15 Setembro 2021

É cada vez maior o número de crianças mortas e recrutadas por grupos armados em conflitos que assolam as fronteiras do Níger com o Mali e o Burkina Faso, referiu a Amnistia Internacional num novo relatório.

Neste relatório, intitulado “Não tenho mais nada a não ser eu mesmo: O impacto devastador nas crianças em situação de conflito na região Tillabéri do Níger” (em inglês: I Have Nothing Left Except Myself’: The Worsening Impact on Children of Conflict in the Tillabéri Region of Niger), documenta-se o impacto devastador do conflito no Níger nas crianças, onde estão envolvidos os grupos armados do Estado Islâmico no Grande Sahara (ISGS) e da Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), filiada na al-Qaeda.

Estes dois grupos, o ISGS e a JNIM, cometeram crimes de guerra e outros abusos no conflito, como o assassinato de civis e a destruição de escolas. Após testemunharem os ataques mortais às suas aldeias, muitas crianças estão a enfrentar traumas. Em algumas áreas, mulheres e raparigas têm sido impedidas de participar em atividades exteriores, para diminuir o risco de serem raptadas ou forçadas a casar com combatentes.

“Na região de Tillabéri, no Níger, uma geração inteira está a crescer rodeada de morte e destruição. Os grupos armados têm atacado repetidamente escolas e reservas alimentares, e estão à procura de crianças para recrutar”, afirmou Matt Wells, diretor adjunto de Resposta a Crises da Amnistia Internacional – Questões Temáticas.

“O governo do Níger e os seus parceiros internacionais devem intervir urgentemente para controlar e prevenir novos abusos, assim como para proteger os direitos básicos de todas as pessoas afetadas por este conflito mortal – especialmente as crianças”.

“Os grupos armados têm atacado repetidamente escolas e reservas alimentares, e estão à procura de crianças para recrutar”

Matt Wells

As autoridades do país têm falhado na proteção de civis. Várias testemunhas de ataques descreveram que, apesar dos seus apelos urgentes, as Forças de Defesa e Segurança do Níger (FDSN) chegaram, frequentemente, muito depois de os assassinatos e roubos estarem concluídos.

Devido à intensidade da violência e ao nível de organização do ISGS e da JNIM, a Amnistia Internacional considera a situação no Níger um conflito armado não internacional.

 

Morte de civis

O conflito em Tillabéri agravou-se significativamente desde o início do ano. De acordo com o Armed Conflict Location & Event Data Project, a violência contra civis resultou em 544 mortes relacionadas com o conflito entre 1 de janeiro e 29 de julho de 2021 no Níger, valor que ultrapassa largamente as 397 mortes de 2020.

Na zona das três fronteiras do Níger, os grupos armados já mataram mais de 60 crianças em 2021. O ISGS, que opera principalmente na fronteira com o Mali, demonstra ser o responsável pela maior parte destas mortes em grande escala.

A Amnistia Internacional entrevistou 16 rapazes que sobreviveram por pouco aos ataques do ISGS às suas aldeias. As vítimas descreveram como os atacantes, mascarados e em motas, começaram a disparar sobre pessoas, procurando atingir particularmente homens e rapazes mais velhos. Um rapaz, com cerca de 13 ou 14 anos, relatou: “Todos nós estamos habituados a ouvir tiros e a ver pessoas [mortas] por cima de pessoas [mortas]”.

Um outro rapaz, que testemunhou o assassinato do seu amigo, Wahab de 12 anos, em março de 2021, acrescentou: “Penso em Wahab e na forma como foi morto. Por vezes, tenho pesadelos onde sou perseguido por pessoas em motas, ou onde vejo Wahab a implorar novamente [aos atacantes]”.

“Penso em Wahab e na forma como foi morto. Por vezes, tenho pesadelos onde sou perseguido por pessoas em motas, ou onde vejo Wahab a implorar novamente [aos atacantes]”

Testemunho de uma vítima

Os combatentes dispararam também contra as casas, matando ou ferindo civis que tentavam esconder-se. Uma mulher e a sua filha bebé foram feridas por tiros enquanto se escondiam durante um ataque, provavelmente, do ISGS.

O FDSN retirou-se de algumas áreas fronteiriças após sofrer perdas para o ISGS e JNIM no final de 2019, o que conduziu a uma ausência de autoridades estatais na região. Múltiplas testemunhas de ataques denunciaram a falta de resposta das Forças de Defesa e Segurança, afirmando que as mortes e roubos se desencadeavam ao longo de várias horas.

Um homem de 50 anos, em palavras partilhadas por muitos outros, declarou à Amnistia Internacional: “Fomos abandonados”.

 

Recrutamento de crianças

O recrutamento de crianças pela JNIM aumentou significativamente em 2021, no departamento de Torodi, perto da fronteira com o Burkina Faso.

As testemunhas afirmaram que a JNIM tem como alvo preferencial rapazes e homens mais jovens, entre os 15 e os 17 anos, e possivelmente mais novos. Para os aliciar, os membros da JNIM oferecem incentivos como comida, dinheiro e vestuário.

Alegadamente, os novos recrutas recebem treino com armas, por períodos que vão de uma semana a três meses. A JNIM é também conhecida por utilizar crianças como espiões, batedores e vigias, entre outras funções definidas como “participação em hostilidades” ao abrigo do Direito Internacional.

