28 Maio 2021

As autoridades de facto huthis no Iémen não devem usar prisioneiros arbitrariamente detidos como peões nas negociações políticas em curso, sublinha novo relatório da Amnistia Internacional.

O relatório, Libertados e Exilados: Tortura, julgamentos injustos e exílio forçado de iemenitas sob domínio huthi (em inglês Released and Exiled: Torture, unfair trials and forcible exile of Yemenis under Huthi rule), é uma investigação aprofundada sobre as experiências de uma minoria de não-combatentes, entre os quais jornalistas, opositores políticos e membros da minoria Baha’i, que foram libertados como parte de acordos políticos em 2020, depois de arbitrariamente detidos e torturados durante cerca de sete anos. Após a sua libertação, os Baha’is foram forçados ao exílio, com as Nações Unidas (ONU) a auxiliarem a sua partida, enquanto outros oito detidos foram banidos para outras partes do país.

“Este relatório salienta a utilização dos prisioneiros como peões políticos, com exílio e deslocação forçada a resultarem de acordos negociados pelas autoridades de facto huthis. Após detenção arbitrária e anos de abusos, nem a libertação trouxe alívio aos detidos mencionados neste relatório, já que nenhum deles pôde regressar a casa e reunir-se com as suas famílias, após anos separados à força”, disse Heba Morayef, diretora regional para o Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional.

“Ninguém deveria ser forçado a escolher entre permanecer em detenção ou abandonar o seu lar ou o seu país. Acordos negociados de libertação de prisioneiros não devem, sob nenhumas circunstâncias, permitir explícita ou implicitamente que prisioneiros libertados sejam exilados ou deslocados à força das suas casas.”

“Nem a libertação trouxe alívio aos detidos mencionados neste relatório, já que nenhum deles pôde regressar a casa e reunir-se com as suas famílias, após anos separados à força”

Heba Morayef, diretora regional para o Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional

Em outubro de 2020, responsáveis huthis libertaram 1056 prisioneiros como parte de um acordo político negociado, copatrocinado pela ONU e pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Embora a vasta maioria fossem combatentes, cerca de duas dezenas não o eram. Antes disso, em julho de 2020, responsáveis huthis libertaram seis membros da minoria religiosa Baha’i. A Amnistia Internacional falou com 12 desse pequeno grupo que, em primeiro lugar, nunca deveriam ter sido detidos: sete jornalistas, um funcionário do governo, e quatro baha’is.

Dez estiveram detidos durante períodos entre dois e três anos antes de serem informados das acusações apresentadas contra si. Em nove casos, um tribunal tinha ordenado a libertação dos detidos em março e abril de 2020. No entanto, as autoridades huthis continuaram a detê-los arbitrariamente durante os meses seguintes, libertando-os mais tarde, como parte de acordos políticos.

 

Exílio e deslocação forçados

A 30 de julho de 2020, seis detidos baha’is foram libertados após até sete anos de prisão arbitrária. Em vez de lhes ser permitido o regresso a casa, as autoridades huthis forçaram-nos a deixar o Iémen, transferindo-os diretamente para o aeroporto de Sanaa. Embarcaram num voo da ONU para Adis Abeba, na Etiópia, sugerindo que as Nações Unidas estavam cientes do seu exílio forçado. Os baha’is expulsos permanecem banidos do Iémen até hoje.

“Eu implorei-lhes [às autoridades] para me permitirem ver o meu pai, mas não autorizaram. Ele tem 80 anos de idade e não vou conseguir vê-lo outra vez. Essa foi a coisa mais dura na minha vida, deixar o meu pai para trás”

membro da comunidade Baha'i

Pelo menos oito detidos, libertados em outubro de 2020, relataram à Amnistia Internacional que as autoridades huthis os tinham transferido diretamente do seu lugar de detenção para o aeroporto e ordenado que embarcassem em voos para Aden e Sey’oun, zonas sob o controlo do governo iemenita internacionalmente reconhecido. Um dos jornalistas, arbitrariamente detido durante mais de cinco meses após um tribunal ter ordenado a sua libertação, disse à Amnistia Internacional:

“Nós queríamos ficar em Sanaa, mas os huthis recusaram libertar-nos incondicionalmente, embora o tribunal tenha decidido a nosso favor. Não tivemos outra opção senão aceitar o acordo e deixar o norte [área sob o controlo dos huthis]… A minha casa e família estão em Sanaa. A minha vida é em Sanaa.”

