12 Março 2018

 

  • aumento drástico de infraestruturas de segurança desde janeiro
  • bases militares, heliportos e estradas construídas em aldeias incendiadas
  • comunidade rohingya afastada à força das suas terras para abrir espaço à construção militar

O estado birmanês de Rakhine está a ser militarizado a uma velocidade alarmante, com as autoridades de Myanmar a construírem bases para as forças de segurança em terras onde foram incendiadas e totalmente destruídas aldeias e vilas rohingya há apenas alguns meses, documenta a Amnistia Internacional em novo relatório.

Com base em testemunhos oculares e na análise pericial de imagens de satélite, este relatório – intitulado Remaking Rakhine State (Refazer o estado de Rakhine) e publicado esta segunda-feira, 12 de março – revela como tem vindo a intensificar-se, desde janeiro passado, o arrasamento total de aldeias e vilas que eram habitadas por rohingya e a edificação de novas construções em áreas de onde centenas de milhares de pessoas se viram forçadas a fugir da campanha de limpeza étnica levada a cabo pelos militares birmaneses em 2017. Novas estradas e estruturas estão a ser erguidas onde foram incendiadas terras e aldeias dos rohingya, tornando ainda menos provável o regresso dos refugiados às suas casas.

“Aquilo a que estamos a assistir no estado de Rakhine é à apropriação de terras pelo Exército a uma escala dramática. Estão a ser construídas novas bases para albergar as mesmas forças de segurança que cometeram crimes contra a humanidade sobre as comunidades rohingya”, denuncia a diretora do gabinete de Resposta a Crises da Amnistia Internacional, Tirana Hassan.

“Aquilo a que estamos a assistir no estado de Rakhine é à apropriação de terras pelo Exército a uma escala dramática.”

Tirana Hassan, diretora do gabinete de Resposta a Crises da Amnistia Internacional

A perita da organização de direitos humanos considera que esta conduta “faz com que o regresso voluntário, seguro e digno dos refugiados rohingya se torne numa probabilidade ainda mais distante”. “Não só as suas casas desapareceram, mas as novas construções estão a enraizar ainda mais profundamente a discriminação desumanizante já existente e com à qual os rohingya são confrontados em Myanmar”, avalia ainda.

Terraplanagem e destruição

As autoridades de Myanmar lançaram uma perversa campanha de limpeza étnica há pouco mais de seis meses, a 25 de agosto de 2017, em resposta a ataques perpetrados pelo grupo armado Exército de Salvação Rohingya de Arracão (ARSA).

Os militares birmaneses mataram mulheres, homens e crianças, violaram e cometeram outras formas de violência sexual contra mulheres e raparigas e incendiaram de forma sistemática centenas de aldeias e vilas, no que são claros crimes contra a humanidade. Mais de 670 000 pessoas fugiram para o vizinho Bangladesh.

Apesar de a violência no estado de Rakhine ter diminuído, a campanha para forçar os rohingya a partirem das suas terras – e para garantir que não regressam – prossegue, tendo assumido novas formas.

Na mais recente investigação feita pela Amnistia Internacional é apurado que aldeias inteiras, onde foram incendiadas as casas de rohingya, estão a ser terraplanadas desde janeiro de 2018. Até zonas arborizadas em volta das aldeias foram arrasadas, deixando vasta parte da paisagem irreconhecível. Tal acalenta receios graves de que as autoridades de Myanmar estão a destruir provas dos crimes cometidos contra os rohingya, o que pode prejudicar investigações futuras.

“A terraplanagem de aldeias inteiras é profundamente preocupante. As autoridades de Myanmar estão a apagar provas de crimes contra a humanidade, tornando extremamente difícil quaisquer tentativas futuras de responsabilização”, explica Tirana Hassan.

“As autoridades de Myanmar estão a apagar provas de crimes contra a humanidade, tornando extremamente difícil quaisquer tentativas futuras de responsabilização.”

Tirana Hassan, diretora do gabinete de Resposta a Crises da Amnistia Internacional

A Amnistia Internacional documenta também exemplos recentes de pilhagens, de incêndios deliberados e de demolições de casas e mesquitas rohingya abandonadas por todo o Norte do estado de Rakhine.

Novas infraestruturas para as forças de segurança

Ainda mais preocupante do que a destruição em curso é o que está a ser construído onde antes existiam as aldeias rohingya. As autoridades birmanesas lançaram uma operação para muito rapidamente expandirem as infraestruturas de segurança em todo o estado de Rakhine, incluindo bases para alojar unidades militares e da Polícia de Guarda de Fronteiras, assim como heliportos.

A velocidade com que estas construções estão a ser feitas é alarmante. Imagens de satélite mostram como, em apenas alguns meses, novas bases foram edificadas em terras rohingya que tinham sido incendiadas, com aldeias completas e até zonas de floresta próximas a serem arrasadas.

