13 Setembro 2023

 

  • Expansão das minas conduz à expulsão forçada de comunidades inteiras, que ficam sem as suas casas e terrenos agrícolas
  • Amnistia Internacional apoia uma transição energética dos combustíveis fósseis que não comprometa a vida das comunidades na RDC.

 

A expansão das minas de cobalto e cobre à escala industrial na República Democrática do Congo (RDC) levou à expulsão forçada de comunidades inteiras e a graves violações dos direitos humanos, como violência sexual, fogo posto e espancamentos.

Num novo relatório intitulado “Powering Change or Business as Usual?“, a Amnistia Internacional e a organização Initiative pour la Bonne Gouvernance et les Droits Humains (IBGDH), sediada na RDC, pormenoriza como a expansão das operações mineiras pelas empresas multinacionais conduziu a desalojamentos forçados das comunidades, que ficaram privadas das suas casas e terras agrícolas.

“As expulsões forçadas resultantes do desenvolvimento dos projetos mineiros das empresas estão a destruir vidas e necessitam de terminar imediatamente. A Amnistia Internacional reconhece a função vital das baterias recarregáveis na transição energética dos combustíveis fósseis. No entanto, recorda que a justiça climática exige uma transição que seja justa. A descarbonização da economia global não deve impulsionar novas violações dos direitos humanos”, explica Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional.

“A Amnistia Internacional reconhece a função vital das baterias recarregáveis na transição energética dos combustíveis fósseis. No entanto, recorda que a justiça climática exige uma transição que seja justa”

Agnès Callamard

“A população da RDC tem sido alvo de exploração e abusos durante a era colonial e pós-colonial. Lamentavelmente, os seus direitos continuam a ser sacrificados enquanto a riqueza à sua volta é extraída”, alerta Agnès Callamard.

A procura crescente das apelidadas “tecnologias de energia limpa” criou uma demanda proporcional de certos metais, como o cobre e o cobalto, que é essencial para o fabrico da maioria das baterias de iões de lítio. Estas são utilizadas para alimentar uma vasta gama de dispositivos como os automóveis elétricos e os telemóveis. Para ambos, a RDC tem uma importância crucial: possui as maiores reservas mundiais de cobalto e é a sétima maior reserva de cobre. A bateria média de um veículo elétrico requer mais de 13 kg de cobalto. Por sua vez, a bateria de um telemóvel necessita de cerca de 7g. Até 2025, prevê-se que a procura de cobalto atinja 222.000 toneladas, o triplo desde 2010.

A RDC possui as maiores reservas mundiais de cobalto e é a sétima maior reserva de cobre

Donat Kambola, presidente do IBGDH, mostra-se preocupado com as intimidações que a população tem recebido para abandonar as suas casas e com as situações evidentes de desalojamento forçado que têm tido lugar, alertando que “muitas vezes, as pessoas são induzidas em erro para consentirem realojamentos de condições miseráveis, não dispondo de qualquer mecanismo de reclamação, responsabilização ou acesso à justiça”.

Candy Ofime e Jean-Mobert Senga, investigadores da Amnistia Internacional e co-autores do relatório, afirmaram que este comportamento é um desrespeito absoluto pelos direitos humanos das comunidades em risco: “Encontrámos repetidas violações das salvaguardas legais previstas nas normas internacionais em matéria de direitos humanos e na legislação nacional, assim como um desprezo absoluto pelos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos.”

Na investigação para este relatório, a Amnistia Internacional e o IBGDH entrevistaram mais de 130 pessoas em seis projetos mineiros diferentes na cidade de Kolwezi e arredores (província de Lualaba) durante duas visitas distintas em 2022. Os investigadores analisaram documentos e correspondência, fotografias, vídeos, imagens de satélite e respostas das empresas. O relatório inclui descobertas em quatro locais e as violações de direitos humanos (como os desalojamentos forçados) em três deles. No quarto local, Kamoa-Kakula, a investigação identificou provas de processos de reinstalação inadequada.

 

Um tapete transporta pedaços de cobalto bruto após uma primeira transformação numa fábrica em Lubumbashi, antes de serem exportados, principalmente para a China, para serem refinados. A RDC é o principal produtor de cobalto, fornecendo 67% da procura mundial. Crédito da fotografia: SAMIR TOUNSI/AFP via Getty Images.

