- Relatório revela o uso indiscriminado de ordens de ‘restrição da liberdade’ que sujeitam os residentes a detenções ilegais e arbitrárias no centro de Samos, na Grécia
- Centro registou sobrelotação, com um pico de 4 850 residentes em outubro de 2023. Pessoas foram alojadas em cozinhas e salas de aula, e em contentores
- “Os resultados em Samos mostram que este modelo é punitivo, dispendioso e suscetível de abusos” — Deprose Muchena
A Grécia deve revogar urgentemente as regras legais que estão a fazer com que as pessoas que procuram asilo no “Centro Fechado e de Acesso Controlado”, financiado pela União Europeia (UE) na ilha de Samos, sejam sistemática e ilegalmente privadas da sua liberdade, afirmou a Amnistia Internacional num novo relatório. A organização apelou ainda à UE para que responsabilize a Grécia pelas violações dos direitos humanos no centro e para que garanta que o modelo não é um modelo para o Pacto de Migração e Asilo recentemente adotado.
O relatório, Samos: “Sentimo-nos presos na ilha”, revela o uso indiscriminado de ordens de ‘restrição da liberdade’ que sujeitam os residentes a detenções ilegais e arbitrárias.
“A Grécia tem sido, desde há muito, um campo de ensaio para as políticas de migração da UE, baseadas na exclusão racializada das pessoas que se deslocam nas fronteiras da região. Os resultados em Samos mostram que este modelo é punitivo, dispendioso e suscetível de abusos. Sob o pretexto de registar e identificar as pessoas, as autoridades gregas detêm de facto todos os residentes à chegada, incluindo as pessoas em situação vulnerável, numa violação dos seus direitos. Tudo isto acontece num local financiado pela UE que é suposto estar em conformidade com as normas europeias”, afirmou Deprose Muchena, Diretor Sénior do Impacto Regional dos Direitos Humanos da Amnistia Internacional.
“A Grécia tem sido, desde há muito, um campo de ensaio para as políticas de migração da UE, baseadas na exclusão racializada das pessoas”
Deprose Muchena
“Um pesadelo distópico” financiado pela UE
Depois dos incêndios que devastaram o campo de refugiados de Moria, na ilha grega de Lesbos, em 2020, a Comissão Europeia disponibilizou 276 milhões de euros de fundos da UE para novos centros “polivalentes”, prometendo “melhores condições”. Os locais foram concebidos para incluir instalações de acolhimento e de detenção antes do regresso. O centro de Samos foi o primeiro a ser inaugurado, em 2021.
Como resultado do aumento das chegadas, entre junho de 2023 e janeiro de 2024, o centro registou uma sobrelotação, atingindo um pico de 4 850 residentes em outubro de 2023. Esta situação levou a que as pessoas fossem alojadas em áreas não residenciais, como cozinhas e salas de aula, e em contentores, em condições inadequadas. Embora a capacidade inicial do local fosse para 2 040 pessoas, as autoridades alteraram-na para 3 650 em setembro de 2023, sem qualquer intervenção aparente para aumentar a capacidade de alojamento.
O aumento das chegadas exacerbou problemas de longa data na prestação de serviços básicos, incluindo a escassez de água e a falta de um médico permanente. A continuidade dos serviços médicos no campo também está em causa, uma vez que os contratos dos profissionais de saúde que trabalham atualmente no local expiraram em 30 de junho, mas a execução do novo projeto financiado pela UE para a prestação de cuidados de saúde, “Hipócrates”, sob a gestão da Organização Internacional para as Migrações, continua pendente. A incerteza prolongada e persistente quanto à prestação de serviços de saúde adequados no campo suscita sérias preocupações quanto à capacidade da Grécia para garantir o acesso equitativo dos requerentes de asilo aos serviços de saúde.
“Encontrámos um campo altamente securitário, sem as infraestruturas mais básicas”
Deprose Muchena
“A UE prometeu que estes centros estariam ao nível dos «padrões europeus». Em vez disso, encontrámos um pesadelo distópico: um campo altamente securitário, sem as infraestruturas mais básicas. As câmaras de segurança e o arame farpado cercam o centro, criando um ambiente «semelhante a uma prisão». As pessoas não tinham água suficiente, nem cuidados de saúde adequados e, nalguns casos, nem sequer camas. Ao mesmo tempo, não podiam sair do centro durante semanas, por vezes meses a fio”, afirmou Deprose Muchena.
