13 Março 2023

As autoridades tunisinas devem assegurar o fim imediato da onda de ataques contra os migrantes africanos negros na Tunísia, que teve início em fevereiro e se intensificou na sequência dos comentários racistas e xenófobos feitos pelo Presidente Kais Saied, a 21 de fevereiro.

É urgente que as autoridades investiguem e responsabilizem os perpetradores deste tipo de violência, em particular, os agentes da polícia envolvidos nestes atos. Todos os migrantes detidos arbitrariamente devem ser libertados. Noutra ótica, é também essencial garantir que estas pessoas não são devolvidas involuntariamente aos seus países de origem.

O discurso de ódio reproduzido por Kais Saied numa reunião do Conselho de Segurança Nacional, a 21 de fevereiro, agravou a violência contra migrantes, com grupos a sair às ruas para atacar migrantes negros, estudantes e requerentes de asilo, e os agentes da polícia a deterem e deportarem estas pessoas.

Nas suas declarações, o presidente tunisino afirmou que “uma multidão de migrantes irregulares da África Subsaariana” tinha vindo para Tunísia “com toda a violência, crime, e práticas inaceitáveis que isso implica”. Acrescentou que esta situação fazia parte de um plano criminoso concebido para “alterar a composição demográfica” e transformar a Tunísia em mais um “país africano que já não pertence às nações árabes e islâmicas”.

Kais Saied afirmou que “uma multidão de migrantes irregulares da África Subsaariana” tinha vindo para Tunísia “com toda a violência, crime, e práticas inaceitáveis que isso implica”

Heba Morayef, diretor da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África, ressalva que Kais Saed deve retirar os seus comentários e ordenar investigações imediatas para que os recentes casos de violência racista não permaneçam impunes: “O presidente necessita de terminar com a sua procura por ‘bodes expiatórios’ para encobrir os problemas económicos e políticos da Tunísia. Devido ao medo de agressões, detenções arbitrárias e deportações sumárias, a comunidade de migrantes africanos negros na Tunísia está agora retraída”.

“Até ao momento, as forças de segurança tunisinas têm procurado minimizar estes ataques violentos, chegando a negá-los por completo. No entanto, o que as autoridades devem fazer é priorizar as investigações dos incidentes de violência policial contra migrantes negros, pôr fim imediato aos retornos forçados atualmente em curso, e prevenir a ocorrência de novos ataques motivados por questões raciais, quer por parte de grupos de tunisinos, quer por agentes estatais”.

“Até ao momento, as forças de segurança tunisinas têm procurado minimizar estes ataques violentos, chegando a negá-los por completo”

Heba Morayef

Ao longo de duas semanas, as autoridades contestaram a ocorrência de violência racista contra os africanos negros. Contudo, após o discurso de Kais Saied e de toda a indignação da comunidade internacional gerada, as autoridades anunciaram, a 5 de março, “novas medidas” para facilitar a residência legal dos migrantes, bem como um processo de repatriamento para aqueles que “desejem abandonar voluntariamente o país”. Apesar disto, os ataques e a violência mantiveram-se.

A Amnistia Internacional entrevistou 20 pessoas em Tunes: cinco requerentes de asilo e 15 migrantes em situação irregular dos Camarões, Serra Leoa, Gana, Nigéria, Guiné Conacri e Costa do Marfim. Todos eles tinham sido atacados por grupos de tunisinos e, em pelo menos três casos, as autoridades estiveram presentes e não procuraram impedir a violência ou prender os agressores.

Desde o início de fevereiro, a organização Avocats sans Frontières (ASF), que presta assistência jurídica a requerentes de asilo e migrantes, confirmou pelo menos 840 migrantes, estudantes e requerentes de asilo africanos negros reunidos em várias cidades da Tunísia.

Muitos dos entrevistados afirmaram que a violência e a hostilidade contra os negros eram uma caraterística regular da sua vida na Tunísia. No entanto, 20 testemunhas assumiram o aumento dos ataques após o discurso do presidente.

 

Ataques racistas

Várias testemunhas partilharam à Amnistia Internacional que, após o discurso de Kais Saed, grupos de homens tunisinos, por vezes armados com bastões e facas, tomaram as ruas da capital, atacando-os e, até, invadido as suas casas.

A 24 de fevereiro, Manuela, uma requerente de asilo camaronesa de 22 anos, foi atacada por um grupo de seis homens que proferiu insultos racistas. Acabou esfaqueada no peito, com graves ferimentos.

À Amnistia Internacional, Manuela referiu que estava no bairro de Ariana, em Tunes, à porta de um café, quando sentiu um golpe violento no pescoço. Caiu no chão com a agressão e ouviu vozes a berrar em francês “voltem para casa, seu gang de negros, não vos queremos aqui”. Quando acordou, estava no hospital, coberta de sangue, com as roupas rasgadas. Tinha uma grande ferida aberta no seu seio direito e outras lesões no abdómen e nos lábios. Partilhou com a Amnistia Internacional uma fotografia tirada nessa noite, que mostrava a lesão sofrida no seu seio.