 

Casas demolidas à medida que uma mina se expande para uma cidade

No coração da cidade de Kolwezi, a reabertura de uma grande mina de cobre e cobalto a céu aberto, em 2015, tem destruído o lugar de comunidades que ali estão há muito estabelecidas. O projeto é explorado pela Compagnie Minière de Musonoie Global SAS (COMMUS), uma empresa comum entre a Zijin Mining Group Ltd, uma empresa chinesa, e a Générale des Carrières et des Mines SA (Gécamines), a companhia mineira estatal da RDC.

Cité Gécamines, um dos bairros afetados, alberga cerca de 39.000 pessoas. As casas são tipicamente de várias divisões e estão inseridas em complexos murados com água corrente e eletricidade. Existem escolas e hospitais nas proximidades. Desde que as atividades mineiras retomaram, centenas de residentes foram mandados embora ou já tiveram mesmo de mudar-se. Não existiu uma consulta prévia adequada às comunidades e os planos de expansão da mina não foram tornados públicos.

Alguns residentes só souberam que as suas casas iam ser demolidas depois de aparecerem cruzes vermelhas nas suas propriedades

Edmond Musans, de 62 anos, forçado a sair e a demolir a sua casa, reforça que nunca teve a oportunidade de reivindicar o que estava a acontecer-lhe, a ele e à sua comunidade: “Nós não pedimos para sermos deslocados. A empresa e o governo vieram ter connosco e só nós disseram: ‘Há minerais aqui'”.

As pessoas desalojadas explicaram que a indemnização oferecida pela COMMUS não era suficiente para lhes comprar casas equivalentes. Como resultado, muitas tiveram de se mudar para propriedades sem água corrente ou energia estável nos arredores de Kolwezi. Além das condições das novas casas lhes proporcionarem uma qualidade de vida e de serviços inferior, os meios efetivos de recurso ou de reparaçãosão inexistentes.

“Eu tinha uma casa grande, com eletricidade, água… Agora, tenho uma casa pequena que era tudo o que podia pagar com a indemnização. Temos de beber água de poços, quase não há eletricidade.” – relato de um morador.

Cécile Isaka, antiga residente, mencionou que as explosões para alargar a mina provocaram fissuras tão grandes que receou que a sua casa se desmoronasse. Sem outra opção viável, aceitou a oferta de compensação e demoliu a sua propriedade para poder reutilizar os tijolos numa construção noutro local.

Cécile Isaka, antiga residente, mencionou que as explosões para alargar a mina provocaram fissuras tão grandes que receou que a sua casa se desmoronasse

Edmond Musans ajudou a formar um comité para representar os interesses de mais de 200 agregados familiares em risco de desalojamento, procurando obter uma indemnização mais elevada da COMMUS. A comissão partilhou as suas queixas com as autoridades provinciais, mas sem obter qualquer sucesso. À Amnistia Internacional, a COMMUS disse que pretendia melhorar a comunicação com as partes interessadas.

 

Casas queimadas e residentes feridos

Perto do local do projeto Mutoshi – gerido pela Chemicals of Africa SA (Chemaf), uma subsidiária da Chemaf Resources Ltd. com sede no Dubai – os entrevistados descreveram como os soldados incendiaram uma povoação chamada Mukumbi. Ernest Miji, o chefe local, disse que, em 2015, depois de a Chemaf ter adquirido a concessão, três representantes da empresa acompanhados por dois agentes da polícia vieram dizer-lhe que era altura de os residentes de Mukumbi se mudarem. Segundo Ernest Miji, os representantes visitaram-no mais quatro vezes.

Recordando uma das visitas, Kanini Maska, um antigo residente de 57 anos, partilhou: “O representante do Chemaf disse-nos ‘Têm de sair da aldeia agora’. Perguntámos-lhe ‘Para onde é que vamos? Aqui é… onde estamos a criar os nossos filhos, onde cultivamos a terra e onde os nossos filhos estão matriculados para ir à escola'”.

Moradores entrevistados pela Amnistia Internacional referiram que os soldados da Guarda Republicana, uma força militar de elite, chegaram uma manhã e começaram a incendiar casas, espancando os aldeões que os tentavam impedir. “Não conseguimos recuperar nada. Não tínhamos nada para sobreviver e passámos as noites na floresta”, rematou Kanini Maska.

