22 Maio 2009

Lúcia Cabral, Renata Trajano, Maria Lúcia Almeida, Josicleide Urbano, Maria Teles de Aguiar e Maria do Carmo da Silva são seis mulheres com uma única ligação: a favela onde habitam, no Rio de Janeiro, Brasil, onde tentam sobreviver. O bairro degradado é chamado Complexo do Alemão e é mundialmente conhecido pelo narcotráfico. Filmes como o recente “Tropa de Elite” ajudam a perceber os meandros deste submundo, mas ocultam as muitas famílias que num ambiente violento procuram levar uma vida (dita) normal. Foi este “outro lado” dos bairros degradados que a Amnistia Internacional Portugal procurou revelar, numa tertúlia muito participada que decorreu ontem na Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, e que abriu com a exibição do documentário “Elas da Favela”, de Dafne Capella, onde as seis mulheres são apresentadas.

Tatiana Moura, do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, surpreendeu a plateia ao revelar que “apenas 1% dos jovens das favelas ingressam no narcotráfico”, o que equivale a dizer que 99% optam por ficar fora desta realidade. A investigadora, que há quase cinco anos desenvolve projectos nas favelas do Rio de Janeiro relacionados com a violência armada, aconselha “é preciso pensar o que chega às notícias. Pensar o que está para além daquilo que nos é contado. O que está para além do óbvio”. E deixou desde logo algumas pistas, indicando que os habitantes das favelas vivem num contexto gravíssimo de impunidade e que a maioria das famílias são monoparentais.

A face oculta

Tatiana MouraCristina Soeiro, do Gabinete de Psicologia da Polícia Judiciária, mostrou que em Portugal a realidade não é muito diferente, pois um estudo realizado pelo seu gabinete com jovens delinquentes com idades entre os 13 e os 23 anos revelou que, contrariamente ao que se possa pensar, “estes não provêm de famílias com um longo historial de criminalidade, mas são filhos de famílias monoparentais, com mães que trabalham o dia inteiro enquanto eles ficam na rua”. Assim se aproximam dos grupos criminosos, apesar de muitas vezes o facto de o “chefe de família” ser mulher ajudar a afastar os jovens da criminalidade. O problema, continua Tatiana Moura, é que os chamados gangues são o “porto seguro” para a comunidade das favelas. “Quando alguém está doente, são os criminosos que muitas vezes pagam os medicamentos”, recorda.

Talvez por isso, a investigadora conta que viu várias crianças que, nas suas brincadeiras, preferiam ser os criminosos do que ser o polícia. Uma realidade que está bem visível no documentário que deu início à tertúlia e que se explica pela extrema violência das incursões policiais. Tatiana Moura acrescenta que a opinião generalizada nestas comunidades é a de que as pessoas do narcotráfico são locais e, por isso, sabem quem está ligado a este mundo e quem não está. A polícia, pelo contrário, “mata qualquer um”, ouve-se no filme. António José Afonso, Subcomissário da Polícia de Segurança Pública (PSP), mostrou preocupação pela forma como a polícia actua nas favelas brasileiras, mas revelou que se deve ao facto de só entrarem nestes bairros as Unidades Especiais de Intervenção, conhecidos no Brasil por BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais).

O caminho a trilhar

António José AfonsoPara o Subcomissário da PSP, “o que vimos no documentário é uma Guerra”. E, acrescenta, “há problemas que estão a montante” e que levaram à situação incontrolável que hoje se vive e que exige a intervenção das forças especiais, como o crescimento económico lento do país, a pobreza vivida pela população, a incapacidade de responsabilização por parte do Estado e a sua ausência total da vida destas pessoas. Tatiana Moura acrescenta: “As favelas do Brasil não surgiram de um dia para o outro. Houve uma primeira geração de migrantes que vieram de locais como o Nordeste, à procura de emprego, e estes conseguiram-no. Dizem os especialistas que o problema está depois nas segundas e terceiras gerações, que já não têm emprego”.