Manuela (nome fictício) referiu que estava no bairro de Ariana, em Tunes, à porta de um café, quando sentiu um golpe violento no pescoço. Caiu no chão com a agressão e ouviu vozes a berrar em francês “voltem para casa, seu gang de negros, não vos queremos aqui”

Aziz, migrante da Serra Leoa com 21 anos, declarou à Amnistia Internacional que chegou à Tunísia em junho de 2021 para ser trabalhador da construção civil. Alguns dias após o discurso do presidente, mencionou que dez tunisinos entraram forçosamente na sua casa, em Ariana. Arrombaram a porta, roubaram os seus pertences e obrigaram-no a sair com a família.

Em oito casos, trabalhadores migrantes e requerentes de asilo afirmaram ter sido obrigados a sair das suas casas por grupos de tunisinos, acrescentando que os seus pertences tinham sido roubados ou destruídos. Dez migrantes partilharam à Amnistia Internacional que tinham sido expulsos pelos seus senhorios depois de as autoridades ameaçarem punir qualquer pessoa que acolhesse ou empregasse “migrantes ilegais”.

Alguns dos entrevistados tiveram de permanecer em condições pouco higiénicas num campo improvisado em frente à Organização Internacional para as Migrações, em Tunes, sem acesso a comida, exceto alguma que lhes foi distribuída por grupos de cidadãos voluntários. Não dispunham de uma casa de banho no local, nem de roupas quentes, já que tinham perdido todos os seus pertences.

 

Agressão pelas autoridades

Três testemunhas disseram ter sido agredidas ou presas pela polícia. Milena, estudante do Burkina Faso, relatou à Amnistia Internacional as agressões físicas e verbais a que foi sujeita pelas forças de segurança.

Na manhã de 3 de março, quando saía de um supermercado, três homens tunisinos insultaram-na, dizendo-lhe para deixar o país. Um carro da polícia parou perto de si nesse momento, mas em vez de as autoridades se dirigirem aos homens, pediram a Milena que apresentasse a sua autorização de residência. Milena disse-lhes que era estudante e apresentou a sua documentação escolar. No entanto, foi imediatamente algemada, forçada a entrar no carro da polícia e levada para a esquadra de Ariana: “Quando cheguei à esquadra, um polícia gritou comigo ‘vocês, negros, só criam problemas’, outro deu-me uma joelhada no estômago”.

“Quando cheguei à esquadra, um polícia gritou comigo ‘vocês, negros, só criam problemas’, outro deu-me uma joelhada no estômago””

Relato de uma migrante

Milena foi libertada após quatro horas de detenção, quando uma mulher tunisina sua conhecida se dirigiu à esquadra intercedendo pela sua libertação.

 

Prisão e retornos forçados

Djomo, um trabalhador da construção civil da Costa do Marfim com 30 anos, relatou à Amnistia Internacional que, a 5 de março pelas 20h00, se encontrava a dormir numa casa em Sfax que partilha com outros cinco migrantes, quando ouviu um estrondo na porta e cerca de dez homens a arrombá-la.

“Estavam armados com bastões. Alguns forçaram dois dos meus colegas de apartamento a sair e bateram-lhes até caírem no chão. Outros começaram a destruir tudo dentro de casa, levaram dinheiro e alguns telemóveis. A Guarda Nacional chegou 30 minutos depois, mas não prenderam os assaltantes. Em vez disso, algemaram-nos e levaram-nos para a esquadra”.

À Amnistia Internacional, Djomo partilhou como foi detido com outras 25 pessoas nessa noite, entre as quais estava uma mulher grávida de oito meses. No dia seguinte, todos foram levados a tribunal, tendo sido libertados à tarde, sem julgamento. O senhorio de Djomo disse-lhe, a ele e aos companheiros, que não podiam regressar a casa. Na altura da entrevista com a Amnistia Internacional, Djomo estava a viver em condições duras na rua.

A Amnistia Internacional analisou vídeos e fotografias recentes tiradas no interior de Ouardia, um centro de detenção em Tunes, que revelavam as agressões dos agentes de segurança a migrantes. Num vídeo, as autoridades arrastaram à força um homem negro por um lance de escadas.

Nos últimos dias, centenas de negros africanos foram intimidados a regressar aos países de origem. Pelo menos 300 malianos e marfinenses retornaram aos seus países a 4 de março como parte do que tem sido descrito como um “regresso voluntário”. Um grupo de migrantes guineenses foi repatriado a 1 de março.

 

Contexto

Em 2018, a Tunísia foi o primeiro país da região do MENA a promulgar uma lei que penaliza a discriminação racial e permite às vítimas de racismo procurar reparação por abuso verbal ou atos físicos de racismo. Nos últimos meses, uma campanha de ódio contra os negros dominou as redes sociais e os meios de comunicação social. O Partido Nacionalista Tunisino, que defende uma ideologia de “grande substituição” e considera que a presença de africanos negros na Tunísia faz parte de uma “conspiração para alterar a composição da sociedade”, é regularmente convidado a prestar depoimentos nos meios de comunicação social, onde defendem estes pareceres sem qualquer reação das autoridades.

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