24 Outubro 2018

As restrições à liberdade de circulação adotadas pelas autoridades na Tunísia em nome da segurança estão a ser impostas de forma frequentemente arbitrária, generalizada e discriminatória, desrespeitando direitos humanos essenciais, sustenta a Amnistia Internacional em novo relatório publicado esta quarta-feira, 24 de outubro.

Desde 2013, o Ministério do Interior tunisino restringiu a liberdade de circulação de quase 30 mil pessoas ao abrigo de uma série de regras de controlo de fronteiras, mantidas sob total secretismo e referidas como “medidas S17”. Estas regras não são do conhecimento público e não há sobre a sua aplicação a devida monitorização judicial.

O relatório, intitulado ‘They never tell me why’: Arbitrary restrictions on freedom of movement in Tunisia” (“Nunca me explicam porquê”: restrições arbitrárias à liberdade de circulação na Tunísia), descreve os casos de pelo menos 60 pessoas que foram ilegalmente impedidas de viajar para fora do país ou que viram o seu direito a deslocar-se dentro da Tunísia ser interditado, entre 2014 e 2018. Nesta investigação é detalhado o impacto devastador que estas regras tiveram no dia-a-dia das pessoas afetadas, muitas das quais ficaram sem poder trabalhar, estudar ou até viverem as suas vidas familiares com normalidade.

“Este modo arbitrário e discriminatório com que as medidas S17 estão a ser aplicadas, sem autorização judicial prévia, está a violar os direitos humanos de centenas de pessoas”, frisa a diretora regional da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África, Heba Morayef. “Não há dúvida nenhuma de que travar ataques armados contra civis, tanto no país como fora dele, tem de ser uma prioridade para as autoridades tunisinas, mas dar à polícia carta branca para impor restrições gerais e ilegais à deslocação de centenas de pessoas e fora da possibilidade de monitorização do sistema judicial constitui um equívoco – e não é uma solução para as ameaças à segurança na Tunísia”, prossegue a perita da organização de direitos humanos.

“Este modo arbitrário e discriminatório com que as medidas S17 estão a ser aplicadas, sem autorização judicial prévia, está a violar os direitos humanos de centenas de pessoas.”

Heba Morayef, diretora regional da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África

O novo relatório da Amnistia Internacional documenta como as discriminatórias medidas S17 têm vindo a visar pessoas devido à perceção que as autoridades têm das suas crenças religiosas ou como interpretam a sua aparência física, como é o caso de homens com barba ou mulheres que usam o niqab (véu integral), ou ainda porque foram condenadas em relação a atividades de grupos islâmicos anteriormente banidos no país. Em todos estes casos, as regras limitativas da liberdade de circulação foram impostas sem ser apresentada nenhuma prova ou ligação das pessoas visadas a qualquer tipo de atividade criminosa ou a grupos armados e, acresce, sem que a essa imposição fosse emitida autorização judicial.

“As atuais medidas de fronteira restringem o direito das pessoas à liberdade de circulação, não têm qualquer base legal e não podem ser justificadas como necessárias ou proporcionadas. Violam tanto as obrigações internacionais de direitos humanos da Tunísia como a própria Constituição do país”, explica Heba Morayef.

As medidas S17 foram aprovadas em 2013 integradas num plano nacional de combate ao terrorismo. As autoridades da Tunísia argumentam que estas regras têm o objetivo de impedir que pessoas suspeitas de ligações a grupos jihadistas se juntem a grupos armados em outros países, como o grupo armado autoproclamado Estado Islâmico (EI) na Síria, assim como o de controlar os movimentos daqueles que regressaram de zonas de conflito.

Porém, a investigação feita pela Amnistia Internacional apurou que em pelo menos 37 casos ocorridos desde 2016 estas restrições à liberdade de circulação foram aplicadas arbitrariamente contra pessoas que se deslocavam entre cidades da Tunísia. E pelo menos 23 pessoas foram impedidas de saírem do país sem lhes ser prestada qualquer justificação.

As medidas S17 são impostas sem nenhuma autorização nem monitorização judicial. Os critérios para que uma ordem S17 seja aplicada não são do conhecimento público e a pessoa com ela visada não recebe notificação escrita nem sequer uma explicação clara sobre essa decisão. A ausência de informações sobre as razões pelas quais as ordens S17 são emitidas significa que quem é por elas afetado fica amiúde sem possibilidade de contestar as restrições em tribunal e de tentar obter justiça e ressarcimento pelas violações de direitos humanos de que foi alvo.