Para a investigadora, a criminalidade não nasceu sequer com as populações, mas surge nos anos 70 com o Comando Vermelho, quando presos políticos são encarcerados com criminosos comuns, durante a ditadura militar vivida no país. Alojaram-se depois nas favelas por estes serem locais sem regra, sem lei e sem a intervenção do Estado, como ficou bem claro no documentário. Assim se acendeu o rastilho de uma criminalidade que hoje continua. Até porque, diz Tatiana Moura, “no narcotráfico ganha-se 500 reais por semana [176 Euros], o que equivale a um mês de ordenado”. Dinheiro que atrai os mais jovens. Por isso, para Cristina Soeiro a intervenção local tem de começar muito mais cedo do que hoje começa, junto das crianças, pois “um jovem de 16 anos pode já não ser passível de reinserção”.

Cristina SoeiroTatiana Moura acrescenta que o problema das favelas está também nas forças de intervenção. “A polícia no Rio de Janeiro foi herdada da ditadura militar e é do mesmo estrato social das pessoas das favelas”, ou seja, têm o mesmo salário e o mesmo tipo de educação. Acrescenta até que hoje há as chamadas milícias, constituídas pelos próprios polícias, fora da hora de trabalho, e por ex-polícias. Por isso, conclui a investigadora, “é fundamental uma reforma na polícia”. A título de exemplo, revela que até há 15 anos as forças policiais recebiam prémios por cada traficante morto. Afirma, porém, que há já uma nova geração de polícias que quer mudar esta atitude, mas confessa que “é muito difícil alterar algo que está tão enraizado culturalmente”.

O Subcomissário da PSP, António José Afonso, indica que em Portugal “o modo de intervenção da polícia é completamente diferente”, com a aposta a ser feita numa acção pró-activa, ou seja, antes dos problemas acontecerem. Para tal, acrescenta, “estimula-se a proximidade”, ou seja, estão a ser desenvolvidos projectos junto das populações, desde 2006, com o objectivo de aproximar a polícia da população. “Assim, quando há algum problema, a polícia sabe onde intervir e faz uma intervenção cirúrgica” e não uma incursão indiscriminada como revela o documentário “Elas da Favela”.

altNo entanto, António José Afonso defende: “a estratégia não passa só pelas forças policiais. Estas comunidades têm de ser reconhecidas pelo Estado, senão os grupos criminosos substituem-no”. Tatiana Moura concorda: “sem vontade política não se pode fazer nada”. Para além do Governo e da Polícia, há um terceiro elemento fundamental para mudar o cenário de violência nos centros urbanos do Brasil: a sociedade, concluiu a mesa de oradores. Isto porque são as pessoas fora da favela que pressionam e incentivam as forças policiais para que acabem com os criminosos e fazerem incursões nos bairros degradados. No fundo, é a própria sociedade que ajuda a marginalizar todos os que vivem nas favelas, esquecendo-se que pessoas que ficam à margem, são pessoas que vivem acima da lei.

A encerrar a sessão, Manuella Lopes, uma estudante de jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social, de 32 anos, alertou os presentes para o facto de a realidade portuguesa não ser assim tão diferente da brasileira. Nascida no Brasil e a viver em Portugal há um ano e meio, diz que sente a mesma discriminação e racismo, por parte da sociedade portuguesa, daquela que é sentida no Brasil pelos habitantes das favelas. Além disso, o Estado também não está assim tão presente em alguns bairros, defende. Cristina Soeiro concorda, acrescentando que há locais onde a polícia não entra facilmente e revelando que é hoje muito fácil o acesso às armas de fogo. Manuella Lopes deixa o aviso: “eu vejo muitas semelhanças entre as duas realidades, por isso, não sei o que poderá acontecer se não se resolverem estes problemas agora”.

Mais informações:
Filme “Elas da Favela”, de Dafne Capella, disponível em três partes (Parte 1, Parte 2, Parte 3)
– Relatório da Amnistia Internacional “Por Trás do Silêncio: Experiências de Mulheres com a Violência Urbana no Brasil”, disponível aqui.

Nota: A Amnistia Internacional agradece à Escola Superior de Comunicação Social a cedência do espaço. 

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