20 Outubro 2023

 

  • O impacto das alterações climáticas tende a atingir desproporcionalmente a população mais vulnerável, perpetuando e agravando situações de pobreza já existentes

 

O impacto das alterações climáticas tem sido sentido por todo o mundo, com repercussões que afetam diretamente a vida e os direitos humanos das populações a nível global. Em 2023, tal como já acontecera em 2022, o aquecimento global provocou ondas de calor extremas, incêndios, degelo de glaciares e consequente subida do nível médio das águas do mar. Por outro lado, verificaram-se períodos de precipitação intensa que submergiram enormes regiões de vários países, inundando cidades inteiras e originando deslizamento de terras. Em todas estas situações, os direitos humanos das comunidades atingidas foram lesados, obrigando à necessidade de migração ou provocando a morte em casos mais extremos.

A Amnistia Internacional sublinha que estas consequências tendem a atingir desproporcionalmente a população mais vulnerável, perpetuando e agravando situações de pobreza já existentes e colocando pessoas em risco de desalojamento. É, por isso, necessário refletir sobre a responsabilidade dos Estados e das empresas na prevenção e mitigação dos efeitos das alterações climáticas. Perante a esmagadora evidência científica, o fracasso dos governos em atuar sobre as alterações climáticas pode mesmo ser a maior violação intergeracional dos direitos humanos na história.

Perante a esmagadora evidência científica, o fracasso dos governos em atuar sobre as alterações climáticas pode mesmo ser a maior violação intergeracional dos direitos humanos na história

“As alterações climáticas são uma crise de direitos humanos sem precedentes. Interligam-se diretamente à vida e ao futuro das populações e os seus efeitos nocivos são globalmente visíveis, com o crescimento de situações de escassez alimentar, destruição de habitações, deslocações forçadas e mesmo a morte, pelo que o seu impacto limita severamente o usufruto dos direitos económicos, sociais e culturais. Com o agravamento das alterações climáticas e uma periocidade cada vez maior de fenómenos extremados, a escassez de recursos culminará também numa verdadeira crise de direitos civis e políticos para garantir o seu apoderamento”, revela Pedro A. Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional – Portugal.

“Com o agravamento das alterações climáticas e uma periocidade cada vez maior de fenómenos extremados, a escassez de recursos culminará também numa verdadeira crise de direitos civis e políticos para garantir o seu apoderamento”

Pedro A. Neto

Efeitos das Alterações climáticas – contexto nacional e internacional

Ao longo dos últimos anos, a Amnistia Internacional foi alertando para diversas ocorrências onde a crise climática impactou a vida das populações, muitas vezes de forma irreversível. Em dezembro de 2022, Portugal pôde sentir os efeitos das inundações, que provocaram constrangimentos, em especial, na região da Grande Lisboa, onde se verificou a destruição de infraestruturas e habitações (sendo que muitas ficaram inutilizáveis ou com prejuízos devido aos estragos); o corte de estradas pela presença de água e as perturbações nas redes de transportes (que dificultaram a deslocação dos habitantes da cidade), o fecho de escolas (quer por dificuldades de acesso, quer devido a medidas preventivas por parte das direções dos estabelecimentos), a inundação de alas hospitalares (que transtornou a prestação de cuidados de saúde), e ainda a morte de, pelo menos, uma pessoa.

Em dezembro de 2022, Portugal pôde sentir os efeitos das inundações, que provocaram constrangimentos, em especial, na região da Grande Lisboa

Além dos períodos de precipitação intensa, todos os anos o país é confrontado com temperaturas cada vez mais extremas e com a ocorrência de incêndios florestais, que ameaçam o direito à vida e os direitos económicos, sociais e culturais da população portuguesa, particularmente no interior do país.

De acordo com os dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, de 1 de janeiro a 18 de outubro de 2023, existiram 7605 incêndios rurais em território nacional, que culminaram em 34.446 hectares ardidos. Nos últimos dez anos, o ano com menor número de incêndios rurais em Portugal continental foi 2021, como apresenta o Instituto Nacional de Estatística, período em que houve 8.186 ocorrências e, mesmo assim, existiram 28.4 mil hectares de área ardida, mantendo os incêndios como uma das principais preocupações a cada verão. Por sua vez, na última década, 2017 foi o ano que mais fustigou Portugal, com um total de 21.006 incêndios rurais que provocaram 539.9 mil hectares ardidos (dados PorData). Entre as ocorrências de 2017, destaca-se o incêndio florestal de Pedrógão Grande a 17 de junho, onde morreram 66 pessoas, dos 5 aos 88 anos.

