30 Janeiro 2015

Uma missão recente da Amnistia Internacional foi encontrar um cenário desolador no Curdistão iraquiano, onde vivem atualmente uns 950 mil deslocados iraquianos e refugiados sírios, cerca de metade dos dois milhões forçados à fuga devido ao avanço do Estado Islâmico e de outros focos de violência no país. Aqui, a investigadora Francesca Pizzutelli, perita em Refugiados e Migrantes, descreve campos que mal dão resposta às necessidades de uma pequena fração destas pessoas e milhares de famílias a viverem em abrigos improvisados.

Vista do avião, a mudança das estações é evidente: aquilo que há três meses era uma extensão enorme de terra árida de poeira amarelada é agora um vasto castanho-escuro, aqui e ali salpicado de manchas verdes húmidas. Depois de uma primeira visita em setembro de 2014, eu e Khairun Dhala [também investigadora na Amnistia Internacional] estamos de regresso ao Curdistão iraquiano, formalmente designado como Região do Curdistão do Iraque, para avaliar a situação de direitos humanos dos refugiados sírios e deslocados iraquianos naquela região.

Devido ao avanço do grupo armado jihadista Estado Islâmico e de outros focos de violência no país, mais de dois milhões de iraquianos ficaram deslocados em 2014. Quase metade destas pessoas, à volta de 950 mil, está agora no Curdistão iraquiano, uma pequena região semiautónoma no Norte do Iraque com uma população de 5.2 milhões. Por outras palavras: o Curdistão iraquiano assistiu a um fluxo de pessoas equivalente a quase um quinto da sua população. É como se a Escócia, de repente, acolhesse um milhão de pessoas vindas da Inglaterra e do País de Gales.

A maioria são membros da comunidade yazidi (uma das mais antigas minorias étnico-religiosas curda do Iraque que professa uma religião pré-islâmica), oriundos da região da montanha do Sinjar, mas também turquemenos e árabes de cidades e vilas à volta de Mosul, a segunda maior cidade do Iraque. Antes de janeiro de 2014, o Curdistão iraquiano tinha já aberto as portas a cerca de 230 mil refugiados da Síria.

Os campos

O governo regional do Curdistão tem feito esforços para construir campos para as centenas de milhares de deslocados. O campo de Baharka, nos arredores de Erbil, acolhe mais de 3.000 deslocados iraquianos e refugiados palestinianos do Iraque. Como está bastante perto da capital curda, este é um dos campos mais visíveis.

Apesar de ser um destino frequente de visitas por dignatários estrangeiros, jornalistas e organizações de caridade, as condições no campo estão porém muito aquém do ideal, sobretudo quando chove. Assim que escurece, as lâmpadas alimentadas pela luz solar e tochas portáteis mantêm o mercado em funcionamento.

Já Dohuk, cidade de 280 mil habitantes a oeste de Erbil, acolhe cerca de 430 mil deslocados, além de refugiados oriundos da Síria. Quando estivemos pela primeira vez na região de Dohuk, em setembro de 2014, aqueles que não tinham sido acolhidos por famílias locais optavam por construir abrigo em qualquer espaço livre: escolas, estaleiros de construção, edifícios inacabados, garagens, parques e jardins. Três meses passados desde então e há na região de Dohuk nove campos oficiais para deslocados, que acolhem cerca de 125 mil pessoas – ou seja, dando resposta às necessidades de apenas uma pequena fração da população de deslocados.

Dois dos campos oficiais foram construídos pela Agência de Gestão de Desastres e Emergência da Turquia (AFAD), outros três pelas Nações Unidas, e os restantes quatro foram construídos pelo governo regional do Curdistão. Assim, os padrões de acomodação, das estruturas e dos serviços variam imenso de campo para campo.

No campo de Bersive (na foto), construído pela agência turca e que acolhe cerca de dez mil pessoas perto da cidade de Zakho, na região de Dohuk e a poucos quilómetros da fronteira com a Turquia, as tendas não são totalmente impermeáveis à chuva, não há água quente e o número de sanitários e chuveiros não cumpre os padrões mínimos de resposta humanitária.

Acampamentos informais

Com todas as insuficiências e falhas que os caracterizam, os campos oficiais já construídos e operacionais podem acomodar apenas um número muito reduzido daqueles que precisam de abrigo. A maioria das pessoas continuam espalhadas por acampamentos improvisados, em estaleiros de construção, espaços comunitários e campos informais. Outros conseguiram acolhimento em casas privadas ou em hotéis.

Muitos dos deslocados na região de Dohuk vivem em locais perigosos e em situações extremamente precárias, onde estão expostos às condições climatéricas e com um acesso muito limitado a água e eletricidade, quando o têm. Visitámos nesta missão enormes edifícios inacabados, sem paredes, nem janelas, sem portas nem casas-de-banho, mas onde vivem centenas de famílias que tinham improvisado as separações das suas divisões com telas de plástico.

No inverno, esta já difícil situação é agravada com o frio e a chuva: à noite, a temperatura pode descer a graus negativos. Nos sítios que visitámos, as pessoas não têm cobertores nem roupas quentes suficientes; falta-lhes combustível para o aquecimento e para cozinhar, e as condições sanitárias e de fornecimento de água de que dispõem são desadequadas.

Num estaleiro de construção nos arredores de Zakho, vimos pessoas a queimarem papéis para se aquecerem – a previsão para essa noite era de 3 graus centígrados. Muitas das pessoas que visitámos não teriam sobrevivido sem a ajuda dos generosos proprietários de terras e vizinhos na região.

Crianças deslocadas

Estima-se que existam 186 mil crianças em idade escolar (entre os seis e os 17 anos) deslocadas na região de Dohuk. Muitíssimas delas – cerca de 89 mil, ou 55 por cento – não estão nos campos oficiais de deslocados. E mesmo nesses verifica-se uma falha muito significativa na oferta de educação básica. Fora dos campos oficiais, os pais precisam que os filhos trabalhem e contribuam para fazer face às despesas das necessidades essenciais da família. Por tudo isto, foram muito poucas as crianças que conhecemos que vão à escola.

Ouvir as histórias

Visitámos famílias acomodadas em tendas, onde nos ofereceram sempre copos do aromático café árabe ou chá adocicado. Como somos mulheres, eu e Khairun, as mulheres nestas famílias sentiam-se imediatamente à vontade connosco. Explicámos-lhes cuidadosamente o papel da Amnistia Internacional e o propósito da nossa missão, pois é muito importante que compreendam que não lhes podemos fornecer comida nem roupas.

As pessoas pareceram-nos sempre disponíveis em falar connosco mesmo sem termos o que lhes dar, uma vez que, em muitos casos, nenhuma organização de ajuda humanitária que lhes fornece alimentos e roupa parou para ouvir as histórias que têm para contar.

Alguns dos casos que documentámos nesta missão necessitam de um acompanhamento a longo prazo.

Mas é possível e imperativo que mais seja feito para dar resposta às duras condições que estas pessoas enfrentam no inverno. Assim que regressámos desta missão ao Curdistão iraquiano publicámos parte da nossa investigação, instando a comunidade internacional a melhorar a coordenação e a colmatar as falhas na assistência humanitária.

Para as centenas de milhares de deslocados no Curdistão iraquiano, a luta pela sobrevivência está longe de terminada. O mínimo que o mundo pode fazer é ajudar a que a situação em que vivem seja um pouco menos desoladora.

 

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