 

Ataques à educação e aos cuidados de saúde

No âmbito da sua oposição à educação, que consideram ser “ocidental”, o ISGS e a JNIM queimaram escolas e ameaçaram professores, o que resultou num encerramento generalizado de estabelecimentos escolares. Em junho de 2021, pelo menos 377 escolas na região de Tillabéri tinham fechado portas, privando mais de 31.000 crianças do acesso à educação.

A Amnistia Internacional documentou ataques de grupos armados que atingiram e queimaram escolas em pelo menos quatro departamentos da região de Tillabéri. Nas zonas rurais, a maioria das estruturas escolares são feitas de palha, tornando-as fáceis de queimar.

Os professores têm sido igualmente ameaçados pelo seu trabalho. Um rapaz de 15 anos, de Mogodyougou, mencionou: “Os professores… partiram. Eles seriam mortos [se ficassem]”.

Nas áreas afetadas pelo conflito, o encerramento das escolas deixou muitas crianças sem acesso à educação por longos períodos. Um jovem de 14 anos partilhou o seguinte: “Não gostámos que a escola fechasse… Depois do encerramento da nossa escola, ficámos em casa. Não havia nada para nós”.

Ao abrigo do Direito Humanitário Internacional, os ataques contra escolas são proibidos, a menos que o edifício da escola esteja a ser utilizado para fins militares. Como tal, os ataques contra escolas ou outros edifícios dedicados à educação, aqui referidos pela Amnistia Internacional, constituem crimes de guerra.

O conflito tem ainda minado significativamente o acesso das crianças aos cuidados de saúde, com grupos armados a assaltarem instalações de saúde, e as autoridades do Níger a restringirem o movimento de civis e impedirem, por vezes, a passagem de ajuda. Como consequência, as taxas de imunização baixaram e doenças como o sarampo estão a aumentar.

 

Ataques à segurança alimentar

Durante os ataques, o ISGS incendiou lojas de cereais, assaltou lojas de outros tipos e roubou gado, deixando as famílias desamparadas e sem alimentos adequados. Por esta razão, as crianças enfrentam riscos acrescidos de subnutrição e doenças relacionadas.

Uma mulher com sete filhos disse à Amnistia Internacional que os combatentes do ISGS incendiaram os celeiros da sua família durante um ataque à aldeia de Zibane: “Foi tudo queimado… Não tenho mais nada, exceto eu mesma”.

Através da análise de imagens de satélite, a Amnistia Internacional confirmou a queima seletiva de armazéns de cereais. Estes ataques fizeram com que dezenas de milhares de pessoas se deslocassem forçadamente, deixando aldeias inteiras vazias devido à falta de alimentos.

Quer o ISGS, quer a JNIM, impõem também “impostos” às comunidades de forma regular, muitas vezes aplicados com recurso à violência. De acordo com estimativas de agências humanitárias, cerca de 2.3 milhões de pessoas na região poderão sofrer de insegurança alimentar na sequência dos ataques, mas também por motivos de secas e inundações.

 

Impacto psicossocial nas crianças

Os constantes ataques têm tido um profundo impacto na saúde mental e bem-estar das crianças. Das que foram entrevistadas, muito poucas tinham recebido apoio psicossocial.

A Amnistia Internacional documentou sintomas de trauma e angústia entre as crianças, incluindo pesadelos, padrões de sono conturbados, medo, ansiedade e perda de apetite. Muitas relataram que o som das motas as relembrava dos ataques.

Um rapaz de 15 anos, que foi forçado a deslocar-se da sua aldeia, partilhou com a Amnistia Internacional: “O que eu quero é o verdadeiro regresso da paz. [O governo] precisa de prestar atenção às nossas vidas, mesmo aqui [no campo de deslocados] no que diz respeito à água e comida. E à escola. Precisamos de ir à escola”.

“As autoridades do Níger devem tomar medidas rápidas para assegurar que as crianças afetadas pelo conflito na região de Tillabéri tenham acesso à escola e a cuidados psicossociais”, referiu Matt Wells.

“O Níger está num precipício. As autoridades locais e os parceiros internacionais devem tomar medidas urgentes para garantir que as crianças têm maior capacidade de construir um futuro para si próprias”.

“As autoridades locais e os parceiros internacionais devem tomar medidas urgentes para garantir que as crianças têm maior capacidade de construir um futuro para si próprias”

Matt Wells

Metodologia

Para este relatório, a Amnistia Internacional entrevistou 119 pessoas, incluindo 22 crianças, três jovens adultos entre os 18 e 20 anos, e 36 pais e outros indivíduos afetados pelo conflito. Esta definição de “outros indivíduos” integra funcionários de ONG e agências humanitárias, funcionários das Nações Unidas e funcionários governamentais.

 

Contexto

O conflito surgiu no Mali em 2012 e, desde então, tem vindo a alastrar-se para Burkina Faso e Níger. O controlo das zonas fronteiriças tem sido disputado pelos grupos armados que, frequentemente, se confrontam com os militares do Níger, e também com forças de países como o Chade, Mali, Burkina Faso e França.

Estima-se que 13.2 milhões de pessoas nos três países necessitarão de assistência humanitária este ano, sendo que já cerca de 1.9 milhões foram deslocadas internamente.

 

Recursos

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