“Ao deixarem as decisões de impor medidas de controlo de fronteiras exclusivamente à discrição do Ministério do Interior sem supervisão judicial eficaz, as autoridades da Tunísia estão a abrir a porta a abusos.”

Heba Morayef, diretora regional da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África

“Ao deixarem as decisões de impor medidas de controlo de fronteiras exclusivamente à discrição do Ministério do Interior sem supervisão judicial eficaz, as autoridades da Tunísia estão a abrir a porta a abusos”, critica a diretora regional da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.

Heba Morayef insta à necessidade de “reformas urgentes para garantir que as medidas S17 não possam ser impostas de forma arbitrária e sem aprovação judicial”.

Arbitrárias e discriminatórias

O jornalista e professor de Ciências Informáticas Mehdi (nome completo protegido para segurança da testemunha), de 29 anos e residente em Tunes, testemunhou à Amnistia Internacional que foi repetidamente alvo de perseguição e interrogado pela polícia depois de ter sido visado com uma ordem S17.

“Perguntavam-me sempre as mesmas coisas: ‘Você reza?’ e ‘Vai à mesquita?’ e ‘Ouve os sheiks na televisão?’. Uma vez até me tiraram uma amostra de DNA sem me explicarem a razão”, contou o tunisino, descrevendo toda aquela experiência como “um pesadelo”.

Em alguns dos casos analisados pela Amnistia Internacional, pessoas cujos meios de subsistência dependem de trocas comerciais transfronteiriças deixaram de conseguir ganhar a vida devido às restrições às deslocações com que foram visadas.

Mohamed Guerfel, dono de um pequeno negócio em Ben Guerdane, cidade próxima da fronteira da Tunísia com a Líbia, perdeu a sua única fonte de rendimento após ter sido sujeito a uma restrição S17 que o impede de viajar até ao país vizinho para se abastecer. E Najamaeddine (nome completo protegido para segurança da testemunha), pescador, reportou à Amnistia Internacional que a sua liberdade de circulação foi arbitrariamente restringida depois de um homem com o qual costumava trabalhar ter viajado para a Síria, alegadamente para se juntar ao EI.

“Nunca fui preso por nada, nem tão pouco condenado em algo, e [as autoridades] nunca me explicam porquê, qual a razão pela qual fui visado com esta medida… É simplesmente absurdo. Não sei o que foi que fiz. Se fiz algo errado, imploro que me ponham na prisão em vez de ter de viver o tempo todo nesta ansiedade”, desabafou Najamaeddine.

Lotfi, de Kasserine, contou que uma ordem S17 o impediu de viajar para França, onde era preciso para cuidar da mãe doente. Este tunisino viu-se obrigado a esperar duas horas no aeroporto até que foi mandado de volta para trás, não lhe sendo permitido embarcar no avião. “Mandaram-me embora sem nenhuma explicação nem me ser dada oportunidade para perceber em que se baseou aquela decisão. Isto é uma injustiça”, criticou.

“Mandaram-me embora sem nenhuma explicação nem me ser dada oportunidade para perceber em que se baseou aquela decisão. Isto é uma injustiça.”

Lotfi, tunisino que foi impedido de viajar para França para cuidar da mãe doente

A Amnistia Internacional exorta o Governo da Tunísia a garantir que todas as medidas de segurança cumprem a legislação do país e estão em consonância com as leis internacionais de direitos humanos.

“O Governo tunisino tem de assegurar que todas as restrições arbitrárias às viagens são anuladas e que quaisquer medidas que restrinjam a liberdade de circulação assentem numa clara base legal, sejam necessárias e proporcionadas e estejam em linha com a lei internacional de direitos humanos e com a legislação da Tunísia”, sublinha ainda Heba Morayef.

O direito à liberdade de circulação está previsto no artigo 12º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, ao qual a Tunísia se vinculou. A Constituição tunisina também garante a liberdade de circulação no artigo 24º e declara expressamente que quaisquer restrições ao exercício dos direitos humanos têm de ter uma base legal e devem ser aplicadas de forma proporcionada que não viole os direitos dos cidadãos.

Desde 2015, na esteira de uma série de ataques armados, as autoridades da Tunísia impuseram o estado de emergência e reforçaram as medidas de segurança que têm vindo a minar gravemente o exercício dos direitos humanos e o Estado de direito.

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