19 Dezembro 2022

 

  • 37 pessoas mortas e 77 desaparecidas na sequência dos acontecimentos em Melilla
  • Famílias de pessoas desaparecidas dão voz a nova campanha internacional pela justiça

O fracasso das autoridades espanholas e marroquinas em determinar a verdade e garantir a justiça, a propósito das, pelo menos, 37 pessoas provenientes da África subsariana que morreram e das 77 que permanecem desaparecidas devido aos acontecimentos letais na zona fronteiriça de Melilla, em junho, revela vontade em encobrir o sucedido.

O relatório “They hit him in the head to see if he was dead” (em português: “Bateram-lhe na cabeça para ver se ele estava morto”) detalha os acontecimentos que ocorreram quando migrantes e refugiados da África subsariana tentaram atravessar a fronteira de Marrocos para Espanha, a 24 de junho. Até ao momento, as autoridades dos dois países não asseguraram investigações efetivas e transparentes para determinar a verdade sobre o que aconteceu nesse dia. As famílias e organizações especializadas que procuram os desaparecidos têm sido repetidamente bloqueadas pelas forças de segurança marroquinas.

“As autoridades espanholas e marroquinas continuam a negar qualquer responsabilidade pelas mortes em Melilla, quase seis meses após a sua ocorrência. Existem cada vez mais evidências de violações de direitos humanos, como a morte e maus-tratos dados a refugiados e migrantes, a que acresce, até hoje, a ausência de informação sobre a identidade dos falecidos e o destino dos desaparecidos. É essencial que os dois governos envolvidos garantam a verdade e a justiça pelo que aconteceu naquele dia, de forma a evitar que se repita”, releva a secretária-geral da Amnistia Internacional, Agnès Callamard.

“Existem cada vez mais evidências de violações de direitos humanos, como a morte e maus-tratos dados a refugiados e migrantes, a que acresce, a ausência de informação sobre a identidade dos falecidos e o destino dos desaparecidos”

Agnès Callamard

Com base nos relatos de testemunhas oculares, vídeos e imagens de satélite, o relatório traça um retrato detalhado e angustiante do que se verificou quando 2.000 migrantes e refugiados tentaram atravessar para Melilla através de uma passagem fronteiriça conhecida como ‘Barrio Chino’ (Bairro Chinês). Dada a falta de transparência de ambos, a Amnistia Internacional escreveu aos governos marroquino e espanhol, pedindo-lhes que partilhassem informações sobre o mandato e o estado das investigações. A organização também partilhou com os governos, em novembro, um resumo das conclusões. Não foram recebidas quaisquer respostas.

O relatório mostra que os acontecimentos daquele dia eram previsíveis e que a perda de vidas teria sido evitável. Revela que, nos meses e dias anteriores a 24 de junho, refugiados e migrantes perto de Melilla foram submetidos a crescentes ataques pelas forças de segurança marroquinas. Muitos tiveram todos os seus pertences incendiados e destruídos, o que incentivou a sua deslocação para a fronteira, onde foram recebidos com força ilegítima e letal pelas autoridades marroquinas e espanholas.

À medida que se aproximavam, a polícia atirou pedras e disparou gás lacrimogéneo contra estas pessoas em espaços fechados. Muitos dos feridos continuaram a ser espancados e pontapeados enquanto se deitavam no chão, semiconscientes, sem reação ou a debater-se para conseguir respirar.

Zacharias, com 22 anos e do Chade, contou à Amnistia Internacional que foi atingido com bombas de gás, pedras, balas e outros projéteis de borracha pelas  forças de segurança marroquinas e espanholas: “Não conseguíamos ver nada e era difícil respirar”.

“Não conseguíamos ver nada e era difícil respirar”

relato de uma vítima, Zacharias

Cerca de 400 pessoas foram encurraladas pelas autoridades marroquinas numa pequena área murada. O Laboratório de Provas da Amnistia Internacional conseguiu reconstruir um modelo imersivo 3D dos eventos e este trabalho oferece uma perspetiva arrepiante das ações violentas das forças de segurança, que poderão equivaler a tortura e podem ter conduzido a assassinatos extrajudiciais.

“Parecia que a polícia marroquina estava a dar-nos espaço para a passagem, mas depois encurralaram-nos. Começaram a atirar-nos com gás e tentámos mover-nos para onde podíamos, foi o caos”, afirmou Omer, um homem de 21 anos do Sudão, à Amnistia Internacional.