A análise pericial da Amnistia Internacional às imagens de satélite confirma que pelo menos três novas bases das forças de segurança birmanesas foram construídas no Norte do estado de Rakhine: duas no município de Maungdaw e uma no município de Buthidaung. A construção destas bases parece ter sido iniciada em janeiro passado.

A maior destas novas bases situa-se na aldeia de Ah Lel Chaung, município de Buthidaung, onde testemunhas oculares descreveram que os militares desalojaram à força pessoas da comunidade rohingya de algumas áreas para abrirem espaço às novas construções. Muitos dos aldeões sentiram não ter nenhuma outra opção se não a de fugirem para o Bangladesh.

“As pessoas estão em pânico. Ninguém quer ficar porque têm medo de mais violência”, avançou um homem de 31 anos que fugiu para o Bangladesh, em janeiro passado, quando os militares ergueram uma nova vedação e um novo posto de segurança perto da aldeia onde vivia.

“As pessoas estão em pânico. Ninguém quer ficar porque têm medo de mais violência.”

Refugiado rohingya no Bangladesh

Na aldeia antes multiétnica de Inn Din – onde a Amnistia Internacional documentou que as forças de segurança e grupos aliados mataram aldeões rohingya e deitaram fogo às suas casas, nos finais de agosto e inícios de setembro passado. Imagens de satélite mostram o que aparenta ser uma nova base das forças de segurança a ser construída onde se localizava parte de uma aldeia rohingya.

Alojamento e centros de receção de refugiados

As imagens de satélite analisadas pela equipa de perícia da Amnistia Internacional mostram também a existência de novos centros de receção de refugiados – destinados a “acolher” rohingya que regressem do Bangladesh – que estão cercados por vedações de segurança e próximos de áreas com forte presença militar e de guarda fronteiriça.

Um enorme novo centro de trânsito, para alojar temporariamente rohingya regressados a Myanmar, foi erigido onde antes era uma aldeia rohingya, incendiada pelos militares, no município de Maungdaw. Também aqui são detetados sinais de um reforçado aparato de segurança.

Existem sinais que inspiram sérias preocupações de que as autoridades birmanesas planeiam alojar os rohingya em centros por períodos prolongados e restringir a sua liberdade de deslocação. Dezenas de milhares de rohingya, os quais foram forçados a abandonar as suas casas durante vagas de violência ocorridas em 2012, têm sido mantidos confinados há anos em prisões a céu aberto em miseráveis campos de deslocados internos. A maior parte destas pessoas depende de ajuda humanitária para as necessidades mais essenciais.

Testemunhas oculares ouvidas pela equipa de investigação da Amnistia Internacional descreveram ainda que a população não rohingya está, desde há alguns meses, a viver em novas aldeias construídas onde ficavam casas de rohingya que foram incendiadas, assim como nas suas terras de cultivo. Já no passado, as autoridades de Myanmar reinstalaram membros de outros grupos étnicos no estado de Rakhine como parte integrante dos esforços para desenvolver a região.

“O estado de Rakhine é um dos mais pobres de Myanmar e o investimento em desenvolvimento é extremamente necessário. Mas tais esforços têm de beneficiar todas as pessoas no estado, independentemente da sua etnia, e não enraizar ainda mais o existente sistema de apartheid contra o povo rohingya”, sustenta Tirana Hassan.

A diretora do gabinete de Resposta a Crises da Amnistia Internacional frisa que “a transformação do estado de Rakhine está a ser feita sob um manto de sigilo”. “Não pode ser permitido às autoridades continuarem a campanha de limpeza étnica que estão a fazer em nome do ‘desenvolvimento’”, insta ainda.

“Não pode ser permitido às autoridades continuarem a campanha de limpeza étnica que estão a fazer em nome do ‘desenvolvimento’.”

Tirana Hassan, diretora do gabinete de Resposta a Crises da Amnistia Internacional

“A comunidade internacional, em especial todo e cada um dos Estados doadores, tem o dever de garantir que qualquer investimento ou assistência que presta não contribui para violações de direitos humanos. Contribuir para reforçar um sistema que discrimina sistematicamente os rohingya e que torna o regresso de refugiados ainda menos provável pode constituir assistência a crimes contra a humanidade”, remata Tirana Hassan.

  • 80 milhões

    80 milhões

    Em 2020, existiam mais de 80 milhões de pessoas que foram forçadas a sair do seu local de origem devido a perseguição, violência, conflito armado ou outras violações de direitos humanos.
  • 26 milhões

    26 milhões

    No final de 2020 estimava-se a existência de 26 milhões de refugiados no mundo.
  • 45 milhões

    45 milhões

    Mais de 45 milhões de pessoas foram forçadas a deixar as suas casas permanecendo dentro do seu próprio país (deslocados internos).
  • 4 milhões

    4 milhões

    Estima-se que existam mais de 4 milhões de pessoas em todo o mundo consideradas "apátridas" – nenhum país as reconhece como nacional.

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