Na última década, 2017 foi o ano que mais fustigou Portugal, com um total de 21.006 incêndios rurais que provocaram 539.9 mil hectares ardidos

Abordando as alterações climáticas de modo global é possível perceber riscos futuros das regiões, alguns comuns e outros que se distinguem consoante a sua localização geográfica. Na Europa, o impacto climático será ainda mais percetível nos ecossistemas, nos setores económicos e na saúde das populações. Portugal estará propenso a enfrentar ondas de calor mais extremas, que significam um risco acrescido de secas, incêndios e mortes, a perda de biodiversidade, a diminuição dos caudais fluviais, uma escassez de água para consumo doméstico e maior demanda na agricultura, dificuldades crescentes na criação de gado, efeitos adversos em vários setores económicos, uma necessidade progressiva de energia para refrigeração e dificuldades na produção da mesma.

A Amnistia Internacional relembra que as alterações climáticas envolvem não só o aumento da temperatura, mas também a existência, cada vez mais habitual, de fenómenos meteorológicos extremos, alertando para uma periocidade crescente dos seus efeitos devastadores sobre as populações. O custo humano da degradação do planeta é vasto e envolve fome, privação de habitação, desemprego, deslocações forçadas, aparecimento de novos conflitos e morte. As alterações climáticas relacionam-se diretamente com o usufruto dos direitos humanos e só um ambiente saudável é capaz de o assegurar. Considerando mais incontestável do que nunca esta conexão, o Conselho dos Direitos Humanos da ONU reconheceu, em 2021, um ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável como um direito humano universal, do qual dependem a vida e a dignidade humana.

O custo humano da degradação do planeta é vasto e envolve fome, privação de habitação, desemprego, deslocações forçadas, aparecimento de novos conflitos e morte

A nível internacional, ao longo dos últimos anos a organização relembrou como o impacto das alterações climáticas tem sido sentido. No sul de Angola, a seca extrema e a falta de recursos tem forçado as comunidades pastoris a migrar para a Namíbia, numa desesperada procura por sobrevivência.

Aldeia de Caluheque, no sul de Angola, em outubro de 2021. Alojamento temporário de pessoas que fugiram da fome e estão à espera de atravessar para a Namíbia. Nos últimos quatro anos, a seca devastou os meios de subsistência de milhões de famílias de pastores no Cunene. As autoridades estimam que existam 400 pessoas deslocadas em Caluheque. Créditos: Amnistia Internacional

 

Um cenário semelhante é percetível em Madagáscar, onde a seca devastadora conduziu 1 milhão de pessoas à fome no sul do país e 91% da população vive abaixo do limiar da pobreza. Por sua vez, no Paquistão, a Amnistia Internacional advertiu para as altas temperaturas de Jacobabad (uma das cidades mais quentes do mundo, na qual a população se refresca em águas residuais sujas para suportar o calor e os pais deitam os seus filhos com roupa molhada para que consigam adormecer), assim como para as cheias que originaram um rasto de destruição em setembro de 2022, colocando um terço do país debaixo de água e deixando cerca de 750.000 pessoas sem acesso a habitações seguras e adequadas.

Retrato de uma mulher de 80 anos em Maroalomainty, Madagáscar, em maio de 2021. A região sul do país, designada por Le Grand Sud (o Sul Profundo), está atualmente a atravessar a pior seca dos últimos 40 anos. Fotografia de Pierrot Men

 

Distrito de Daddu, no Paquistão, a 7 de setembro de 2022. As chuvas de monção e o degelo dos glaciares nas montanhas do norte do Paquistão provocaram inundações que afetaram 33 milhões de pessoas e mataram pelo menos 1314, entre as quais 458 crianças. Foto de Farhan Khan/Anadolu Agency via Getty Images.

 

A subida do nível médio das águas do mar a nível global, decorrente do aumento da temperatura, tem ameaçado a segurança das populações e mesmo a extinção de regiões atualmente povoadas, nomeadamente as pequenas ilhas. Um dos casos mais evidente é o do Tuvalu, na linha da frente da crise climática e em risco de ficar submerso, cujo governo se encontra a trabalhar em vias legais para garantir que o Estado continua a ser reconhecido internacionalmente, mesmo que essa situação venha a ser real. Até 2050, a Organização Internacional para as Migrações prevê que mais de mil milhões de pessoas enfrentem riscos devido a desastres climáticos específicos das zonas costeiras.

 

Migração como resposta às alterações climáticas

Quando os efeitos nefastos das alterações climáticas atingem a dignidade, os meios de subsistência e a habitação das comunidades, criando situações de grande vulnerabilidade e extrema pobreza, a migração é uma resposta comum. O Internal Displacement Monitoring Centre revelou que, em 2021, existiram 38 milhões de deslocações internas em 141 países, das quais 22.3 milhões foram desencadeadas por catástrofes relacionados com o clima, como incêndios, temperaturas extremas, inundações, deslizamentos de terra, entre outros. Este número diz respeito a cada novo movimento migratório forçado efetuado dentro das fronteiras de um país por uma pessoa durante o ano, o que significa que a mesma pessoa pode ter realizado mais de um movimento. Globalmente, no final de 2021, 5.9 milhões de pessoas encontravam-se deslocadas internamente devido a catástrofes – não só derivadas das alterações climáticas, mas também geofísicas. Se várias pessoas de uma comunidade forem obrigadas a abandonar a sua casa durante um período devido a catástrofes climáticas e geofísicas mas regressarem às suas habitações até ao final do ano, não integram este número de pessoas deslocadas internamente ao final do ano, mas integram o número de movimentos migratórios forçados.

