Lúcia Cabral, Renata Trajano, Maria Lúcia Almeida, Josicleide Urbano, Maria Teles de Aguiar e Maria do Carmo da Silva são seis mulheres com uma única ligação: a favela onde habitam, no Rio de Janeiro, Brasil, onde tentam sobreviver. O bairro degradado é chamado Complexo do Alemão e é mundialmente conhecido pelo narcotráfico. Filmes como o recente “Tropa de Elite” ajudam a perceber os meandros deste submundo, mas ocultam as muitas famílias que num ambiente violento procuram levar uma vida (dita) normal. Foi este “outro lado” dos bairros degradados que a Amnistia Internacional Portugal procurou revelar, numa tertúlia muito participada que decorreu ontem na Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, e que abriu com a exibição do documentário “Elas da Favela”, de Dafne Capella, onde as seis mulheres são apresentadas.
Tatiana Moura, do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, surpreendeu a plateia ao revelar que “apenas 1% dos jovens das favelas ingressam no narcotráfico”, o que equivale a dizer que 99% optam por ficar fora desta realidade. A investigadora, que há quase cinco anos desenvolve projectos nas favelas do Rio de Janeiro relacionados com a violência armada, aconselha “é preciso pensar o que chega às notícias. Pensar o que está para além daquilo que nos é contado. O que está para além do óbvio”. E deixou desde logo algumas pistas, indicando que os habitantes das favelas vivem num contexto gravíssimo de impunidade e que a maioria das famílias são monoparentais.
A face oculta
Talvez por isso, a investigadora conta que viu várias crianças que, nas suas brincadeiras, preferiam ser os criminosos do que ser o polícia. Uma realidade que está bem visível no documentário que deu início à tertúlia e que se explica pela extrema violência das incursões policiais. Tatiana Moura acrescenta que a opinião generalizada nestas comunidades é a de que as pessoas do narcotráfico são locais e, por isso, sabem quem está ligado a este mundo e quem não está. A polícia, pelo contrário, “mata qualquer um”, ouve-se no filme. António José Afonso, Subcomissário da Polícia de Segurança Pública (PSP), mostrou preocupação pela forma como a polícia actua nas favelas brasileiras, mas revelou que se deve ao facto de só entrarem nestes bairros as Unidades Especiais de Intervenção, conhecidos no Brasil por BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais).
O caminho a trilhar
Para a investigadora, a criminalidade não nasceu sequer com as populações, mas surge nos anos 70 com o Comando Vermelho, quando presos políticos são encarcerados com criminosos comuns, durante a ditadura militar vivida no país. Alojaram-se depois nas favelas por estes serem locais sem regra, sem lei e sem a intervenção do Estado, como ficou bem claro no documentário. Assim se acendeu o rastilho de uma criminalidade que hoje continua. Até porque, diz Tatiana Moura, “no narcotráfico ganha-se 500 reais por semana [176 Euros], o que equivale a um mês de ordenado”. Dinheiro que atrai os mais jovens. Por isso, para Cristina Soeiro a intervenção local tem de começar muito mais cedo do que hoje começa, junto das crianças, pois “um jovem de 16 anos pode já não ser passível de reinserção”.
O Subcomissário da PSP, António José Afonso, indica que em Portugal “o modo de intervenção da polícia é completamente diferente”, com a aposta a ser feita numa acção pró-activa, ou seja, antes dos problemas acontecerem. Para tal, acrescenta, “estimula-se a proximidade”, ou seja, estão a ser desenvolvidos projectos junto das populações, desde 2006, com o objectivo de aproximar a polícia da população. “Assim, quando há algum problema, a polícia sabe onde intervir e faz uma intervenção cirúrgica” e não uma incursão indiscriminada como revela o documentário “Elas da Favela”.
A encerrar a sessão, Manuella Lopes, uma estudante de jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social, de 32 anos, alertou os presentes para o facto de a realidade portuguesa não ser assim tão diferente da brasileira. Nascida no Brasil e a viver em Portugal há um ano e meio, diz que sente a mesma discriminação e racismo, por parte da sociedade portuguesa, daquela que é sentida no Brasil pelos habitantes das favelas. Além disso, o Estado também não está assim tão presente em alguns bairros, defende. Cristina Soeiro concorda, acrescentando que há locais onde a polícia não entra facilmente e revelando que é hoje muito fácil o acesso às armas de fogo. Manuella Lopes deixa o aviso: “eu vejo muitas semelhanças entre as duas realidades, por isso, não sei o que poderá acontecer se não se resolverem estes problemas agora”.
Mais informações:
– Filme “Elas da Favela”, de Dafne Capella, disponível em três partes (Parte 1, Parte 2, Parte 3)
– Relatório da Amnistia Internacional “Por Trás do Silêncio: Experiências de Mulheres com a Violência Urbana no Brasil”, disponível aqui.
Nota: A Amnistia Internacional agradece à Escola Superior de Comunicação Social a cedência do espaço.