2 Julho 2015

Nova investigação e análises feitas pela Amnistia Internacional ao armamento usado nos ataques recentes no Iémen realçam o elevado preço que os civis continuam a pagar devido aos raides aéreos levados a cabo pela coligação liderada pela Arábia Saudita contra diversas zonas daquele país, assim como a falha total destas forças militares em cumprirem os requisitos impostos pela lei internacional humanitária.

Peritos da Amnistia Internacional examinaram oito ataques aéreos sobre diferentes zonas do Iémen, incluindo múltiplos raides na capital, Sanaa, a 12 e 13 de junho, e contra Taiz, terceira maior cidade do país, a 16 de junho. No total, estes oito incidentes causaram a morte a 54 civis (27 crianças, incluindo um bebé com um dia, 16 mulheres e 11 homens) e ainda 55 feridos (19 crianças, 19 mulheres e 17 homens).

“A lei internacional humanitária é clara em que forças beligerantes têm de tomar todas as medidas possíveis para evitar ou limitar o número de vítimas civis. Mas os casos que analisámos apontam para um padrão de ataques que destruíram casas civis e resultaram em muitas mortes e ferimentos de civis. Não há aliás nenhum indicador de que a coligação militar liderada pela Arábia Saudita tenha feito algo para impedir e corrigir estas violações”, precisa a investigadora da Amnistia Internacional perita em situações de crise Donatella Rovera, a qual se encontra atualmente no Iémen.

“Estes oito casos analisados pela Amnistia Internacional têm de ser investigados de forma independente e imparcial como ataques provavelmente desproporcionados e indiscriminados. As conclusões de tal investigação têm de ser reveladas publicamente, e os suspeitos responsáveis por graves violações das leis da guerra têm de ser levados a tribunal em julgamentos justos. Todas as vítimas de ataques ilegais e as suas famílias devem receber reparação integral”, avança a perita da organização de direitos humanos.

Casas reduzidas a pó

Um raide triplo feito pela coligação a 13 de junho sobre o subúrbio residencial de Beit Meyad, nos arredores de Sanaa, causou a morte a dez civis – em que se incluem três crianças e cinco mulheres – e provocou ainda 28 feridos, incluindo 11 crianças e dez mulheres. Todos residiam perto dos alvos pretendidos nos ataques aéreos.

Num desses raides uma bomba de 900 quilos matou um rapaz de 11 anos, duas das suas irmãs, o irmão, o primo de dez anos, e deixou outros membros da família Al-Amiri feridos. Esta bomba, cuja identificação foi feita pela Amnistia Internacional com base nas marcas nos fragmentos encontrados no local pelos investigadores, reduziu a pó e escombros a casa de Yahya Mohamed Abdullah Saleh, sobrinho do antigo chefe de Estado Ali Abdullah Saleh, o qual vive fora do Iémen há vários anos. A explosão causou extensos danos nas casas próximas.

A maior parte dos moradores nessa vizinhança tinham fugido das suas casas minutos antes do ataque aéreo – o terceiro naquele mesmo bairro a ocorrer em menos de dez minutos –, mas a família Al-Amiri não conseguiu escapar a tempo. “Não fomos suficientemente rápidos”, lamentou Mohamed al-Amiri, que perdeu quatro dos seus filhos neste raide.

Um outro ataque feito minutos antes a algumas ruas de distância destruíra a casa da família Al-Akwa, tendo ali morrido Fatma, de 40 anos, os seus dois filhos, Malek e Reem, e outros dois familiares. Mais 18 membros da mesma família e cinco vizinhos ficaram feridos.

A Amnistia Internacional ouviu o testemunho de uma rapariga de 12 anos, que sofreu queimaduras de terceiro grau e ferimentos de estilhaços em todo o corpo, assim como um corte profundo na cara. Contorcendo-se em dores, na cama do hospital, contou aos investigadores: “Estávamos todos num dos quartos, a minha mãe, eu e os meus irmãos, e deu-se a explosão e ficámos todos feridos. Agora, a minha mãe, o meu irmãozinho e a minha irmã estão noutro hospital”.

Funcionários do hospital onde esta rapariga está internada explicaram depois aos investigadores da Amnistia Internacional que na verdade a família dela tinha morrido toda no ataque aéreo. Disseram que lho iriam contar muito em breve.

Aquele ataque falhou o que se crê era o alvo: Tareq Mohamed Abdullah Saleh, outro sobrinho do antigo Presidente do Iémen, que é proprietário mas não reside numa casa próxima, e a qual acabou por ser bombardeada mais tarde nessa mesma noite.

A 12 de junho, cinco membros da família Abdelqader foram mortos num outro bombardeamento que destruiu quatro casas na Cidade Velha de Sanaa. Este raide poderia ter provocado muitas mais vítimas se a grande maioria dos residentes no bairro não tivessem entretanto fugido da zona, depois de ter ocorrido um violento ataque aéreo sobre o complexo do Ministério da Defesa dois dias antes.

Fragmentos identificam bombas da coligação

O porta-voz da coligação, brigadeiro-general Ahmed al-Assiri, negou responsabilidades naquele ataque, mas um fragmento da bomba recuperado dos escombros das casas é proveniente de uma bomba de 900 quilos do mesmo tipo das que têm sido amplamente usadas pelas forças lideradas pela Arábia Saudita em várias áreas do Iémen.

