civis e comete violações generalizadas como tática deliberada”, completa o mesmo responsável.

A Amnistia Internacional conduziu 81 entrevistas. Destas, 54 foram feitas no estado de Rakhine, no final de março. As restantes 27, ainda que realizadas à distância, abrangeram pessoas que vivem nas áreas em conflito, incluindo moradores de etnia Rakhine, Mro, Rohingya e Khami, pertencentes às religiões budista, cristã e muçulmana. Fotografias, vídeos e imagens de satélite foram passadas a pente fino. Funcionários humanitários, ativistas de direitos humanos e outros especialistas contribuíram com toda a experiência que têm.

Há muito que as comunidades de Rakhine denunciam o governo central do Myanmar. Contudo, o AA é liderado por uma geração mais jovem de nacionalistas étnicos. Atualmente, estima-se que este grupo armado tem até sete mil combatentes.

Estabelecido em 2009, o AA lutou ao lado de outras organizações armadas étnicas no norte do Myanmar. Nos últimos anos, entrou em confronto com o exército nacional, em Rakhine, e no vizinho estado de Chin. A luta intensificou-se no final de 2018.

Reforço de meios e da violência

O novo relatório revela abusos cometidos por militares envolvidos em crimes, no passado, como as divisões e batalhões sob as ordens do chamado Comando Ocidental. A Amnistia Internacional confirmou ainda que as recém-destacadas unidades 22.ª e 55.ª das Divisões de Infantaria Ligeira são responsáveis ​​por muitas das novas violações.

A partir de entrevistas e outras provas recolhidas, como imagens de satélite, foi possível documentar sete ataques ilegais que mataram 14 civis e feriram, pelo menos, 29. O uso da força foi indiscriminado e, em alguns casos, pode ter visado, especificamente, civis.

“As autoridades estão a aumentar a miséria dos civis, bloqueando o fornecimento de medicamentos, alimentos e ajuda humanitária para os necessitados, incluindo crianças”

Nicholas Bequelin, diretor para o Sudeste Asiático e Ásia Oriental da Amnistia Internacional

Um dos incidentes, registado no final de janeiro, vitimou uma criança Rakhine, de sete anos. Um morteiro – ao que tudo indica disparado pelo exército nacional – explodiu na aldeia de Tha Mee Hla, no distrito de Rathedaung, durante combates com o AA. O menino ficou gravemente ferido e só depois de várias horas teve permissão para ser levado pela família a um hospital. No dia seguinte, morreu.

Os Rohingya também sofreram com as violações do exército do Myanmar. A 3 de abril de 2019, um helicóptero militar abriu fogo contra trabalhadores desta etnia que cortavam bambu, matando, pelo menos, seis homens e meninos. Mais de dez pessoas ficaram feridas.

“O helicóptero veio de trás da montanha”, disse um sobrevivente à Amnistia Internacional. “Em poucos minutos, disparou foguetes. Corria pela minha vida, enquanto pensava na minha família e como sobreviveria”, recordou.

Todos os ataques diretos contra civis e os ataques indiscriminados que matam ou ferem civis são crimes de guerra. Os militares são ainda suspeitos de tomarem posições e dispararem peças de artilharia junto de monumentos históricos e culturais, como o complexo de templos de Mrauk-U, o que viola o direito internacional humanitário.

A Amnistia Internacional também documentou sete casos de detenções arbitrárias e o desaparecimento forçado de seis homens – um da etnia Mro e cinco da etnia Rakhine. Mais de 30 mil pessoas foram obrigadas a abandonar as suas casas nesta nova onda de violência, mas o acesso humanitário às áreas afetadas está bloqueado.

“As autoridades estão a aumentar a miséria dos civis, bloqueando o fornecimento de medicamentos, alimentos e ajuda humanitária para os necessitados, incluindo crianças”, denuncia Nicholas Bequelin, antes de sublinhar que “os civis no estado de Rakhine estão a pagar o preço mais alto dos ataques militares e das suas consequências”. “No entanto, o governo continua a optar por permanecer em silêncio sobre esta espiral de crise”, nota.

Abusos do Exército de Arakan

O relatório indica que o AA também cometeu crimes contra civis, como o rapto de quatro homens Rohingya da aldeia de Sin Khone Taing. Uma fonte não identificada explica que dois conseguiram escapar.

Os soldados do AA têm ameaçado civis e intimidou chefes de aldeias, bem como empresários locais, alertando-os sobre as consequências de interferirem com as atividades do grupo. As cartas que enviavam eram acompanhadas de uma bala e traziam o selo oficial do AA.

Ameaças à liberdade de expressão

À medida que os relatos de violações militares aumentam, as forças de segurança recorreram a táticas para silenciar reportagens críticas, através de queixas criminais contra os editores de três agências locais de notícias.

“No início deste mês, as autoridades libertaram os jornalistas Wa Lone e Kyaw Soe Oo, depois de terem estado presos, de forma arbitrária, por mais de 500 dias. A indignação global sobre este caso não impediu que usassem as mesmas táticas de medo para dar um exemplo aos outros”, afirma Nicholas Bequelin.

Hora para intensificar a pressão internacional

A mais recente operação militar no estado de Rakhine foi lançada menos de 18 meses depois de as forças de segurança do Myanmar terem cometido crimes contra a humanidade. Mais de 900 mil refugiados rohingya ainda vivem em campos no Bangladesh e o novo relatório da Amnistia Internacional fornece novas provas de que o regresso não é seguro.

“O Conselho de Segurança foi criado para responder exatamente a este tipo de situações. É tempo de levar a sério a responsabilidade”

Nicholas Bequelin, diretor para o Sudeste Asiático e Ásia Oriental da Amnistia Internacional

Na ausência de qualquer responsabilidade interna, a Amnistia Internacional pede ao Conselho de Segurança da ONU que remeta a situação do Myanmar, urgentemente, para o Tribunal Penal Internacional e imponha um embargo de armas. Os parceiros internacionais do país também devem repensar as relações bilaterais com a liderança militar e implementar sanções direcionadas contra os altos representantes, via União Europeia e Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN).

“O Conselho de Segurança foi criado para responder exatamente a este tipo de situações. É tempo de levar a sério a responsabilidade”, apela Nicholas Bequelin.

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