Detenção sistémica, arbitrária e ilegal
Os residentes são sistematicamente sujeitos a ordens de “restrição de liberdade” que os confinam ao centro até 25 dias após a sua entrada. Estas restrições excedem as legítimas “restrições à liberdade de circulação” e constituem uma detenção ilegal. São aplicadas, na sua esmagadora maioria, aos recém-chegados sem ter em conta as circunstâncias individuais, em violação do direito e das normas internacionais, que estabelecem que a detenção apenas em matéria de imigração só é permitida nas circunstâncias mais excecionais.
A Amnistia Internacional viu provas de que a aplicação destas medidas é também profundamente incorreta, sendo as pessoas detidas para além do limite permitido de 25 dias, muitas vezes sem uma decisão escrita ou com base numa decisão com data anterior.
Além disso, especialmente durante os períodos de sobrelotação do centro, os residentes enfrentaram situações de condições de vida indignas que podem ter violado a proibição de maus-tratos.
“Estamos a enfrentar problemas de saúde mental. Eu fugi da guerra. Deixámos a Síria para ter um futuro melhor […] não [para estar] aqui em condições inseguras, sujas, difíceis por todas as razões. Deixei a minha família no meu país e agora sinto-me castigado aqui”, disse Nabil*, um homem da Síria que vive no centro.
“Eu fugi da guerra. Deixámos a Síria para ter um futuro melhor, não para estar aqui em condições inseguras, sujas, difíceis”
Nabil
Embora as restrições das ordens de liberdade sejam aparentemente “neutras em termos de raça” e afetem todos os recém-chegados aos centros, afetam quase exclusivamente os requerentes de asilo racializados. A Grécia tem de garantir que as suas políticas de migração não conduzam a resultados racialmente discriminatórios, que são contrários ao direito internacional.
O apoio da Comissão Europeia à criação e ao funcionamento do centro aumenta a sua responsabilidade por quaisquer violações daí resultantes. Tal como todos os novos centros financiados pela UE, o centro de Samos foi concebido para cumprir os princípios subjacentes ao Pacto Europeu para a Migração e o Asilo, um conjunto de reformas recentemente adotadas no direito de asilo da UE. A Amnistia Internacional tem manifestado constantemente a sua preocupação com o facto de o Pacto enfraquecer o acesso ao asilo e aumentar o risco de violações dos direitos humanos e de detenção de facto, nomeadamente através das restrições aos movimentos dos migrantes durante os procedimentos de triagem e de asilo e regresso na fronteira.
“Samos é uma janela para o futuro do Pacto e oferece uma oportunidade fundamental para a UE e os seus Estados-Membros mudarem de rumo. As regras gregas em matéria de asilo relativas às ‘restrições de liberdade’ devem ser urgentemente revogadas e, para tal, a Comissão Europeia deve avançar com os seus processos de infração contra a Grécia para garantir o cumprimento da legislação da UE”, afirmou Deprose Muchena.
“A UE deve agir urgentemente para garantir que a utilização de medidas restritivas durante os procedimentos de migração não resulte em detenções ilegais generalizadas e outros abusos”
Deprose Muchena
“A UE deve agir urgentemente para garantir que a utilização de medidas restritivas durante os procedimentos de migração não resulte em detenções ilegais generalizadas e outros abusos, como estamos a assistir em Samos. Se não o fizermos, não só estaremos a minar radicalmente as normas da UE em matéria de direitos fundamentais, como também a aumentar drasticamente o trauma e o sofrimento humano nas fronteiras”.
Contexto
A investigação foi realizada entre dezembro de 2023 e julho de 2024 e baseia-se em reuniões, entrevistas e intercâmbios com residentes do centro, representantes das autoridades gregas, organizações da sociedade civil e agências da ONU. A investigação é também acompanhada por obras de arte dos residentes, para representar visualmente os seus sentimentos e experiências de vida no centro. As obras de arte foram criadas durante workshops realizados em colaboração com os Voluntários de Samos.