18 Setembro 2009

A Amnistia Internacional considera que o Governo Alemão deve imediatamente iniciar uma investigação ao ataque aéreo de dia 4 de Setembro que teve lugar em Kunduz, no Afeganistão, e que vitimou vários civis.

O ataque tinha como objectivo dois camiões-cisterna cheios de combustível, sequestrados por combatentes talibãs e que segundo o relatório da NATO deviam ser destruídos mesmo que implicasse a morte de civis. Os talibãs colocaram civis afegãos na linha de fogo, no entanto este facto não serve de desculpa para as acções da NATO.

A investigação realizada ao sucedido pela Amnistia Internacional sugere que as leis da guerra podem ter sido violadas durante o ataque. Testemunhas afirmam que a NATO não realizou nenhum voo de aviso nem alertou os civis para a possibilidade de um ataque.

“O Governo Alemão deve iniciar, com carácter de urgência, uma investigação ao sucedido em Kunduz. A NATO e o Governo da Alemanha devem assumir responsabilidades pela perda de civis e provar que têm vontade e mecanismos para investigar a morte destas pessoas”, afirmou Sam Zarifi, Director do Programa da Amnistia Internacional para Ásia e Pacífico.

Segundo o exército alemão, a investigação da NATO não apurou o número de vítimas, no entanto habitantes das aldeias atingidas afirmam que os ataques vitimaram cerca de 142 pessoas, entre as quais 83 civis. Um dos motoristas dos camiões-cisterna foi assassinado pelos talibãs, segundo as autoridades afegãs. A lista de vítimas é divulgada pela Amnistia Internacional no documento abaixo assim como o relatório do ataque aéreo realizado pela NATO.

ATAQUE AÉREO DE 4 SETEMBRO DE 2009 EM KUNDUZ

Este relato sobre o combate aéreo em Kunduz, que ocorreu às primeiras horas do dia 5 de Setembro, é baseado nas pesquisas feitas pela Amnistia Internacional em Kunduz entre 20-24 de Outubro de 2009. Tem por base entrevistas com os familiares dos mortos e dos sobreviventes do incidente, com testemunhas oculares, com o Chefe da Polícia de Kunduz, com os membros da Comissão Independente para os Direitos Humanos (AJHRC), com membros das Nações Unidas sedeados em Kunduz. Por razões de segurança a AI não pôde visitar o local do incidente.

As autoridades de segurança bem como os aldeões mais idosos disseram à AI que o combate aéreo matou 142 pessoas. E os mais velhos identificaram alguns dos mortos como combatentes talibãs. Alguns destes entregaram à AI uma lista de 83 pessoas mortas no incidente, que identificaram como civis, com ligações aos talibãs (lista esta que vai anexa a este documento), mas a AI não pôde verificar esta informação.

Os talibãs tinham conquistado uma forte base de apoio nesta área, particularmente nas aldeias predominantemente Pashtun, que têm uma forte ligação étnica com o movimento e tem as suas bases no sul do país. Muitos dos mortos parecem ser de aldeias predominantemente Pashtun das proximidades do local do incidente, mas a lista dos civis mortos, fornecida pelos habitantes locais inclui alguns nomes que parecem pertencer à etnia dos Hazara (etnicamente a população de Kunduz inclui Pashtun, Uzbeques, Tajiques e Hazaras)

O desenrolar dos acontecimento

Em 4 de Setembro de 2009, dois camiões-cisterna de combustíveis pertencentes à Equipa Alemã de Reconstrução Provincial (EARP) baseada em Konduz foram desviados da sua rota pelos talibãs, na auto-estrada Kunduz-Cabul. Durante o incidente, os talibãs mataram um dos condutores e o outro foi forçado a conduzir um dos camiões. Segundo um oficial das Nações Unidas com sede em Kunduz, este não foi o único camião cisterna desviado pelos talibãs em Kunduz, já tinha havido o desvio de abastecimentos do EARP no passado.

Quando os condutores dos camiões atravessavam o rio Kunduz, entre os distritos de Ali Abad e Char Dara, os camiões ficaram atolados na lama. Então os talibãs dirigiram-se à aldeia, Amerkheil que fica a cerca de três quilómetros (tal como duas outras povoações com populações que os talibãs consideram simpatizantes) para obter ajuda para pôr os camiões em movimento. Em Amerkheil conseguiram que os habitantes lhes fornecessem dois tractores para rebocar os camiões do rio. Quando viram que os não podiam tirar do rio, os talibãs decidiram esvaziar os camiões e levá-los com eles vazios. Cada camião, segundo testemunhas oculares, poderiam levar 50 000 litros de carburante.

Os talibãs deixaram que os tractoristas de Amerkheil informassem as populações das aldeias que podiam tirar o combustível dos camiões usando sifões. Quando esta notícia se propagou na aldeia e em outros lugares, entre as 10 e as 11 da noite, os camiões foram cercados por mais de 100 homens e rapazes tentando esvaziar o fuel dos camiões. Neste mesmo tempo, guerrilheiros talibãs armados assistiram à cena. Membros da AIRHR disseram à AI que a sua investigação dava como presentes no local entre 30 a 40 talibãs, enquanto testemunhas oculares e afirmaram que apenas alguns talibãs estavam presentes naquele momento.

