7 Março 2023

A Amnistia Internacional considera que o governo sírio e os grupos armados da oposição apoiados pela Turquia devem deixar de obstruir e desviar a ajuda humanitária destinada a aliviar o sofrimento de dezenas de milhares de civis em Aleppo, dilacerados pelo conflito armado e pela devastação dos recentes terramotos.

Entre 9 e 22 de fevereiro, o governo sírio bloqueou pelo menos 100 camiões que transportavam ajuda essencial, como alimentos, material médico e tendas, impedindo-os de entrarem nos bairros da população de maioria curda da cidade de Aleppo. Durante o mesmo período, grupos armados da oposição apoiados pela Turquia, que fazem parte de uma coligação armada, o Exército Nacional Sírio (SNA), bloquearam também a entrada de pelo menos 30 camiões de ajuda em Afrin, uma cidade do norte de Aleppo coupada pela Turquia. Em ambos os casos, a ajuda foi enviada pelas autoridades curdas, com as quais tanto o governo sírio, como os grupos armados apoiados, lutaram pelo controlo do território no norte da Síria.

“Mesmo neste momento de desespero, o governo sírio e os grupos armados da oposição têm-se aproveitado de considerações políticas e da miséria das pessoas para avançar com as suas próprias agendas”

Aya Majzoub

“Os terramotos empurraram dezenas de milhares de pessoas em Aleppo que já lutavam devido a um conflito armado de uma década para uma miséria acentuada. Contudo, mesmo neste momento de desespero, o governo sírio e os grupos armados da oposição têm-se aproveitado de considerações políticas e da miséria das pessoas para avançar com as suas próprias agendas”, disse Aya Majzoub, Subdirectora da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.

Passou um mês desde os sismos de 6 de fevereiro que atingiram o sudeste da Turquia e o norte da Síria, com uma magnitude de 7,7 e 7,6, respetivamente. A ONU estima que pelo menos seis mil pessoas na Síria foram mortas e mais de 8 milhões de pessoas necessitam de assistência urgente, incluindo 4,1 milhões de pessoas em áreas detidas pela oposição no norte da Síria e 4 milhões de pessoas em áreas detidas pelo governo.

A Amnistia Internacional entrevistou 12 pessoas, incluindo sobreviventes e trabalhadores humanitários no Norte e Nordeste da Síria, um membro de uma organização de direitos humanos síria e um representante da Administração Autónoma do Norte e Leste da Síria (AANES).

 

Obstrução à ajuda humanitária

Desde 9 de fevereiro, os AANES, organizações humanitárias locais e internacionais, indivíduos e tribos têm enviado assistência humanitária – incluindo alimentos, vestuário, material médico e combustível – do nordeste da Síria para a cidade de Aleppo, que está sob o controlo do governo, e para o norte de Aleppo, que está sob o controlo de grupos armados apoiados pela Turquia.

Quatro pessoas entrevistadas pela Amnistia Internacional confirmaram que o Exército Nacional Sírio recusou autorizar pelo menos 30 camiões de combustível e outros camiões que transportam ajuda humanitária enviados pelos AANES a entrar nas áreas sob o seu controlo. Os camiões esperaram na passagem da fronteira entre o nordeste da Síria e o norte de Aleppo durante sete dias antes de serem enviados de volta.

Um trabalhador humanitário a operar no nordeste da Síria disse à Amnistia Internacional: “A obstrução da ajuda é puramente política. A turquia e o Exército Nacional Sírio descobriram que politizar a ajuda é mais importante do que o combustível para chegar aos Capacetes Brancos e a outros que estavam desesperados para acelerar os seus esforços de busca e salvamento”.

O Crisis Evidence Lab da Amnistia Internacional verificou detalhes de um vídeo filmado após o terramoto, em Jinderes, mostrando pessoas que se acredita serem da polícia militar do SNA a disparar no ar para dispersar uma multidão de pessoas que tentavam retirar caixas de ajuda do camião de uma organização humanitária.

O governo sírio também impediu que a ajuda chegasse aos sobreviventes considerados como sendo da oposição. Os entrevistados no nordeste da Síria disseram à Amnistia Internacional que entre 9 e 22 de fevereiro, o governo sírio tinha bloqueado 100 camiões de combustível, tendas, alimentos e material e equipamento médico fornecidos pelos AANES e impediram uma organização local de entrar nos bairros curdos do Sheikh Maqsoud e Ashrafieh, na cidade de Aleppo.

Desde agosto de 2022, o governo sírio impôs um bloqueio brutal a estes dois bairros, bloqueando combustível, alimentos, material médico e outras ajudas essenciais de modo a não chegar às dezenas de milhares de civis que ali vivem. Mesmo antes do terramoto, estes bairros tinham praticamente esgotado os seus abastecimentos médicos, tornando-os mal equipados para lidar com as baixas resultantes do terramoto.

