21 Novembro 2017

O povo rohingya em Mynamar (Birmânia) está encurralado num sistema perverso de discriminação institucional e sancionada pelo Estado que constitui apartheid, considera a Amnistia Internacional ao publicar uma nova e abrangente análise às causas de raiz da atual crise no estado birmanês de Rakhine.

  • os rohingya são segregados e alvo de abusos em “prisões a céu aberto”
  • investigação feita ao longo de dois anos revela as causas da atual crise no estado de Rakhine
  • sistema de discriminação configura o crime contra a humanidade de apartheid

Caged without a roof: Apartheid in Myanmar’s Rakhine state (Enjaulados sem teto: o apartheid no estado birmanês de Rakhine) contextualiza a vaga recente de violência em Myanmar, em que as forças de segurança birmanesas mataram rohingya, destruíram pelo fogo aldeias e vilas inteiras e forçaram mais de 600 mil pessoas a fugir e a atravessarem a fronteira para o vizinho Bangladesh.

A investigação feita pela organização de direitos humanos ao longo de dois anos revela que as autoridades birmanesas restringem virtualmente todos os aspetos da vida dos rohingya no estado de Rakhine. A população rohingya está confinada ao que equivale a uma existência em ghetto, onde se debate para aceder a cuidados de saúde, a educação e, em algumas zonas, até se veem impedidos de deixar as suas aldeias. A situação atual preenche todas as caraterísticas da definição legal de apartheid, configurado como um crime contra a humanidade.

“As autoridades birmanesas estão a manter mulheres, homens e crianças rohingya segregados e intimidados num sistema desumanizante de apartheid. Os seus direitos são violados todos os dias e a repressão apenas se intensificou nos anos recentes”, frisa a diretora de Investigação da Amnistia Internacional, Anna Neistat. “Este sistema parece ter sido criado para tornar as vidas dos rohingya tão humilhantes e sem esperança quanto possível. A campanha brutal de limpeza étnica levada a cabo pelas forças de segurança nos últimos três meses é apenas mais uma manifestação extrema desta atitude chocante”, prossegue a perita da organização de direitos humanos.

“As autoridades birmanesas estão a manter mulheres, homens e crianças rohingya segregados e intimidados num sistema desumanizante de apartheid. Os seus direitos são violados todos os dias e a repressão apenas se intensificou nos anos recentes.”

Anna Neistat, diretora de Investigação da Amnistia Internacional

Anna Neistat sublinha também que “apesar de estas violações de direitos poderem não ser tão visíveis quanto aquelas que fizeram os títulos das notícias nos meses recentes, são igualmente horríveis”. “As causas de raiz da atual crise têm de ser abordadas e resolvidas para pôr fim ao ciclo de abusos e tornar possível aos refugiados rohingya regressarem a uma situação em que os seus direitos e dignidade são respeitados”, insta.

Estado de Rakhine é uma prisão a céu aberto

Os rohingya são confrontados com discriminação sistemática e sancionada pelo Governo de Myanmar há décadas e a investigação da Amnistia Internacional revela que essa repressão se intensificou drasticamente desde 2012, quando uma vaga de violência entre as comunidades budista e muçulmana varreu o estado.

Em Rakhine os rohingya estão essencialmente vedados do contacto com o mundo exterior e enfrentam limitações severas à sua liberdade de deslocação que os confina às aldeias e vilas onde residem. Estas restrições são aplicadas atrás de uma intrincada rede de leis nacionais, “ordens locais” e políticas postas em prática por responsáveis do Estado que manifestam abertamente o seu comportamento racista.

Por exemplo, um regulamento em vigor no estado de Rakhine determina expressamente que “estrangeiros” e “raças bengali [termo usado pejorativamente para os rohingya]” têm de ter uma autorização especial para se deslocarem de uma cidade para outra. No Norte do estado de Rakhine, onde a maioria da população rohingya vivia antes do mais recente êxodo, até as deslocações de uma vila para outra são rigidamente limitadas por um sistema de autorizações. E os recolher obrigatórios arbitrários têm vindo a ser impostos duramente e de forma contínua em áreas de população predominantemente rohingya, ao longo de pelo menos os últimos cinco anos.

