29 Fevereiro 2016

A escalada de violações de direitos humanos – em que se incluem possíveis crimes de guerra –, que desencadeou uma crise humana no contexto do conflito armado no Iémen, apenas irá agravar-se a não ser que os países imponham imediatamente um abrangente embargo a todas as transferências de armamento que possa ser usado por qualquer das partes beligerantes, alerta a Amnistia Internacional ao arrancar esta segunda-feira, 29 de fevereiro, em Genebra, reunião dos Estados-parte do Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais (TCA, ATT na sigla em inglês).

Países que integram e assinaram o TCA estão entre aqueles que continuam a fornecer armas à Arábia Saudita e seus parceiros na coligação militar para uso no Iémen – numa descarada violação do tratado, em particular das cláusulas respeitantes aos direitos humanos. As armas que fluem para o conflito têm também sido desviadas para as mãos de grupos armados huthi (tribo xiita que é apoiada pelo Irão) e outros que combatem no Iémen.

“O mundo não só virou as costas à população do Iémen; muitos países têm de facto contribuído para o seu sofrimento, fornecendo armas e bombas que têm sido usadas para, em violação da lei internacional, matar e ferir civis e destruir casas e infraestruturas civis. Isto causou uma catástrofe humana no país”, avalia o chefe do gabinete de Controlo de Armas e Direitos Humanos da Amnistia Internacional, Brian Wood.

O perito da organização de direitos humanos sustenta que “todos os Estados, assim como as organizações internacionais como a União Europeia e as Nações Unidas, devem fazer tudo o que está ao seu alcance para evitar que este já brutal custo para as populações ainda se agrave mais”. “Um primeiro passo crucial é pôr fim imediatamente aos irresponsáveis e ilegais fluxos de armas que possam ser utilizadas no conflito no Iémen”, explica.

A Amnistia Internacional tem documentado como, desde o início do conflito em março passado, todas as partes envolvidas cometeram uma séria de graves violações da lei humanitária internacional e leis de direitos humanos, incluindo possíveis crimes de guerra, com impunidade. Esta conduta contribuiu para a morte de quase 3 000 civis, incluindo 700 crianças, e ferimentos em mais de 5 600 pessoas, além de ter forçado 2,5 milhões a fugirem das suas casas.

A necessidade de um embargo às armas

A Amnistia Internacional exorta todos os países a garantirem que nenhuma das partes beligerantes no Iémen recebe – direta ou indiretamente – armas, munições, equipamento ou tecnologia militar que possam ser utilizadas no conflito até que ponham fim a estas graves violações de direitos humanos. Tal embargo deve igualmente aplicar-se a todo o apoio logístico e financeiro para essas transferências de armamento.

Este apelo da Amnistia Internacional a um embargo vai muito além das existentes sanções internacionais às partes envolvidas no conflito no Iémen. A resolução 2216 aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) em abril de 2015 impos um embargo às armas apenas aos grupos armados huthi e forças que permanecem leais ao ex-Presidente Ali Abdullan Saleh. E a resolução não-vinculativa aprovada na semana passada, a 25 de fevereiro, pelo Parlamento Europeu, exorta por seu lado a União Europeia (UE) a impor um embargo de armas à Arábia Saudita, mas não a quaisquer outras partes envolvidas no conflito.

A Amnistia Internacional insta a que autorizações dadas a transferências de armamento para qualquer parte beligerante no Iémen incluam uma garantia rígida e vinculativa de que o mesmo não será usado em violação das leis de direitos humanos e da legislação humanitária internacional, e que esses fornecimentos de armas não terão por destino o conflito no Iémen. Devem os países ficar obrigados a informarem expressamente o Comité de Sanções da ONU sobre os termos de todas as transferências que façam assim como das garantias sobre o uso final dado às armas fornecidas.

A organização de direitos humanos não está a fazer um apelo à adoção de uma proibição total à aquisição legal de armas pelos membros da coligação liderada pela Arábia Saudita para usos legítimos das mesmas fora do Iémen – por exemplo, a armamento usado na proteção da prestação de ajuda humanitária ou participação em operações de manutenção da paz.

Um embargo às armas deverá excluir quaisquer transferências de armamento para qualquer das partes envolvidas no conflito para serem usadas no Iémen, enquanto persistirem riscos substanciais desse armamento ser utilizado para cometer ou facilitar a ocorrência de crimes de guerra e outras graves violações de direitos humanos.