Salih, com 27 anos e também do Sudão, referiu à Amnistia Internacional: “A polícia espanhola pulverizou-nos nos olhos com gás, e a polícia marroquina atirou-nos pedras à cabeça.”

As autoridades dos dois países falharam em providenciar assistência médica célere e adequada aos feridos, como o acesso de uma ambulância da Cruz Vermelha à área. Dezenas de pessoas ficaram expostas ao sol abrasador durante, pelo menos, oito horas.

Um dos entrevistados disse à Amnistia Internacional que as autoridades espanholas forçaram os feridos a regressar para Marrocos, embora estivessem a sangrar ou com ferimentos expostos. Muitos dos que foram impelidos a retornos forçados para Marrocos acabaram presos e sujeitos a abusos e violência adicionais. Um rapaz sudanês de 17 anos relatou à Amnistia Internacional que, ele e todas as pessoas capturadas, foram levados pela polícia marroquina para a prisão, e depois, na cadeia, espancados com martelos na cabeça. Muitos acabaram por falecer”.

Estima-se que cerca de 500 pessoas foram transportadas em autocarros para zonas remotas, acabando abandonadas à beira da estrada sem os seus pertences ou qualquer assistência médica. Algumas pessoas relataram mesmo à Amnistia Internacional que essas transferências forçadas foram para locais que distavam mais de 1000km do local onde de partida.

Nem o governo marroquino, nem o espanhol divulgaram resultados preliminares de quaisquer investigações sobre o número de pessoas que morreram e as causas da sua morte, nem anunciaram estar a investigar o uso da força pelas autoridades fronteiriças. Nenhum dos governos partilhou a totalidade das imagens das muitas câmaras de videovigilância ao longo da fronteira, e as autoridades espanholas recusaram-se a abrir uma investigação independente.

As autoridades marroquinas tornaram ainda praticamente impossível, para as famílias e várias ONG, realizarem buscas pelos desaparecidos e mortos, o que é angustiante para as famílias que procuram localizar os seus entes queridos.

Após meses sem notícias de Anwar, um sudanês de 24 anos desaparecido desde 24 de junho, a sua sobrinha, Huwaida, deparou-se com vídeos e fotografias publicados online do corpo do tio, aparentemente sem vida. Huwaida  afirmou à Amnistia Internacional: “A mãe de Anwar tem pensado muito nele, quer saber o que aconteceu. Peço-vos que nos ajudem a obter justiça”.

Durante mais de uma década, vários especialistas das Nações Unidas têm manifestado preocupação com o tratamento discriminatório de pessoas de África subsariana nesta fronteira. A 1 de novembro de 2022, a relatora Especial da ONU sobre Formas Contemporâneas de Racismo, Xenofobia e Intolerância, enunciou que a violência em Melilla “revela o status quo das fronteiras da União Europeia, nomeadamente a exclusão racializada e a violência letal implementada para manter afastadas pessoas de descendência africana e do Médio Oriente e outras populações não brancas”.

“A força ilegítima usada em Melilla deixou uma mancha indelével, não só nas mãos das forças de segurança marroquinas e espanholas, mas também nas de todos aqueles que pressionam no sentido de políticas de migração racistas”

Relato de uma vítima (Zacharias)

“A força ilegítima usada em Melilla deixou uma mancha indelével, não só nas mãos das forças de segurança marroquinas e espanholas, mas também nas de todos aqueles que pressionam no sentido de políticas de migração racistas. Em vez de fortificarem as fronteiras, as autoridades devem abrir rotas seguras e legais para as pessoas que procuram segurança na Europa”, revela Agnès Callamard.

“As autoridades dos dois países devem ser transparentes quanto ao mandato e ao âmbito de quaisquer investigações existentes e garantir que estas são efetivamente realizadas, cooperando plenamente com elas, mas também assegurando que o seu mandato seja alargado para incluir as preocupações sobre racismo.”

 

Contexto

Embora seja permitido aos Estados tomarem medidas para impedir a entrada não autorizada nas fronteiras, estes devem fazê-lo de uma forma que não viole direitos humanos.

Após uma visita a Melilla no final de novembro, a Comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa criticou publicamente o facto de os requerentes de asilo em Marrocos não terem acesso “genuíno e efetivo” ao asilo no posto fronteiriço, deixando os migrantes com poucas alternativas além de procurarem a travessia irregular.

Além disso, após uma investigação preliminar e uma visita a Melilla, o Provedor de Justiça espanhol concluiu que, pelo menos, 470 migrantes e refugiados foram sujeitos a retornos forçados para Marrocos.

Recursos

Artigos Relacionados