Na região centro do estado de Rakhine, os rohingya são mantidos fechados a sete chaves nas suas aldeias e campos de deslocados internos. Em algumas zonas não lhes é sequer autorizado o uso das estradas e apenas podem deslocar-se pelas vias de água, e tão só tendo outras aldeias muçulmanas como destino.

Os rohingya que conseguem obter autorização para viajar dentro da região Norte do estado de Rakhine enfrentam ameaças constantes nos postos de controlo, frequentes ao longo do caminho, e, na maior parte, sob supervisão da Polícia de Guarda de Fronteira – ali são regularmente intimidados, forçados a pagar subornos, atacados fisicamente ou detidos.

Um homem rohingya descreveu um incidente que testemunhou em que o autocarro no qual viajava foi mandado parar pela polícia: “Eram quatro polícias no total. Dois bateram nos homens com uma vara, nas costas, ombros e coxas. Um outro esbofeteou uma mulher umas quatro ou cinco vezes. […] Depois, levaram todos para a esquadra da polícia”.

“Eram quatro polícias no total. Dois bateram nos homens com uma vara, nas costas, ombros e coxas. Um outro esbofeteou uma mulher umas quatro ou cinco vezes. […] Depois, levaram todos para a esquadra da polícia.”

Homem rohingya

Na investigação para este relatório, a Amnistia Internacional assistiu a um incidente em que um guarda fronteiriço pontapeou um homem rohingya num posto de controlo. A organização de direitos humanos documentou ainda pelo menos um caso de execução extrajudicial em que agentes da Polícia de Guarda de Fronteira mataram a tiro um homem de 23 anos que viajava durante o período de recolher obrigatório.

Durante a violência em 2012, dezenas de milhares de rohingya foram forçados a partir de zonas urbanas de Rakhine, em particular da capital do estado, Sittwe. Atualmente, cerca de quatro mil pessoas rohingya permanecem na cidade onde habitam uma zona de ghetto, totalmente selada com barricadas de arame farpado e postos de controlo policiais. Estas pessoas estão em risco de serem detidas ou alvo de violência por parte da comunidade em volta, caso tentem sair da zona vedada.

Uma vida com a sobrevivência em risco permanente

As restrições à livre deslocação dos rohingya estão a ter um impacto devastador nas vidas quotidianas de centenas de milhares de pessoas, que foram empurradas para uma vida com a sobrevivência sempre em perigo.

A qualidade dos hospitais e das clínicas por todo o estado de Rakhine é generalizadamente pobre para todas as comunidades, mas os rohingya enfrentam barreiras no acesso aos cuidados de saúde ainda mais graves e, frequentemente, que põem as suas vidas em risco.

Não é permitido aos rohingya serem assistidos no hospital de Sittwe, a unidade médica de melhor qualidade de serviços em todo o estado de Rakhine, a não ser em casos extremamente graves. E mesmo nessas circunstâncias é precisa uma autorização especial emitida pelas autoridades do estado e a viagem até ao hospital tem de ser feita sob escolta policial. No Norte de Rakhine, muitas pessoas sentem não ter outra escolha que não a de viajarem até ao vizinho Bangladesh para obterem os cuidados médicos de que precisam – mas esta deslocação pode ser proibitivamente cara para os rohingya, com exceção das famílias mais abonadas.

Um homem na casa dos 50 anos explicou aos investigadores da Amnistia Internacional: “Eu queria ir ao hospital de Sittwe para receber tratamento, mas é proibido; os funcionários hospitalares disseram-me que não podia ir lá, por minha própria segurança, e que eu tinha de ir ao Bangladesh para ser tratado. Mas isso custa muito dinheiro. O meu irmão tem muitos arrozais e bois e teve de vender alguns para pagar a viagem. Tive sorte… a maior parte das pessoas não tem como pagar isto e, por isso, acaba por morrer”.

Fora do Norte do estado de Rakhine, apenas algumas instalações médicas são acessíveis aos rohingya. E mesmo nessas são mantidos separados em “enfermarias muçulmanas”, sob guarda da polícia. Um trabalhador de uma organização de ajuda humanitária comparou uma destas enfermarias a um “hospital-prisão”.

