16 Março 2021

 

  • Análise de mais de 50 vídeos mostra assassinatos sistemáticos e premeditados entre um destacamento de armamento de guerra
  • Soldados implicados em crimes atrozes contra minorias étnicas operam agora nas cidades de Myanmar
  • Prova de execuções extrajudiciais e assassinatos às ordens de comandantes

 

O exército de Myanmar está a usar táticas e armas crescentemente letais, normalmente vistas em campos de batalha, contra manifestantes pacíficos e testemunhas em todo o país, revelou uma nova pesquisa feita pela Amnistia Internacional.

Verificando mais de 50 vídeos da repressão em curso, o Crisis Evidence Lab  da Amnistia Internacional pode confirmar que as forças de segurança parecem estar a implementar estratégias planeadas e sistemáticas, incluindo o uso crescente de força letal. Muitos dos assassinatos documentados equivalem a execuções extrajudiciais.

“Estas táticas dos militares de Myanmar estão longe de ser novas, mas as suas matanças nunca antes foram transmitidas ao vivo para o mundo ver.”

Joanne Mariner, Diretora Interina de Resposta a Crises na Amnistia Internacional

Filmagens mostram claramente que tropas de Myanmar – também conhecidas como Tatmadaw – estão cada vez mais apetrechadas com armas que apenas são apropriadas para um campo de batalha, não para ações de policiamento. Os agentes são vistos frequentemente envolvendo-se em comportamentos irresponsáveis, incluindo o disparar indiscriminado de munição real em áreas urbanas.

“Estas táticas dos militares de Myanmar estão longe de ser novas, mas as suas matanças nunca antes foram transmitidas ao vivo para o mundo ver”, disse Joanne Mariner, Diretora Interina de Resposta a Crises na Amnistia Internacional.

“Estas não são ações de oficiais individuais confusos que tomam decisões erradas. São comandantes convictos já implicados em crimes contra a humanidade, mobilizando as suas tropas e métodos assassinos às claras.

“As autoridades militares devem cessar imediatamente a sua investida mortal, desescalar a situação a nível nacional, e libertar todos aqueles arbitrariamente detidos.”

Joanne Mariner, Diretora Interina de Resposta a Crises na Amnistia Internacional

“Durante anos, minorias étnicas – incluindo Chin, Kachin, Karen, Rakhine, Rohingya, Shan, Ta’ang e outras – têm sofrido o impacto da violência horrenda infligida pelo Tatmadaw. Junto com outros grupos de direitos humanos, apelámos ao Conselho de Segurança das Nações Unidas para remeter a situação em Myanmar para o Tribunal Penal Internacional e trazer à justiça os comandantes superiores do Tatmadaw, incluindo Min Aung Hlaing. Ao invés, o Conselho de Segurança não fez nada, e hoje vemos as mesmas unidades militares virar o seu fogo contra manifestantes.

“As autoridades militares devem cessar imediatamente a sua investida mortal, desescalar a situação a nível nacional, e libertar todos aqueles arbitrariamente detidos.”

Os 55 clipes, filmados entre 28 de fevereiro e 8 de março, foram registados por membros do público e meios de comunicação locais em cidades incluindo Dawei, Mandalai, Moulmein, Monywa, Myeik, Myitkyina e Rangum.

Segundo a Relatora Especial das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos em Myanmar, o número de mortos dos protestos desde 4 de março situa-se nos 61. Esta estimativa oficial exclui baixas adicionais conhecidas nos dias recentes.

 

Uso de força letal planeado, premeditado e sancionado

A Amnistia Internacional verificou múltiplos clipes que mostram que a força letal está a ser usada de maneira planeada, premeditada e coordenada.

Num vídeo registado no bairro de Sanchaung, em Rangum, a 2 de março, pode ver-se um comandante de pé junto a um agente que opera uma espingarda de franco-atirador. O comandante parece estar a dar-lhe ordens para dirigir o fogo contra manifestantes específicos.

Num clipe perturbador de 3 de março no bairro de North Okkalapa, Rangum, vêem-se agentes conduzindo um homem em direção a um grupo maior de forças de segurança. O homem parece estar sob custódia do grupo e não oferece resistência visível, quando subitamente um agente ao seu lado dispara contra ele. Ele cai de imediato no chão e é deixado na estrada, aparentemente sem vida, durante vários segundos, antes de agentes voltarem atrás e o arrastarem dali.

Duas pessoas foram mortas e várias outras feridas em Myitkyina, estado de Cachim, a 8 de março. Num clipe verificado, pode ver-se um grupo de pessoas a correr de uma espessa nuvem de fumo enquanto soam tiros à distância. Podem ouvir-se vozes em pânico dizendo “Queima tanto” e “Uma pessoa morreu”, por entre gritos de choque enquanto uma pessoa com um grave ferimento na cabeça é levada. Várias pessoas aparentemente feridas são vistas depois a ser arrastadas, deixando quantidades significativas de sangue no solo.

Num outro clipe verificado datado de 28 de fevereiro, um membro dos militares em Dawei é visto aparentemente a emprestar a sua espingarda a um agente policial destacado a seu lado. O agente agacha-se, aponta e dispara, perante um grupo de agentes que celebra junto deles.

