9 Maio 2020

por Richard Pearshouse e Jurema Werneck*

Por todo o Brasil, muitos povos indígenas entraram em isolamento voluntário, bloqueando estradas para proteger as suas aldeias da pandemia de COVID-19. Ao telefone, uma enfermeira indígena contou-nos os motivos desta estratégia: “Expliquei [às comunidades] a importância de não saírem das aldeias. Somos mais de 400 pessoas neste território. Se uma pessoa é infetada com a COVID-19, pode contagiar todos os outros. 

As preocupações com a propagação do vírus entre os povos indígenas aumentaram. No início de abril, foi confirmado o primeiro caso, no estado do Amazonas: uma mulher indígena de Kokama, de 20 anos, acusou positivo. 

No Brasil, estes receios m uma longa história. Epidemias de doenças infeciosas atingem, regularmente, as comunidades indígenas, com impactos agravados devido aos baixos padrões dos cuidados de saúde prestados pelo governo. A Amnistia Internacional falou, recentemente, com dois profissionais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). A descrição que fizeram não é um bom presságio para as próximas semanas: faltam equipamentos de proteção, desinfetante para as mãos e funcionários graças a anos e anos de orçamentos restritivos. A terrível situação levou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) a exigir que o governo implementasse um Plano de Ação de Emergência. 

“O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) reportou a desflorestação de 469 km², nos dois primeiros meses de 2020

Apesar de a pandemia de COVID-19 ameaçar a saúde dos povos indígenas na Amazónia brasileira, a pressão exercida sobre as suas terras tradicionais está a aumentar à medida que os chamados grileiros responsáveis pela ocupação ilegal das terras olham para a crise como uma oportunidade a explorar. Nem a época das chuvas, que vai de outubro a maio, os demove. Nesta altura, muitos estão ativos, a delinear lotes e a abrir caminhos por toda a floresta. 

Mesmo antes da COVID-19, as pressões sobre a Amazónia brasileira já estavam a crescer. Através de monitorizações via satélite, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) reportou a desflorestação de 469 km², nos dois primeiros meses de 2020 um aumento de 71,2 por cento em relação ao mesmo período de 2019. 

Um dos efeitos inevitáveis ​​do isolamento voluntário das aldeias indígenas é a redução do patrulhamento efetuado pelas próprias comunidades. Um líder indígena de Manoki, no Mato Grosso, explicou à Amnistia Internacional que as patrulhas realizadas em conjunto com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), em fevereiro deste ano, encontraram novos trilhos e placas dos grileiros que marcavam os lotes recém-desenhados. Agora, suspendemos as nossas ações de vigia. Planeámos uma inspeção para abril, mas também já foi cancelada, disse-nos. 

“Cerca de um terço dos agentes do IBAMA que deveriam estar no terreno não saem dos escritórios porque têm mais de 60 anos ou condições médicas pré-existentes

A ordem de que a proteção ambiental é um “serviço essencial”, durante a pandemia, só existe no papel. Nas circunstâncias atuais, as autoridades ambientais têm ainda menos capacidade para implementar a sua função de fiscalização. Por exemplo, um responsável da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a agência estatal que supervisiona a demarcação de terras e outras questões relacionadas com os povos indígenas, indicou, sob anonimato, que pelo menos uma importante base de proteção na região de Altamira, no estado do Pará, reduziu o quadro de funcionários dos habituais quatro para dois. 

De acordo com uma recente estimativa, publicada pela Reuters, cerca de um terço dos agentes do IBAMA que deveriam estar no terreno não saem dos escritórios porque têm mais de 60 anos ou condições médicas pré-existentes que os colocam entre os grupos de maior risco face ao vírus. As equipas de campo são ainda mais prejudicadas devido às dificuldades logísticas causadas pela diminuição dos voos e pelo encerramento de hotéis e restaurantes. 

As limitações decorrem de um ano em que o governo de Bolsonaro enfraqueceu o sistema brasileiro de inspeção e monitorização das áreas protegidas. Além disso, houve mudanças entre os principais responsáveis, discutíveis e preocupantes, como é o caso de um ex-missionário nomeado diretor do departamento da FUNAI para as tribos isoladas e recentemente contactadas. 

Durante 2019, os orçamentos sofreram cortes e as ações de patrulha foram reduzidas. O número de multas ambientais aplicadas pelo IBAMA, no ano passado, caiu 34 por cento, comparando com 2018. Ao mesmo tempo, conforme foi documentado pela Amnistia Internacional em novembro de 2019, alguns criadores de gado e grileiros intensificaram as tentativas de ocupar áreas protegidas para atividades de pecuária. 

“O Brasil precisa de fortalecer as agências de proteção dos indígenas e do ambiente, com recursos financeiros e humanos

Na linha da frente, os poucos funcionários do governo brasileiro que permanecem em funções estão extremamente preocupados. Um agente ambiental responsável por uma unidade de conservação no estado de Rondônia, que também falou com a Amnistia Internacional sob a condição de anonimato, relatou que tinha recebido informações de que os invasores pretendem aproveitar a situação [da pandemia] para avançar”. Um funcionário da FUNAI, que trabalha num território indígena no estado de Rondônia, garantiu que o crime organizado vai aproveitar as fragilidades do estado durante a pandemia para atacar e destruir as áreas protegidas. 

A COVID-19 e a desaceleração económica que deve ser registada levam-nos a crer que o governo precisa de fazer mais, e não menos, para proteger os povos indígenas e a Amazónia. O Brasil tem ainda de garantir que os povos indígenas podem aceder, em condições de igualdade, a cuidados de saúde e às medidas de proteção no contexto da pandemia. 

É urgente que a fiscalização e as patrulhas nos territórios indígenas e das áreas protegidas da região sejam intensificadas. Todas as medidas para garantir a segurança dos funcionários do governo devem ser tomadas 

Nos próximos meses, o Brasil precisa de fortalecer as agências de proteção dos indígenas e do ambiente, com recursos financeiros e humanos. As autoridades devem assegurar que a atual crise de saúde pública não é uma oportunidade para os grileiros destruírem a floresta amazónica. 

 

*Richard Pearshouse dirige o departamento de Crises e Meio Ambiente da Amnistia Internacional e Jurema Werneck desempenha as funções de diretora-executiva da Amnistia Internacional Brasil

 

Artigo publicado na edição de maio

da revista Courrier Internacional

 

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