Num ataque anterior que foi também investigado pela Amnistia Internacional, uma bomba do mesmo tipo e lançada pela coligação militar destruiu três casas na aldeia de Al-Akma, a 14 de abril. Esse raide causou a morte de dez membros da família Al-Hujairi, incluindo sete crianças, uma mulher e um idoso, tendo ainda provocado ferimentos em outras 14 pessoas, na maioria crianças e mulheres.

Mohamed al-Haddadi, um vizinho dos Al-Hujairi que ajudou no salvamento dos feridos e resgate dos corpos dos mortos dos escombros, contou à Amnistia Internacional: “Apanhámos bocados de corpos. Os corpos estavam todos desfeitos”.

A bomba usada neste raide, identificada como uma Mark84 (MK84, também designada como BLU-117, de conceção norte-americana) a partir dos fragmentos encontrados pelos investigadores da Amnistia Internacional, foi fabricada em 1983 e continha mais de 400 quilos de explosivos. As investigações no local demonstram que a bomba não detonou no momento do impacto, o que limitou o que poderia ter sido uma muito maior destruição e ainda mais vítimas civis.

O mesmo tipo de bomba foi usado num ataque a 1 de maio numa região a nordeste da capital iemenita, em que morreram 17 civis e outros 17 foram feridos. Bombas similares, entre os 220 e os 450 quilos, foram usadas em outros dois raides aéreos – contra as aldeias de Hajr Ukaish e de Al-Erra, nos subúrbios de Sanaa –, de acordo com a peritagem feita aos fragmentos e às crateras nos locais das explosões.

Testemunhas oculares destes e de outros ataques aéreos no Iémen fornecem ainda mais provas contundentes de que as forças da coligação não estão a tomar as precauções necessárias para limitar o número das mortes e ferimentos de civis quando tomam por alvo instalações militares localizadas em áreas controladas por rebeldes huthi (movimento de insurreição xiita) e por fações leais ao antigo Presidente Ali Abdullah Saleh.

Com efeito, alguns dos alvos aparentes, como casas que pertencem a familiares do ex-chefe de Estado, não parecem ser alvos militares ou, pelo menos, não se perfilam como tendo importância suficiente para justificar os riscos que tais ataques colocam para os civis e bens e propriedades civis que se encontrem nas proximidades.

Ataques desprezam os pesados riscos para os civis

Os locais onde ocorreram a maior parte destes ataques aéreos têm algo em comum: estão próximos – a umas centenas de metros até alguns quilómetros de distância – de bases militares ou outros alvos de características militares sob controlo dos huthi e da fação leal a Saleh, os quais têm sido frequentemente visados pelos raides da coligação.

Habitantes de Al-Akma, por exemplo, contaram à Amnistia Internacional que uma base aérea e um aeroporto controlados pelos huthi/Saleh, localizados a cerca de 1,5km da aldeia, foram alvo de múltiplos ataques aéreos pouco antes e pouco depois do raide que atingiu a povoação em que residem, a 14 de abril. A bomba que explodiu na aldeia destruiu por completo a casa da família Al-Hujairi e deixou danificadas outras duas casas adjacentes – habitações pobres, construídas com chapas de zinco e cartão. Vizinho das vítimas, Wadhha contou à Amnistia Internacional: “Ouvi a explosão. Pensei que a casa me ia cair em cima da cabeça”.

No caso da aldeia de Hajr Ukaish, a mais de três quilómetros para norte da base militar Jabal Nabi Shuaib, controlada pelos huthi/Saleh, as forças da coligação liderada pela Arábia Saudita sustentaram que três casas que foram totalmente transformadas em escombros num raide aéreo eram usadas para armazenar armamento. Morreram 11 pessoas e outras seis ficaram feridas neste ataque – todas da família Al-Ukaishi.

Os familiares que sobreviveram ao raide negam as acusações da coligação militar e dizem ser agricultores. Um investigador da Amnistia Internacional que visitou o local não encontrou quaisquer indícios que validem as alegações de que eram ali armazenadas armas. E as forças da coligação também não apresentaram até agora nenhumas provas para fundamentar essas acusações.

“Mesmo que o alvo pretendido fosse de facto um armazém de armas, isso não justifica um ataque tão mortífero contra casas cheias de civis sem nenhum aviso prévio. Quem planeou o raide tinha de saber que dali resultaria um número elevado de vítimas civis e não tomou as medidas necessárias exigidas pela lei internacional humanitária”, remata Donatella Rovera.

Desde o início da intervenção da coligação militar liderada pela Arábia Saudita, a 25 de março de 2015, a Amnistia Internacional investigou os casos de 17 ataques aéreos em cinco zonas diferentes do Iémen: Sanaa, a capital, e também Sada, Taiz, Hodeidah, Hajjah e Ibb. No total, estes raides causaram a morte a 223 pessoas, incluindo pelo menos 197 civis (entre eles, 32 mulheres e 68 crianças), e ainda 419 feridos, em que se incluem pelo menos 259 civis.

Segundo dados recentes das Nações Unidas, houve já mais de 1.400 mortes de civis e mais de 3.400 feridos civis nos três meses de conflito armado no Iémen.

 

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