“Este incidente não demonstra apenas um desrespeito negligente pela vida humana, tornando num desporto o disparar de munições reais contra manifestantes, como também revela coordenação deliberada entre forças de segurança”, disse Joanne Mariner.

“Este incidente não demonstra apenas um desrespeito negligente pela vida humana, tornando num desporto o disparar de munições reais contra manifestantes, como também revela coordenação deliberada entre forças de segurança.”

Joanne Mariner, Diretora Interina de Resposta a Crises na Amnistia Internacional

 

Mobilizado amplo arsenal militar

A 5 de março, meios de comunicação estatais citaram autoridades militares como negando qualquer papel nas fatalidades, alegando que “pessoas sem escrúpulos [poderiam estar] por detrás destes casos”.

Contudo, a Amnistia Internacional identificou forças de segurança armadas com uma variedade de armas de fogo militares, incluindo metralhadoras ligeiras chinesas RPD, bem como espingardas de franco-atirador MA-S, locais, espingardas semiautomáticas MA-1, submetralhadoras Uzi-replica BA-93 e BA-94, e outras armas fabricadas em Myanmar. Estas armas são completamente inapropriadas para uso no policiamento de protestos. De acordo com os Princípios Básicos da ONU, as forças de segurança devem abster-se do uso de armas de fogo a menos que exista uma ameaça iminente de morte ou de lesão grave, e que não haja nenhuma alternativa adequada disponível.

“O armamento mobilizado pelo Tatmadaw revela uma escalada deliberada e perigosa nas táticas”, disse Joanne Mariner.

“Não satisfeitos com o uso indiscriminado de armas menos letais, cada novo dia mostra uma ordem aparente de uso crescente de espingardas semiautomáticas, espingardas de franco-atirador e metralhadoras ligeiras. Não se enganem, estamos numa nova e mortal fase da crise.”

Esta utilização segue-se ao uso excessivo de gás lacrimogéneo, canhões de água, granadas de atordoamento sul-coreanas Dae Kwang DK-44 e outros métodos controversos de ‘controlo de multidões’, bem como a incidentes de espancamentos flagrantes às mãos das forças de segurança, como neste clipe verificado filmado em Mandalay a 7 de março.

Fotografias e vídeos também mostram que a polícia tem acesso a armas tradicionais menos letais, incluindo lançadores de substâncias semelhantes ao gás pimenta, e espingardas carregadas com balas de borracha fabricadas pela empresa turca Zsr Patlayici Sanayi A.S., usando cartuchos da empresa franco-italiana Cheddite.

“Não satisfeitos com o uso indiscriminado de armas menos letais, cada novo dia mostra uma ordem aparente de uso crescente de espingardas semiautomáticas, espingardas de franco-atirador e metralhadoras ligeiras. Não se enganem, estamos numa nova e mortal fase da crise.”

Joanne Mariner, Diretora Interina de Resposta a Crises na Amnistia Internacional

 

Uso de armas letais negligente e indiscriminado

A Amnistia Internacional também verificou filmagens de forças de segurança usando armas letais de maneiras que são negligentes, indiscriminadas e com grande probabilidade de causarem ferimentos fatais.

Uma filmagem verificada de 1 de março em Moulmein, no estado de Mon, mostra forças de segurança conduzindo carrinhas de caixa aberta enquanto aparentemente disparam indiscriminadamente munição real em múltiplas direções, incluindo sobre casas de pessoas.

Num clipe do bairro de Hledan, em Rangum, publicado a 28 de fevereiro, o homem que filma está a espreitar de uma varanda e a descrever a cena abaixo, onde agentes das forças armadas parecem estar a disparar gás lacrimogéneo e munição diretamente contra pessoas na rua. Amontoado com outras pessoas na varanda, ele continua a gravar a cena, quando um grupo de agentes ao nível da rua parece detetá-lo a filmar. Pode ouvir-se um único tiro antes de as pessoas na varanda dizerem “[alguém foi] atingida! Entrem [no apartamento]!”. Depois, pode ver-se uma mulher caída na varanda com um ferimento na cabeça.

“Enquanto aumenta o número de mortes, o Conselho de Segurança da ONU e a comunidade internacional devem ir além das palavras de preocupação e agir de imediato para deter as violações e responsabilizar os perpetradores”, disse Joanne Mariner.

 

Destacamento de conhecidas divisões militares

A análise adicional de fotografias e vídeos mostra que as unidades militares envolvidas nesta repressão letal incluem o Comando de Rangum, o Comando do Noroeste, e a 33ª, a 77ª e a 101ª Divisões de Infantaria Ligeira (DIL), com frequência operando junto a agentes policiais – e por vezes emprestando-lhes as suas armas.

De acordo com filmagens examinadas pela Amnistia Internacional, a 33ª DIL está atualmente destacada em Mandalay, a 77ª em Rangum, e a 101ª em Monywa. Qualquer das três cidades assistiram a ocorrências extremas de força excessiva, incluindo assassinatos, pelas forças de segurança em dias recentes.

Algumas destas divisões militares são conhecidas por atrocidades e graves violações dos direitos humanos cometidas nos estados de Arracão, Cachim, e northern Shan. A Amnistia Internacional implicou soldados da 33ª DIL em crimes de guerra no estado de northern Shan em 2016 e 2017, e em crimes contra a humanidade contra os Rohingya no estado de Arracão em 2017.

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