Os Estados-parte do TCA – em que se incluem os Estados-membros da UE – já deviam estar neste momento a concretizar estas garantias sobre o uso final das armas, ao abrigo das obrigações a que estão vinculados pelo tratado.

É ainda crucial que o embargo englobe não apenas as armas e munições usadas em ataques aéreos – como aeronaves militares, mísseis e bombas – mas também equipamento utilizado em operações terrestres pelas forças huthi assim como por grupos armados e milícias alinhados com a coligação liderada pela Arábia Saudita no Iémen, no que se incluem os imprecisos rockets de artilharia da categoria Grad, assim como morteiros, armas de pequeno calibre e ligeiras, e demais equipamento como veículos armados.

Possíveis crimes de guerra cometidos por ambas as partes

Desde a eclosão do conflito no Iémen, em março de 2015, a Amnistia Internacional documentou 30 raides aéreos, atingindo cinco regiões (Sanaa, Sada, Hajjah, Taiz e Lahj), por parte da coligação militar liderada pela Arábia Saudita, em que há indícios de violação da lei humanitária internacional e dos quais resultou a morte de 366 civis – mais de metade dos quais são mulheres e crianças – e outros 272 foram feridos. Aqui se incluem ataques sobre hospitais, escolas, mercados e mesquitas, que podem constituir crimes de guerra.

A organização de direitos humanos investigou também 30 ataques terrestres indiscriminados ou negligentes por parte de grupos huthi e outros leais ao antigo chefe de Estado, nas cidades de Aden e Taiz, no Sul do Iémen, em que morreram pelo menos 68 civis e mais 99 foram feridos (na maioria, mulheres e crianças). Armamento impreciso é usado no campo de batalha com uma regularidade diária contra áreas residenciais, provocando vítimas civis e demonstrando um total desrespeito pela vida das populações. Tais ataques indiscriminados violam as leis da guerra.

A Amnistia Internacional também documentou o uso, pelas forças da coligação liderada pela Arábia Saudita, de pelo menos quatro tipos diferentes de munições de fragmentação internacionalmente banidas – incluindo de fabrico norte-americano e brasileiro – em pelo menos cinco ataques que ocorreram em três regiões do Iémen desde março de 2015. O mais recente ataque documentado deu-se em Sanaa, a 6 de janeiro, em que morreu um rapaz de 16 anos e seis outros civis ficaram feridos. As munições de fragmentação (cluster bombs) são armas de natureza indiscriminada e comportam perigos a longo prazo para os civis; a sua utilização está expressamente proibida.

“Os combates no Iémen resultaram num catálogo de horrores para a população civil. As partes beligerantes são diretamente responsáveis por desprezar de forma flagrante a lei humanitária internacional e pelo falhanço total em tomar as medidas necessárias para proteger as populações civis e os direitos humanos”, critica Brian Wood. “Mas a comunidade internacional também desempenha uma parte importante nisto, ao continuar a fornecer armas, no valor de milhares de milhões de dólares, à coligação liderada pela Arábia Saudita, apesar das claras provas de riscos persistentes de que esse armamento é usado para cometer graves violações”, prossegue.

O chefe do gabinete de Controlo de Armas e Direitos Humanos da Amnistia Internacional sublinha ainda que “parar os fluxos de armas para todas as partes no conflito no Iémen tem de ser acompanhado da criação de um inquérito internacional que leve a cabo investigações credíveis e independentes às graves violações da legislação humanitária e leis internacionais de direitos humanos por todas as partes”.

A Amnistia Internacional, junto com outras mais de 100 ONG que integram a Control Arms Coalition, emitiu na passada sexta-feira, 26 de fevereiro, um novo relatório onde são identificados vários países europeus, além dos Estados Unidos, que emitiram licenças ou fizeram fornecimentos de armas à Arábia Saudita, no total de 25 mil milhões de dólares em 2015, inlcuindo drones, bombas, tropedos, rockets e mísseis – o tipo de armamento que atualmente está a ser usado pela coligação liderada pela Arábia Saudita e forças aliadas em ataques terrestres e aéreos contra o Iémen que constituem graves violações de direitos humanos e possíveis crimes de guerra.

 

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