15 Fevereiro 2012

As Milícias armadas a operar na Líbia estão a cometer violações dos direitos humanos com impunidade, alimentando a insegurança e dificultando a reconstrução das instituições públicas, alerta a Amnistia Internacional num relatório divulgado hoje, um ano depois do início da revolta de fevereiro de 2011.

O relatório, Militias threaten hopes for new Libya, documenta graves e disseminados abusos, que incluem crimes de guerra, levados a cabo por várias milícias contra suspeitos leais a Kadhafi, havendo casos de pessoas que estão a ser detidas e torturadas ilegalmente – por vezes até à morte.

Migrantes africanos e refugiados foram igualmente alvo destes abusos, e ataques de retaliação fizeram com que fossem deslocadas à força comunidades inteiras – enquanto as autoridades nada fizeram para investigar os abusos e apurar as responsabilidades.

“As milícias na Líbia estão fora de controlo e gozam de uma impunidade que encoraja mais abusos e a continuação da instabilidade e da insegurança”, afirma Donatella Rovera, Investigadora Sénior de Resposta à Crise da Amnistia Internacional.

“Há um ano os líbios arriscaram as suas vidas para exigir justiça. Hoje, as suas expetativas estão a ser comprometidas por milícias armadas ilegais que passam por cima dos direitos humanos sem serem punidas. A única maneira de acabar com as práticas enraizadas de décadas de abusos sob o comando autoritário do coronel Kadhafi é assegurando que ninguém está acima da lei e que as investigações aos abusos serão feitas”, acrescenta.

Em janeiro e fevereiro deste ano, a Amnistia Internacional visitou 11 centros de detenção, no centro e no oeste da Líbia, usados por várias milícias e, em 10 desses locais, os detidos afirmam ter sido torturados e vítimas de maus-tratos, mostrando à Amnistia Internacional lesões recentes resultantes desses abusos. Vários detidos confessaram crimes que não cometeram, como violações, homicídios e outros, apenas para não serem mais torturados.

Desde setembro, pelo menos 12 detidos capturados pelas milícias morreram depois de terem sido vítimas de tortura. Os corpos estavam cobertos de hematomas, feridas, cortes e alguns tinham as unhas arrancadas.
Indivíduos que estiveram detidos nos arredores de Tripoli, Gharyan, Misratah, Sirte e Zawiya afirmaram à Amnistia Internacional terem sido suspensos em posições contorcidas; espancados durante horas com chicotes, cabos, mangueiras de plástico, barras e correntes de metal e paus; e terem sido vítimas de choques com fios eléctricos e armas taser.

Num centro de detenção em Misratah, um representante da Amnistia Internacional viu membros de milícias armadas espancarem e ameaçarem alguns detidos que tinham recebido ordem de soltura. Um detido mais antigo, proveniente de Tawargha, estava de cócoras contra a parede e chorava enquanto era pontapeado e ameaçado por um membro da milícia que disse à Amnistia Internacional: “os de Tawargha não serão libertados ou nós matamo-los”.

Num centro de interrogatórios em Misratah e Tripoli, a Amnistia Internacional descobriu detidos, cujos interrogadores tentaram esconder, que tinham sido severamente torturados – um deles tão barbaramente que mal conseguia mover-se ou falar.

Desconhece-se que tenha sido feita alguma investigação aos casos de tortura, mesmo àqueles onde os detidos morreram depois de terem sido submetidos a tortura, nos quartéis das milícias ou em centros de interrogatórios formal ou informalmente ligados às autoridades centrais.

“Milícias com registos de abusos aos detidos devem ser simplesmente impedidas de deter alguém e todos os detidos devem ser imediatamente transferidos para instalações autorizadas, sob o controlo do Conselho Nacional de Transição.”
Não foram levadas igualmente a cabo quaisquer investigações a outros abusos graves, tais como execuções extrajudiciais de detidos e outros crimes de guerra, incluindo as mortes de 65 pessoas, cujos corpos foram encontrados a 23 de outubro num hotel em Sirte que servia como base para as forças da oposição de Misratah.

Membros de uma milícia são vistos num vídeo obtido pela Amnistia Internacional, onde aparecem a espancar e a ameaçar de morte um grupo de 29 homens que mantinham em sua custódia. Pode ouvir-se um deles dizer “peguem neles todos e matem-nos”. Os corpos destes homens estavam entre os que foram descobertos três dias depois no hotel, muitos com as mãos atadas atrás das costas e um tiro na cabeça.

As autoridades líbias ainda não tomaram qualquer medida contra as milícias que deslocaram à força comunidades inteiras – um crime ao abrigo da lei internacional. Milícias de Misratah expulsaram toda a população de Tawargha, cerca de 30 mil pessoas, saqueando e incendiando as suas casas como vingança pelos crimes que alguns Tawargha são acusados de terem cometido durante o conflito. Milhares de membros da tribo Mashashya foram igualmente forçados a sair da sua aldeia por milícias de Zintan, nas montanhas Nafusa. Estas e outras comunidades continuam a viver em campos improvisados um pouco por todo o país, enquanto nenhuma medida é tomada para deter os responsáveis ou para permitir que as comunidades deslocadas regressem a casa.

“A impunidade de que as milícias gozam passa a mensagem de que tais abusos são tolerados e contribui para que estas práticas sejam aceites. Os indivíduos responsáveis pelos abusos devem ser chamados a responder pelas suas ações e destituídos dos cargos que permitem que tais violações sejam repetidas”, afirma Donatella Rovera.
“É imperativo que as autoridades líbias demonstrem firmemente o seu compromisso em virar esta página de décadas de violações sistemáticas, controlando as milícias, investigando os abusos do passado e do presente e levando perante a justiça os responsáveis – em todas as partes – de acordo com a lei internacional”.

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