Uma menina, que tinha dois anos na altura e cujo nome não vamos expor, ficou gravemente queimada, com cicatrizes e problemas que alteraram a sua vida. O seu tio relatou que o colchão onde estava deitada se tinha incendiado. Imagens de satélite confirmam que Mukumbi – que chegou a ter cerca de 400 infraestruturas, incluindo uma escola, uma unidade de saúde e uma igreja – foi destruída a 7 de novembro de 2016.

Na sequência de manifestações, em 2019 a Chemaf concordou em pagar, através das autoridades locais, 1.5 milhões de dólares, mas alguns antigos residentes receberam apenas 300 dólares. A Chemaf nega qualquer irregularidade, responsabilidade ou envolvimento na destruição de Mukumbi, ou ainda que tenha influenciado as forças militares para a destruir.

 

Culturas destruídas e violência sexual

Perto de Kolwezi, uma filial do Eurasian Resources Group (ERG), com sede no Luxemburgo e cujo maior acionista é o governo do Cazaquistão, gere o projeto Metalkol Roan Tailings Reclamation (RTR). Vinte e um agricultores, que integram um grupo que cultiva na periferia da concessão, perto da aldeia de Tshamundenda, afirmaram que, em fevereiro de 2020, sem qualquer consulta significativa ou aviso prévio, um destacamento de soldados – alguns com cães -, ocupou a área enquanto os campos que tinham cultivado eram destruídos.

Uma mulher, a quem chamámos Kabibi para proteger a sua identidade, descreveu que enquanto estava no campo a recolher alimentos antes que as colheitas fossem destruídas, foi agarrada por três soldados e violada em grupo, com outros soldados a assistir. Grávida de dois meses na altura, precisou de tratamento médico. Apesar de ter contado o incidente à família e ao chefe da aldeia, tinha demasiado medo de o denunciar à Metalkol ou às autoridades locais. O seu bebé nasceu mais tarde em segurança. Kabibi partilhou ainda com os investigadores: “Sou viúva, não tenho dinheiro para matricular os meus filhos na escola… Até à data, não tenho emprego nem outras fontes de rendimento. Vagueio de casa em casa para encontrar comida para os meus filhos”.

Os agricultores protestaram repetidamente, reivindicando uma indemnização, mas não lhes foi oferecida nem uma solução eficaz. Em resposta, o ERG afirmou que não tinha qualquer controlo sobre o destacamento de soldados. Acrescentou que o governo tinha determinado que o coletivo de agricultores receberia uma compensação de um anterior operador de minas, o que os agricultores negam.

 

Acabar com os desalojamentos forçados

Com esta investigação, um dos apelos da Amnistia Internacional é dirigido às autoridades da RDC, para que terminem imediatamente com as desocupações forçadas, para que instiguem uma comissão de inquérito imparcial e para que reforcem/apliquem a legislação nacional relacionada com exploração mineira e desocupações, à luz das normas internacionais em matéria de direitos humanos.

A organização relembra que as autoridades realizaram ou facilitaram desalojamentos forçados e não cumpriram a sua obrigação de proteger os direitos das pessoas, incluindo aqueles que estão consagrados no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e nos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos. Os militares nunca devem ser envolvidos em desalojamentos.

As alegações das empresas de que se comprometem com elevados padrões éticos revelaram-se ocas e desprovidas de fundamento. As empresas têm a responsabilidade de investigar os abusos identificados, proporcionar uma reparação efetiva e precaver novos danos. Todas as empresas devem garantir que as suas operações não prejudicam as comunidades que habitam na linha da frente.

“As empresas mineiras internacionais envolvidas têm ‘bolsos fundos’ e podem facilmente, se for essa a sua vontade, fazer as mudanças necessárias para salvaguardar os direitos humanos, estabelecer processos que melhorem a vida das pessoas na região e remediar os abusos sofridos”, revela o presidente do IBGDH, Donat Kambola.

“As empresas mineiras internacionais envolvidas têm ‘bolsos fundos’ e podem facilmente, se for essa a sua vontade, fazer as mudanças necessárias para salvaguardar os direitos humanos”

Donat Kambola

Por sua vez, Agnès Callamard, da Amnistia Internacional, reitera que “a República Democrática do Congo pode desempenhar um papel fundamental na transição mundial dos combustíveis fósseis, mas os direitos das comunidades não devem ser prejudicados na pressa de extrair minerais críticos para descarbonizar a economia global.”

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