Muitos rohingya denunciaram ter tido de pagar subornos a funcionários hospitalares e a polícias quando queriam contactar familiares ou comprar comida do exterior. Outros simplesmente evitavam os hospitais – com medo de sofrerem abusos por médicos e enfermeiros, ou convencidos de que não lhes seriam prestados quaisquer cuidados clínicos.

“Recusar aos rohingya acesso a cuidados de saúde é abjeto. Falámos com mulheres que testemunharam que preferiam ter os partos em casa, em condições insalubres, do que arriscarem abusos e extorsão nos hospitais”, avança a diretora de Investigação da Amnistia Internacional.

“Falámos com mulheres que testemunharam que preferiam ter os partos em casa, em condições insalubres, do que arriscarem abusos e extorsão nos hospitais.”

Anna Neistat, diretora de Investigação da Amnistia Internacional

Desde 2012, as autoridades birmanesas têm reforçado as restrições no acesso dos rohingya à educação. Em vastas partes do estado de Rakhine não é permitido que as crianças rohingya frequentem escolas estatais que antes eram diversas na sua população estudantil e os professores contratados pelo Estado recusam-se frequentemente a viajar até às zonas muçulmanas.

Com o acesso ao ensino superior largamente fora de alcance para os rohingya, muitas das testemunhas entrevistadas pela Amnistia Internacional expressaram um sentimento de desespero e de desesperança sobre o futuro.

Limitações cada vez mais restritivas às deslocações afetam também a capacidade de muitos rohingya de terem meios de sustento ou até mesmo de conseguirem obter comida suficiente para as suas famílias. Os vendedores de produtos agrícolas não têm autorização de entrar nos mercados nem nas rotas de comércio e os agricultores são frequentemente impedidos de trabalhar nos seus próprios campos de cultivo. A subnutrição e a pobreza tornaram-se comuns entre os rohingya nas áreas afetadas, uma situação que as autoridades agravaram com limitações rígidas no acesso da ajuda humanitária a estas populações.

“É um desafio enorme agora porque não temos o suficiente para comer. Estaríamos melhor na prisão, pois aí pelo menos teríamos comida regularmente. De qualquer forma já é como se vivêssemos numa prisão”, desabafou um rohingya de 25 anos.

“Estaríamos melhor na prisão, pois aí pelo menos teríamos comida regularmente. De qualquer forma já é como se vivêssemos numa prisão.”

Rohingya de 25 anos

A proibição de ajuntamentos de mais do que quatro pessoas, que se aplica especificamente nas áreas de população maioritariamente muçulmana, também se traduz em que os rohingya – cuja esmagadora maioria é muçulmana – ficam efetivamente banidos de se juntarem para orações. Além disto, as autoridades birmanesas fecharam mesquitas, deixando os locais de devoção muçulmanos deteriorarem-se.

Recusa de cidadania

A alicerçar a discriminação contra os rohingya está a falta de direitos legais desta população em Myanmar. E no cerne disto estão leis e práticas discriminatórias, em particular a Lei da Cidadania de 1982, que efetivamente nega o estatuto de cidadão aos rohingya com base na sua etnia.

A investigação feita pela Amnistia Internacional para este relatório revela ainda que as autoridades birmanesas adotaram uma campanha deliberada para retirar aos rohingya até as limitadas formas de identificação que possuem. Desde 2016, o Governo de Myanmar tornou extremamente difícil o processo dos rohingya registarem recém-nascidos nas chamadas “listas de membros da família” – frequentemente a única prova de residência no país que as famílias rohingya têm. Simultaneamente, no Norte do estado de Rakhine, quem não se encontra na sua casa durante os “controlos populacionais” anuais arrisca-se a ser totalmente apagado dos registos oficiais.

Uma das consequências desta campanha é ter tornado virtualmente impossível para os rohingya que fugiram do país regressarem às suas casas. Tal situação é particularmente preocupante desde as operações militares em 2016 e também em 2017 que forçaram perto de 700 mil rohingya a fugir para o vizinho Bangladesh, onde vivem em campos de refugiados em condições desesperantes.

