11 Novembro 2015

 

O sistema de justiça penal na China continua fortemente dependente de confissões forçadas obtidas através de tortura e maus-tratos, com os advogados que insistem em fazer valer as alegações de abusos sofridos a serem frequentemente ameaçados, perseguidos ou mesmo detidos e eles próprios torturados, expõe a Amnistia Internacional em novo relatório.

“No End in Sight: Torture and Forced Confessions in China” (Sem fim à vista: tortura e confissões forçadas na China), publicado esta quarta-feira, 11 de novembro, documenta a forma como as reformas do sistema penal chinês, apresentadas como avanços de direitos humanos pelo Governo de Pequim, pouco contribuíram na realidade para mudar as muito entrincheiradas práticas de tortura de suspeitos para extração de confissões forçadas no país. Quaisquer tentativas feitas por advogados de defesa para fazer valer ou investigar tais alegações são sistematicamente frustradas pela polícia, pelos procuradores e pelos tribunais.

“Num sistema onde até os advogados podem acabar por ser torturados pela polícia, que esperança têm os arguidos?”, questiona o investigador da Amnistia Internacional Patrick Poon, especialista em China. “Encobrir um sistema de justiça que não é independente, no qual a polícia permanece toda-poderosa e onde não há qualquer forma de recurso quando os direitos dos arguidos são violados, pouco fará para conter o flagelo da tortura e dos maus-tratos na China. Se o Governo está verdadeiramente determinado a melhorar a situação de direitos humanos no país tem de começar por responsabilizar os organismos que tutelam a aplicação da lei quando estes cometem abusos”, prossegue.

Advogados de toda a China reportaram à Amnistia Internacional as represálias de que são alvo quando põem em causa as autoridades. E identificaram falhas fundamentais no sistema de justiça que permitem que polícias, procuradores e outros agentes judiciais contornem as novas salvaguardas legais criadas justamente para impedir que confissões forçadas resultem em condenações erradas. Peritos legais chineses estimam que menos de 20% de todos os arguidos em processos penais têm representação legal nos seus processos.

“O Governo parece mais preocupado com o potencial embaraço que pode resultar de condenações erradas do que em refrear a tortura das pessoas detidas”, critica Patrick Poon. O investigador da Amnistia Internacional avança ainda que “para a polícia, obter uma confissão continua a ser a forma mais fácil de assegurar uma condenação”. “E até que seja permitido aos advogados desempenharem o seu trabalho sem medo de represálias, a tortura continuará a ser generalizada na China”, explica.

O novo relatório da organização de direitos humanos documenta casos de tortura e de maus-tratos que ocorreram em detenção preventiva, incluindo espancamentos pela polícia ou por outros detidos com o conhecimento dos agentes ou mesmo sob suas ordens. Os instrumentos e métodos de tortura descritos no relatório incluem cadeiras de imobilização em ferro, bancos em que as pernas da pessoa são esticadas e fortemente amarradas a um banco estreito, sendo gradualmente colocados tijolos debaixo dos pés de forma a forçar as pernas a dobrarem para trás até à altura dos joelhos, e ainda privação do sono durante longos períodos de tempo, além da privação de comida e de água.

Com o historial de tortura da China a ser escrutinado pelo comité contra a tortura das Nações Unidas, na próxima semana em Genebra, o Governo de Pequim sustenta que as autoridades no país sempre “encorajaram e apoiaram os advogados a desempenharem os seus deveres” e negam que seja exercido qualquer tipo de “retaliação”.

O antigo procurador e advogado Tang Jitian, de Pequim, contou à Amnistia Internacional que foi torturado por agentes de segurança em março de 2014, quando ele e três outros advogados investigavam um caso de alegadas práticas de tortura num centro de detenção secreto – conhecidos como “prisões negras” – em Jiansanjiang, no nordeste da China.

“Fui amarrado a uma cadeira de ferro, esbofeteado, pontapeado nas pernas e espancado com tanta força na cabeça com uma garrafa de plástico cheia de água que desmaiei”, recordou. Tang Jitian foi mais tarde encapuçado, as mãos algemadas atrás das costas e suspenso pelos pulsos enquanto era espancado pelos polícias.

Um outro advogado, Yu Wensheng, também de Pequim, foi detido a 13 de outubro de 2014 e mantido preso durante 99 dias pela polícia. Este advogado contou à Amnistia Internacional que foi questionado umas 200 vezes durante aquele período, com dez agentes de segurança encarregues dos interrogatórios em três turnos sucessivos todos os dias. Foi algemado pelos pulsos atrás das costas, com as algemas propositadamente muito apertadas.

“As minhas mãos incharam e senti tanta dor que não queria viver. Os polícias puxavam pelas algemas repetidas vezes e eu gritava”, contou.

Detenções secretas e tortura

Peritos legais relataram à Amnistia Internacional que a extração de confissões através de tortura continua profundamente enraizada durante a detenção preventiva, em especial nos casos com motivação política, como os que envolvem dissidentes ao regime, minorias étnicas e aqueles que estão envolvidos em atividades religiosas.

O relatório “No End in Sight” demonstra que nos últimos dois anos, as autoridades reforçaram o recurso a uma nova forma de detenção em regime de incomunicabilidade designada por “vigilância domiciliária em localização designada”, a qual foi formalizada legalmente em 2013 quando entraram em vigor as reformas à Lei de Processo Penal da China.