Em 2022, 25% dos 32.6 milhões de deslocações provocadas por catástrofes, a nível mundial, foram desencadeadas pelas inundações das monções no Paquistão.

Em 2022, 25% dos 32.6 milhões de deslocações provocadas por catástrofes, a nível mundial, foram desencadeadas pelas inundações das monções no Paquistão

Com a intensificação dos fenómenos climáticos, mais pessoas serão obrigadas a abandonar as suas casas no futuro deslocando-se, quer internamente, quer além-fronteiras. Devido ao aumento da temperatura global, a Organização Internacional para as Migrações reforça que, por cada grau adicional, os riscos globais de deslocação forçada devido a inundações são projetados para aumentar aproximadamente 50%.

A Amnistia Internacional reitera a sua preocupação com as pessoas que, já no presente, são forçadas a deslocar-se dos seus territórios de origem, atravessando fronteiras internacionais devido às alterações climáticas. A organiza apela à urgência da sua proteção, relembrando a inexistência de uma definição legal para os possíveis “refugiados climáticos” que, não estando contemplados como refugiados ao abrigo da Convenção das Nações Unidas sobre Refugiados, enfrentam problemáticas de segurança e prestação de asilo acrescidos.

A Amnistia Internacional relembra a inexistência de uma definição legal para os possíveis “refugiados climáticos” que, não estando contemplados como refugiados ao abrigo da Convenção das Nações Unidas sobre Refugiados, enfrentam problemáticas de segurança e prestação de asilo acrescidos.

 

Apelos da Amnistia Internacional

Ao abrigo do direito internacional dos direitos humanos, os Estados têm obrigações legais e executórias para enfrentar a crise climática. Ao não tomarem medidas suficientes para prevenir os danos causados pelas alterações climáticas, a curto e longo prazo, estão a violar as suas obrigações. Da mesma forma, os princípios e normas dos direitos humanos fornecem orientações significativas para estabelecer a responsabilidade das empresas relativamente à crise climática.

Entre os seus vários apelos, a Amnistia Internacional apela aos Estados mais ricos e que mais contribuem para a crise climática, que providenciem financiamento e apoio suficientes aos países em desenvolvimento, para lhes permitir cumprir as suas metas de mitigação do clima e implementar medidas eficazes de adaptação às alterações climáticas, bem como proporcionar compensações e outras formas de reparação das perdas e danos já sofridos pela sua população. São precisamente os Estados mais ricos que necessitam de apoiar os Estados com baixas emissões mas mais vulneráveis às alterações climáticas, como o Paquistão, responsável por apenas 0,4% das emissões históricas. A organização reitera ainda a necessidade do estabelecimento de um mecanismo financeiro para fornecer apoio e reparação em tempo útil às pessoas e comunidades cujos direitos humanos tenham sido violados devido à crise climática.

A Amnistia Internacional apela aos Estados mais ricos e que mais contribuem para a crise climática, que providenciem financiamento e apoio suficientes aos países em desenvolvimento

Além disso, a Amnistia Internacional insta todos os Estados, particularmente os principais países emissores e nações com responsabilidade histórica pela crise climática, a atuarem com maior vontade política, nomeadamente no seu compromisso de eliminação rápida e equitativa da utilização e produção de combustíveis fósseis. Relembra também a necessidade de rever e atualizar os objetivos de emissões para 2030, de modo a cumprir a meta do aumento da temperatura média global até 1.5°C, conforme estabelecido pelo Acordo de Paris. A organização chega mesmo a considerar que as instituições financeiras, tais como bancos e companhias de seguros, devem deixar de financiar e investir em novos projetos, atividades e indústrias que impulsionam a expansão dos combustíveis fósseis e a desflorestação.

As instituições financeiras, tais como bancos e companhias de seguros, devem deixar de financiar e investir em novos projetos, atividades e indústrias que impulsionam a expansão dos combustíveis fósseis e a desflorestação

A Amnistia Internacional pede que o compromisso se estenda às empresas, que devem pôr em prática planos específicos para reduzir as emissões através das suas operações, o mais rapidamente possível e em pelo menos 45% até 2030. Devem ainda assegurar que as suas operações, bem como as das suas filiais e fornecedores, aderem às normas internacionais em matéria de ambiente e direitos humanos.

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