Os populares que assistiram ao acto, disseram à AI que ouviram um ruído de um pequeno avião voando em círculos sobre a sua cabeça no momento em que estavam trasfegando com sifões o combustível. Os aviões mantiveram-se em acção mais de quatro horas. Uma testemunha disse à AI:”Quando eu ouvi os aviões a voar, toda a gente viu os respectivos sinais, e o povo começou a abandonar a área por volta das dez da noite, mas quando todos viram que os aviões estavam a apenas a voar (e não a bombardear) voltaram todos a recolher o combustível. E o número de pessoas aumentou, mas depois da meia-noite quando já se tinham apossado do suficiente e já não tinham recipientes para levar mais, começou a diminuir. Por volta da 01h00-01h30 da manhã os aviões desapareceram.

“Cerca da 01h45 da manhã ouvimos os aviões voltarem à nossa aldeia. Eu tentei chamar o meu irmão que estava tranquilo no local. Soube então que havia algo de errado já que os aviões voltavam de novo. Mas parecia que os aviões tinham bloqueado os sistemas de telecomunicações, e nós não podíamos dizer aos nossos familiares que voltassem para trás. Então eu vi um grande fogo vindo do avião seguido de uma grande explosão com fogo por todo o lado. As chamas eram muito altas e todos avançaram para o local, porque muitas famílias tinham os seus filhos e familiares fora de casa.

“Quando chegámos ao local não vimos nada a não ser chamas e fumo. Eram cerca das três horas da manhã, e vimos alguns corpos queimados inidentificáveis e vários feridos gritando. Os aviões reapareceram e as pessoas começaram a fugir com medo de serem atacadas ou alvos de ataques. Algumas pessoas, mas não todas, conseguiram recuperar os corpos dos seus familiares. Não podíamos levar connosco os feridos, porque os aviões ainda estavam em acção, e tivemos de os deixar no local. Quando os aviões desapareceram voltamos ao local, e era ainda muito cedo, havia por todo o lado muitos corpos que na altura não pudemos identificar. Então cada um de nós transportou corpos para as aldeias, e tivemos de enterrar alguns sem os podermos identificar. Entre os cadáveres havia pelo menos 20 crianças.”

Outra testemunha disse à AI: “depois do incidente, quando ligávamos para os nossos parentes ou membros da família, os telefones tocavam, mas nenhum respondia. Fomos até ao local e vimos corpos por todo o lado. Estavam totalmente queimados. O meu irmão estava ferido e levámo-lo primeiro para o hospital provincial de Kunduz, e então chegou o IRC e transferiu-o para Kabul, para um hospital especializado em tratar queimados. Mas ele morreu porque tinha queimaduras superiores em 90% do corpo, com mais oito no mesmo local. Dos 12 que foram levados para este hospital só 2 sobreviveram: um que teve as duas pernas amputadas e outro ficou totalmente desfigurado.”

De acordo com os sobreviventes, o avião não fez o menor esforço para avisar a população do perigo que corria. Noutras circunstâncias, no Afeganistão, a força aérea da Nato conseguiu voar a baixa altitude na mesma área, mandando tiros de aviso com o objectivo de alertar a população e levá-la a afastar-se dos alvos que desejava atacar.

Uma investigação realizada pelo jornal alemão Spiegel Online cita o que o jornal chama de relatório oficial sobre o incidente, submetido ao Ministro alemão da Defesa: “À 01h51 da manhã eu decidi dar ordem (em ataque) e depois disso dois jactos F-15 americanos lançaram duas bombas, atingindo dois camiões-cisterna que um grupo de militantes talibãs tinha assaltado mais de cinco horas antes”. De acordo com o relatório do Spiegel, a tripulação de combate do F-15 perguntou ao coronel alemão e ao seu controlador aéreo em Kunduz se primeiro poderiam voar a baixa altitude sobre os camiões-cisterna. Esta espécie de aviso de força, como método, faz parte do jargão militar e destina-se a dar aos civis uma oportunidade de fugirem.

De acordo com o Spiegel o EARP confirmou que a situação implicava uma ameaça “iminente”em resposta à pergunta. Nenhuma das testemunhas entrevistadas pela AI sugeriu qualquer acção iminente no local. Segundo um oficial da ONU entrevistado pela AI, a noite do incidente apresentava boa visibilidade para qualquer aviso aéreo.

O EARP alemão em Kunduz não forneceu à AI qualquer informação, invocando a necessidade de confidencialidade enquanto a investigação prosseguia. Disse no entanto que o ataque sob comando germânico era legítimo porque os talibãs queriam usar os camiões-cisterna como explosivos, contra o EARP, e foi nesta base que foi tomada a decisão de atacar os referidos camiões. Mas não conseguiu explicar por que razão deixou prosseguir o ataque aéreo quando havia muitos civis nas proximidades dos camiões.

O Chefe da Polícia de Kunduz disse à AI: “a polícia de Kunduz recolheu restos de armas, tais como AK-42, que provam que os militantes talibãs estavam também no local. O Governo calcula que deviam estar lá cerca de 50 civis.

Após a investigação, o Governo afirmou que do total de pessoas mortas no incidente só 30 eram civis. O Governo afegão providenciou ajuda às 30 famílias dos que foram mortos neste ataque aéreo.

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