Face ao risco de prisão indefinida e tortura, a Amnistia Internacional não considera como voluntário o seu “acordo” – durante a detenção arbitrária – em deixar o seu lugar de origem.

O exílio devido a crenças religiosas ou oposição política constitui uma violação flagrante do direito internacional dos direitos humanos. O exílio de detidos baha’is viola a proibição de deslocações forçadas expressa no direito internacional humanitário e pode equivaler a um crime de guerra.

“As autoridades huthis devem pôr fim ao exílio forçado – que é uma violação do direito internacional e uma adição condenável à longa lista de outras violações pelas quais as autoridades huthis são responsáveis. Estas devem permitir o regresso dos indivíduos exilados aos seus lares”, disse Heba Morayef.

 

Tortura e condições de detenção desumanas

Todos os 12 ex-detidos entrevistados pela Amnistia Internacional foram torturados ou sujeitos a outras formas de maus-tratos durante o seu interrogatório e detenção. Descreveram como as forças huthis lhes bateram com barras de aço, cabos elétricos, armas e outros objetos, os colocaram em posições de tensão e regaram com água, ameaçaram repetidamente matá-los ou detê-los em confinamento solitário por períodos que variavam entre 20 dias e vários meses. Muitos dos detidos continuaram a sofrer devido a lesões físicas e problemas de saúde crónicos em resultado deste abuso e da falta de cuidados de saúde recebidos durante o seu tempo em detenção.

Um jornalista descreveu como desmaiou duas vezes por medo e stress depois de ter sido ameaçado pelos seus interrogadores:

“O interrogador e outros na sala ameaçaram dar-me um tiro. Ameaçaram matar os meus pais. Eles queriam que eu nomeasse outros jornalistas e estudantes que cobriram notícias anti-Huthi… Eles ameaçaram remover as minhas unhas, uma por uma, e dar-me choques elétricos entre as pernas.”

Outro jornalista detido referiu ter sido sujeito a uma aterrorizante execução simulada durante a sua detenção numa delegação de contraterrorismo em Hodeida. Ele foi chamado à noite por guardas que o algemaram, vendaram e lhe mostraram um buraco no chão, dizendo ser a sua sepultura.

“Primeiro, ouvi o som de um tiro atrás de mim. Imaginei ser atingido por uma bala. Eles pontapearam-me e empurraram-me para o buraco. Eu caí sobre o meu rosto. O meu nariz começou a sangrar e eu podia sentir o sangue. Comecei a chorar e a pensar nas minhas crianças, porque tinha a certeza de que me iam enterrar vivo. Estava a implorar-lhes que primeiro me matassem. O mesmo homem dizia ‘vamos enterrar-te aqui e a tua família nunca saberá onde estás’”, mencionou.

“Este relatório traça um quadro aterrador de abusos suportado por estes antigos detidos”

Heba Morayef

Os detidos também disseram que foram repetidamente torturados, apenas por pedirem comida ou água.

“Este relatório traça um quadro aterrador de abusos suportado por estes antigos detidos, nomeadamente desaparecimento forçado, detenção em condições desumanas, tortura, negação de cuidados médicos, e julgamentos completamente injustos com base em falsas acusações”, disse Heba Morayef.

“Além de colocarem um fim imediato a estes abusos, as autoridades huthis devem ordenar a libertação imediata e incondicional de qualquer pessoa detida unicamente por exercer pacificamente os seus direitos – sem exílio ou expatriação”, acrescenta.

 

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