29 Julho 2014

Este é um retrato do quotidiano em Gaza, o testemunho da vida de um defensor de direitos humanos, sob o zumbido constante dos mísseis e a pressão de fazer chegar ao mundo as histórias e as fotografias dos bombardeamentos incessantes que deixam uma população sem acesso a comida, nem água potável nem energia, e com as vidas em risco a toda a hora.

 

“Enquanto lavava os dentes esta manhã ouvi distintamente o zumbido de um drone [aeronave não tripulada] a passar por cima do prédio onde moro. Ignorei o ruído. Os drones estão sempre a rondar por aqui; e nunca se sabe se é uma operação de vigilância ou um míssil prestes a ser disparado. A incerteza faz-nos sentir indefesos. Mas o que é que se pode fazer?

Cinco minutos depois, um míssil disparado do que soou como um caça F-16 atingiu um alvo por perto. O estrondo fez as crianças dispararem a correr para mim. Encafuaram-se comigo na casa-de-banho, em busca de conforto, de segurança. Estavam pálidas, aterrorizadas, e com os olhos avermelhados por dormirem pouco nestes dias.

Sou conhecido por ser capaz de manter a cabeça fria, há quem diga mesmo que tenho nervos de aço, por isso, como me é típico, sorri-lhes para as apaziguar – ainda com a escova apertada entre os dentes. O alívio de me verem a sorrir fez com que as crianças começassem às risadinhas: é uma daquelas reações absurdas que se têm quando estamos sob pressão extrema.

Tento manter as coisas o mais normal possível para as crianças. Não estamos constantemente a falar da guerra nem das mortes. Tomamos precauções racionais, mas não exageramos e tentamos não semear o pânico. Não lhes gritamos para que corram para fora de casa cada vez que ouvimos o zumbir dos drones.

Sinto-me relativamente seguro em casa. Conheço todos os meus vizinhos no edifício e em volta e sei que não há aqui ninguém que possa ser um alvo. Porém, a verdade é que não há nenhum lugar seguro em Gaza. A vida é extremamente perigosa. É a guerra. Confiamos em Deus e zelamos pelo bem-estar das crianças.

Tento manter-me distante das zonas onde há combates; de qualquer forma, o Exército israelita bloqueou o acesso a essas áreas. Mas nenhum veículo está imune de um ataque. Ainda há uns dias, um ataque de drone destruiu por completo uma carrinha que estava claramente marcada como sendo uma ambulância.

É quando saio para tirar fotografias e entrevistar as pessoas que vivem nas zonas que são alvo que fico em maior risco. O perigo é que toda e qualquer casa em que eu entre pode ser o próximo alvo. Mas acredito que este trabalho que estou a fazer é importante – independentemente do perigo, é crucial que se saiba a verdade.

O que aconteceu na semana passada com a família de Abu Jame, na zona leste de Khan Yunis, arrasou-me por completo. Foram 25 pessoas da mesma família dizimadas num só ataque aéreo israelita, quando se preparavam para o iftar, a refeição da noite que quebra o jejum do Ramadão. Cheguei ao local na manhã seguinte, apenas algumas horas depois das explosões. Tinham estado a retirar os corpos da casa durante a noite toda. Tantos tão pequenos. Enquanto lá estava, a zona foi atingida nas proximidades por outro míssil.

Neste momento estão 28 pessoas a viver em minha casa. Os meus irmãos são de Salatin, no Norte da Faixa de Gaza, por onde avança a ofensiva militar  terrestre israelita. Os meus três irmãos, com as famílias, de seis a sete filhos cada, e os meus filhos, estamos todos a viver debaixo do mesmo teto. Deixei que ficassem todos comigo; não nos podemos recusar quando estão vidas em risco.

A invasão terrestre israelita tornou impossível fazer chegar comida à Cidade de Gaza desde as zonas agrícolas mais para norte. Para o lado sul, a estrada de Salah al-Din, principal via rodoviária que liga toda a Faixa de Gaza, está muito exposta e é alvo frequente de ataques de drones. Atualmente só as ambulâncias e alguns veículos das organizações de ajuda humanitária usam essa estrada, e sempre com elevado risco.

O único mercado que está a funcionar é o do campo de refugiados de Al-Shati, que abre à noite e fica muito abarrotado. Os vendedores têm de arriscar as vidas para conseguirem vegetais frescos. É uma área muito densa e se um F-16 a bombardeasse, todo o campo ficaria transformado numa cratera. As poucas lojas que ainda abrem as portas já quase não têm nada para vender.

Temos eletricidade apenas durante umas quatro a seis horas por dia, em períodos díspares de dia para dia. Quando há eletricidade corremos logo para carregar as baterias dos telemóveis. Um gerador de eletricidade custa uns 1.400 shekels [moeda israelita, perto de 300 euros], pelo que são muito poucos os que o podem comprar. Sem energia, temos de bombear a água para os tanques de armazenamento nos telhados – e isso é só para conseguirmos ter água a sair das torneiras para as lavagens. Para beber e cozinhar é preciso comprar água potável.

Tenho uma secretária com tudo aquilo de que preciso para trabalhar: computadores, carregadores, acesso à internet, câmaras fotográficas. Mas não tenho eletricidade. Consegui finalmente reparar um velho gerador a gasóleo e comprei hoje combustível para o pôr a funcionar. Com sorte talvez o ponha a trabalhar esta noite. Preciso mesmo de o conseguir pôr a funcionar, para poder enviar ao mundo os testemunhos e as fotos que tenho reunido. A pressão que sinto para fazer estas histórias saírem de Gaza é enorme, por isso é tão frustrante com os cortes de energia.”

 

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