Um membro do conselho local do Sheikh Maqsoud e Ashrafieh disse à Amnistia Internacional que seis pessoas morreram e 100 ficaram feridas nos terramotos em virtude da falta de acesso a medicamentos e mantimentos. O membro do conselho acrescentou que, após os terramotos, não receberam qualquer combustível ou ajuda humanitária até 18 de fevereiro.

A Syrians for Truth and Justice, uma organização local de direitos humanos, publicou um relatório documentando obstruções adicionais de ajuda à cidade de Aleppo Norte e Aleppo por grupos armados apoiados pela Turquia e pelo governo sírio, respetivamente, o que, segundo eles, levou a mortes que eram evitáveis, demonstrando a natureza prevalecente destas violações. O relatório também documenta um incidente de obstrução da ajuda por Ha’yat Tahrir al-Sham, uma coligação de grupos armados da oposição, no noroeste da Síria.

 

Desvio de camiões

Vários, sobreviventes dos terramotos, tanto na cidade de Aleppo, como em Afrin, descreveram à Amnistia Internacional como os atrasos ou a falta de ajuda que receberam desde os sismos exacerbaram a já terrível situação, forçando alguns a partir para outras áreas.

Um trabalhador humanitário e representante local no Nordeste da Síria disse à Amnistia Internacional que foram precisos sete dias de negociações para que o governo sírio autorizasse 100 camiões com combustível e ajuda humanitária enviados pela AANES a entrar no Sheikh Maksoud e Ashrafieh a 16 de fevereiro, e na condição de desviarem mais de metade da ajuda para o governo, que seria o único responsável pela distribuição da ajuda dentro destes bairros.

O membro do conselho local em Sheikh Maksoud e Ashrafieh acrescentou que apenas 21 camiões entraram nos bairros em dois lotes a 18 e 19 de Fevereiro – uma fracção do que se esperava que chegasse das áreas controladas por AANES.

Uma mulher deslocada a viver no Sheikh Maqsoud desde 2018 decidiu partir com as suas três filhas para o norte da Síria depois de perder a sua casa e pertences nos terramotos. Disse à Amnistia Internacional: “Sabíamos que se ficássemos no Sheikh Masoud não receberíamos qualquer ajuda ou abrigo [devido ao bloqueio] por isso eu e muitos outros saímos, mas os homens ficaram para trás por medo de serem presos pelo governo…”.

Fontes independentes e locais dos meios de comunicação social relataram que as forças filiadas no governo sírio alegadamente roubaram a ajuda enviada aos sobreviventes do terramoto. Houve também notícias de que aqueles que criticaram os esforços de distribuição da ajuda do governo sírio e acusaram o governo de desviar a ajuda foram presos.

Em Afrin, cinco entrevistados, incluindo quatro sobreviventes, disseram à Amnistia Internacional que tinham conhecimento de pelo menos seis casos em que grupos armados desviaram a ajuda para as suas próprias famílias e familiares.

Um curdo, cuja casa numa aldeia de Afrin foi destruída no terramoto, disse à Amnistia Internacional que era necessário estabelecer [ligações] com grupos armados para obter qualquer ajuda. Revelou: “Ninguém veio para verificar os danos ou prestar-nos assistência. Quando pedi ajuda a uma organização local, disseram-me que não havia nenhuma. Mas depois, vi o nosso vizinho, que tem um familiar num grupo armado, a receber 17 pequenas caixas de ajuda. Eles são uma família de cinco… Nós [curdos] e algumas famílias árabes pobres deslocadas em Afrin estamos na mesma situação difícil, porque não temos ajuda”.

Em Jinderes, um curdo disse à Amnistia Internacional que o seu tio, mãe e irmã tiveram de comprar uma tenda por 150 dólares porque não a receberam através de organizações humanitárias. Disse que “uma organização veio e distribuiu ajuda… A minha família não recebeu nada. Como é que há tendas para venda quando todas as tendas que chegam à área são através de donativos e organizações”? Os meios de comunicação locais declararam que um líder de um grupo armado da oposição confiscou 29 tendas e outra ajuda que foi dirigida às pessoas afectadas em Jinderes.

Uma organização síria de direitos humanos que entrevistou membros do SNA, que confirmou estes relatos e disse à Amnistia Internacional que grupos armados pressionaram as equipas de busca e salvamento a dar prioridade às casas das suas famílias e parentes e obrigaram os comboios que atravessavam o nordeste, sob o controlo dos curdos, a renunciar a 40% da ajuda humanitária como condição para passar para áreas sob o seu controlo.

“A Turquia é a potência ocupante em Afrin, sendo por isso responsável pelo bem-estar da população civil e pela manutenção da lei e da ordem. Tem a obrigação legal de assegurar que os civis necessitados recebam ajuda humanitária essencial. E deve impedir grupos armados de bloquear a ajuda ou de discriminar na sua distribuição”, disse Aya Majzoub.

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