“É urgentemente necessário repor os direitos e o estatuto legal dos rohingya e alterar a lei discriminatória de cidadania – tanto para quem permanece no país como para quem deseja regressar. Não pode ser pedido aos rohingya que fugiram da perseguição em Mynamar que voltem para viver sob um regime de apartheid”, sublinha Anna Neistat.

“Não pode ser pedido aos rohingya que fugiram da perseguição em Mynamar que voltem para viver sob um regime de apartheid.”

Anna Neistat, diretora de Investigação da Amnistia Internacional

Desmontar o sistema de apartheid

Através de detalhada análise deste extenso corpo de provas, a Amnistia Internacional concluiu que o tratamento dado pelas autoridades de Myanmar aos rohingya constitui apartheid, definido como um crime contra a humanidade na Convenção Internacional contra o Apartheid e no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.

Myanmar está legalmente vinculado a desmantelar o sistema de apartheid existente no estado de Rakhine, e tem também de garantir a responsabilização de quem cometeu atos que configuram crimes contra a humanidade.

“O estado de Rakhine é uma cena do crime. E já o era bem antes da perversa campanha de violência militar dos últimos três meses. Este sistema abjeto de discriminação e de segregação atravessa todas as dimensões das vidas dos rohingya e, se não forem dados passos imediatamente para o desmontar, continuará a funcionar muito depois de a campanha militar acabar”, critica a diretora de Investigação da amnistia Internacional.

Anna Neistat frisa que “as autoridades birmanesas não podem manter argumentos vãos sobre a necessidade de ‘segurança’ e de combate ao ‘terrorismo’ para continuarem a impor mais restrições aos rohingya”. “A repressão é ilegal e absolutamente desproporcionada. Os crimes contra a humanidade não podem jamais ser justificados – seja como ‘medidas de segurança” ou com qualquer outro argumento”, acrescenta.

“A comunidade internacional tem de acordar para este pesadelo diário e enfrentar a realidade do que está a acontecer há anos no estado de Rakhine. O desenvolvimento é uma parte importante da solução, mas não pode ser feito de forma que enraíze ainda mais profundamente a discriminação. A comunidade internacional e, em especial os doadores, têm de assegurar-se que o seu contributo e envolvimento não os torna cúmplices destas violações de direitos humanos”, remata Anna Neistat.

“A comunidade internacional tem de acordar para este pesadelo diário e enfrentar a realidade do que está a acontecer há anos no estado de Rakhine.”

Anna Neistat, diretora de Investigação da Amnistia Internacional

O que é o apartheid?

Conforme expresso na Convenção Internacional para a Supressão e Punição do Crime de Apartheid e no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, o apartheid é definido como um crime contra a humanidade em que se engloba uma série de atos cometidos no contexto de um regime institucionalizado de opressão ou de domínio sistemáticos por um grupo racial sobre qualquer outro grupo ou grupos raciais e com a intenção de manter esse mesmo regime.

Atos concretos cometidos neste contexto e criminalizados como apartheid vão desde condutas abertamente violentas como o homicídio, violação e tortura até às dimensões legislativa, administrativa e outras medidas calculadas para impedir um grupo racial ou grupos raciais de participarem na vida política, económica e cultural do país, e para lhes negar direitos humanos essenciais e liberdades fundamentais.

Um claro exemplo de como os responsáveis governamentais no estado de Rakhine combinam atos de violência e legislativos é a panóplia de restrições à liberdade de deslocação dos rohingya, que constitui um crime de “grave privação da liberdade física”, tal como é definido no Estatuto de Roma.

  • 842 milhões

    A subnutrição atinge 842 milhões de pessoas.
  • 889 milhões

    Estima-se que 889 milhões de pessoas vivam em bairros de lata até 2020.
  • 61 milhões

    61 milhões de crianças (principalmente meninas) não têm acesso à educação.
  • 8,1 milhões

    8,1 milhões de crianças morreram antes dos cinco anos de idade, na maioria devido a causas que se podiam prevenir e de doenças curáveis.

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