Ao abrigo deste novo sistema, as pessoas suspeitas de terrorismo, de subornos volumosos ou de delitos de segurança de Estado podem ficar detidas fora do sistema formal de detenção numa localização que é mantida em segredo até ao período máximo de seis meses, sem contacto com o mundo exterior, o que deixa o detido em risco grave de ser sujeito a tortura e outros maus-tratos.

Pelo menos 12 advogados e ativistas apanhados na recente vaga de repressão contra os defensores dos direitos humanos estão atualmente detidos em “vigilância domiciliária em localização designada” e acusados de delitos contra a segurança de Estado. A Amnistia Internacional considera que todos se encontram em risco grave de tortura e outros maus-tratos e instou o Governo chinês a libertar estas pessoas e a anular todas as acusações contra elas formuladas.

Resistência às reformas

Apesar de terem sido encetadas várias reformas legais desde 2010, a definição de tortura na legislação da China continua a ser desadequada e em contravenção à legislação internacional. As leis chinesas proíbem apenas algumas práticas de tortura como o “uso de violência para obter declarações de testemunhas” e quando cometida por alguns agentes das forças de segurança, sendo que os perpetradores que não estão expressamente descriminados na lei só podem ser acusados de cumplicidade em ato de tortura. Acresce que a tortura mental não está explicitamente banida da lei na China como é exigido pela legislação internacional.

A maioria dos advogados entrevistados para este relatório reportou a falta de independência judicial e o poder preeminente das agências de segurança pública como sendo alguns dos principais obstáculos à obtenção de justiça nas alegações de tortura. Comités locais legais e políticos, formados por responsáveis do Partido Comunista, possuem uma influência muito significativa na determinação do resultado de quaisquer casos judiciais que sejam politicamente sensíveis. E quando um desses comités quer a condenação de um arguido, as denúncias de tortura sofrida são ignoradas pelo tribunal e os responsáveis raramente responsabilizados.

Advogados que prestaram testemunho aos investigadores da Amnistia Internacional denunciaram que continuam a não ser capazes de apresentar alegações de tortura em tribunal de forma a obterem investigações sérias por parte dos procuradores, e menos ainda sob a alçada de organismos independentes, nem tão pouco conseguem que as confissões forçadas sejam excluídas como provas em julgamento.

“Responsáveis locais e a polícia continuam a puxar os cordelinhos do sistema de justiça penal na China. Apesar de todos os esforços feitos pelos advogados de defesa, muitas das denúncias de tortura são simplesmente ignoradas por pura conveniência política”, descreve o investigador da Amnistia Internacional.

Patrick Moon sublinha ainda que “a polícia detém demasiado poder que não é fiscalizado, do que resulta que as medidas destinadas a conter a tortura não estão a ter o impacto necessário”.

Tortura e “provas” ilegais

Para analisar como é que os tribunais na China lidam com as denúncias de extração de “confissões” através de tortura, desde a introdução de reformas legais que visam justamente excluir dos processos provas obtidas sob tortura, a Amnistia Internacional passou em revista centenas de documentos de tribunal acessíveis na base de dados online do Supremo Tribunal da China.

Numa amostra de 590 casos em que foram feitas denúncias de tortura, apenas em 16 processos foram excluídas as confissões obtidas sob tortura, tendo um só resultado em absolvição do arguido; os restantes acabaram em condenações sustentadas por outras provas apresentadas em julgamento. Este baixo número de casos em que provas conseguidas sob tortura foram excluídas parece corroborar os testemunhos prestados por advogados de que as confissões forçadas continuam a ser apresentadas como prova em tribunal e que provas obtidas ilegalmente não são excluídas pelos juízes.

Ao abrigo da legislação internacional, assim como das leis chinesas, o ónus da prova recai na acusação, devendo ser os procuradores a demonstrarem que as provas foram obtidas de forma legal. Na prática, porém, os tribunais ignoram frequentemente as alegações de tortura se o arguido não as conseguir provar.

“No End in Sight” apresenta um conjunto detalhado de recomendações. Em particular, e de forma a pôr fim ao uso da tortura e maus-tratos no sistema de justiça penal na China, a Amnistia Internacional exorta o Governo chinês a:

  • garantir que advogados e ativistas desempenham o seu trabalho sem intimidação, nem perseguição, sem restrições arbitrárias nem o medo de serem detidos, torturados ou alvo de maus-tratos ou acusações criminais;

  • assegurar que nenhumas declarações obtidas sob tortura ou maus-tratos são usadas como provas em quaisquer processos judiciais;

  • orientar as leis, políticas e práticas na China para o cumprimento absoluto da proibição de tortura e outros maus-tratos consagrada na legislação internacional.

 

A Amnistia Internacional tem ativa uma petição em que se instam as autoridades chinesas a confirmarem o paradeiro e estatuto jurídico de todos os advogados e ativistas que foram detidos, ou que estão desaparecidos, na vaga de repressão que ocorreu em julho passado, e que lhes seja concedido acesso a advogados e às suas famílias, além de assegurarem que não são submetidos a tortura e maus-tratos. Assine!

 

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