23 Abril 2014

As autoridades do Qatar estão a falhar redondamente na proteção devida a quem imigra para aquele país para desempenhar trabalhos domésticos e acaba a enfrentar situações de exploração gravíssima, incluindo trabalhos forçados e violência física e sexual, denuncia a Amnistia Internacional em novo relatório.

Este documento, intitulado “My sleep is my break” (O sono é a minha folga), e divulgado esta quarta-feira, 23 de abril, revela a exploração a que estão sujeitos os migrantes no sector doméstico no Qatar, país anfitrião do campeonato do mundo de futebol em 2022. É um retrato chocante do que estes trabalhadores – na esmagadora maioria mulheres – encontram após terem sido recrutados para trabalharem no Qatar, com base em promessas falsas de salário e condições de trabalho, para encontrarem depois situações em que lhes é exigido cumprirem excessivas horas sete dias por semanas. Muitas mulheres descreveram mesmo aos investigadores da Amnistia Internacional situações em que foram sujeitas a violência física e sexual.

“As trabalhadoras domésticas migrantes no Qatar são vítimas de um sistema discriminatório que lhes nega as mais básicas garantias e as deixa totalmente vulneráveis à exploração e ao abuso, a trabalho forçado e ao tráfico humano”, sublinha a diretora do programa Assuntos Globais da Amnistia Internacional, Audrey Gaughran. “Entrevistámos mulheres que tinham sido enganadas e acabaram por ficar encurraladas e à mercê de empregadores abusivos, em alguns casos até proibidas de saírem das casas para onde foram trabalhar. Algumas destas mulheres testemunharam ter sido ameaçadas com violência física quando manifestaram a vontade de partir”, prossegue esta responsável da Amnistia Internacional.

Existem pelo menos 84 mil mulheres de outros países a trabalharem no sector doméstico neste estado do Golfo, a maioria oriundas do sul e sudeste da Ásia. Muitas trabalham horas excessivas, em alguns casos até 100 horas por semana, sem um único dia de descanso semanal. A promessa que lhes fora feita, ao serem recrutadas nos países de origem, era de salários e condições de trabalho dignas. Todas essas esperanças são despedaçadas à chegada ao Qatar.

Ao abrigo das leis do Qatar não existem quaisquer limites ao horário de trabalho dos trabalhadores domésticos, nem tão pouco a garantia de lhes ser dado um dia de folga semanal. Em simultâneo não estão qualificados para poderem apresentar queixas ao Ministério do Trabalho. “As mulheres às quais calham empregadores abusivos enfrentam condições absolutamente miseráveis. E têm muito poucas opções ao seu alcance. Se decidem abandonar a casa do empregador acabam por ser identificadas como ‘foragidas’ e o mais provável é que sejam detidas e deportadas”, avança Audrey Gaughran.

As trabalhadoras domésticas no Qatar estão sujeitas a um sistema que as impede de deixarem o emprego e o país sem a permissão expressa do empregador. Apesar de algumas encontrarem bons trabalhos e serem tratadas com dignidade, outras enfrentam situações de abuso tão brutal que não podem se não “fugir”, arriscando-se assim à detenção e deportação sob acusações de “fuga à justiça”. Cerca de 95 por cento das mulheres que se encontravam no centro de deportação de Doha em março de 2013 eram trabalhadoras domésticas.

A Amnistia Internacional ouviu ali o testemunho de uma mulher oriunda da Indonésia que fugira depois de sofrer repetidos abusos físicos na casa do empregador (na foto). Contou que fora obrigada a trabalhar sete dias por semana, não recebeu salário ao longo de vários meses e foi proibida de sair da casa onde trabalhava. Durante a entrevista, mostrou a cicatriz de uma queimadura nas costas, que relatou ter-lhe sido feita pela empregadora com um ferro de engomar. Esta mulher conseguiu fugir da casa onde trabalhava e acabou por ser detida e levada para o centro de Doha.

Abusos físicos e sexuais

Os investigadores da Amnistia Internacional colheram testemunhos chocantes de abusos brutais, incluindo os de mulheres que contaram ser esbofeteadas, a quem os cabelos eram puxados, que eram agredidas na cara e pontapeadas pelas escadas abaixo pelos empregadores. Três mulheres declararam ter sido violadas.

Estas mulheres que sofreram abusos físicos e sexuais enfrentam ainda enormes obstáculos para obterem justiça e nenhuma daquelas que testemunharam na investigação da Amnistia Internacional tinha visto os seus atacantes serem acusados nem condenados por nenhum crime.

No mais violento destes casos, uma trabalhadora doméstica oriunda das Filipinas tinha fraturado a coluna e as duas pernas quando caiu de uma janela ao tentar escapar-se a uma tentativa de violação por parte do empregador. Este acabou por a violar, já com ela caída no chão e incapaz de se mover, e só depois chamou uma ambulância. Quando foi entrevistada pela equipa da Amnistia Internacional, seis meses após o ataque, esta mulher ainda estava em cadeira de rodas. Apesar dos ferimentos graves sofridos por esta mulher, a Procuradoria-Geral recusou-se a dar prosseguimento ao caso, sustentando que não existiam provas. A vítima regressou, já no final de 2013, ao país natal, e o seu empregador nunca foi acusado de crime nenhum.

As mulheres que denunciam ter sido alvo de abuso sexual arriscam-se também a serem acusadas de “relações ilícitas” (relações sexuais fora do casamento), o que criminalizado no Qatar com uma pena de um ano de prisão e, para o caso de quem é de outro país, deportação. Para a Amnistia Internacional é crucial que a criminalização de “relações ilícitas” seja afastada da legislação do Qatar quanto antes.

Mais de 70 por cento das mulheres que estavam a cumprir penas de prisão em Doha em março de 2013 eram trabalhadoras domésticas: entre elas estavam mulheres grávidas e outras ainda com filhos pequenos, 13 deles com menos de dois anos, que se encontravam presos com as mães.

Amnistia Internacional insta a mudanças

A organização instou as autoridades do país a reverem as cláusulas nas leis de trabalho que negam os direitos de trabalho às trabalhadoras do sector doméstico. Nos anos mais recentes o Governo do Qatar comprometeu-se repetidamente a introduzir novas leis de trabalho para este sector, mas nada foi feito.

“A atenção do mundo no Mundial de Futebol de 2022 lançou uma luz sobre os abusos a que estão sujeitos os trabalhadores migrantes no sector da construção no Qatar. Mas a total ausência de sistemas legais de proteção das trabalhadoras domésticas naquele país, e o facto de estas pessoas se encontrarem totalmente isoladas nas casas dos empregadores, deixa-as ainda mais expostas a abusos”, frisa a diretora do programa Assuntos Globais da Amnistia Internacional.

Audrey Gaughran reitera que “as promessas feitas até à data pelo Governo para proteger os direitos de trabalho dos trabalhadores domésticos não levaram ainda a nada de substancial”. Para a Amnistia Internacional impõe-se que as autoridades do Qatar deixem de protelar esta questão e garantam efetivamente proteção legal das trabalhadoras domésticas e lhes consagrem imediatamente os direitos mais essenciais e básicos.

 

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