7 Abril 2016

 

Milhares de refugiados e migrantes estão detidos arbitrariamente e em condições horríveis, imersos num clima de crescente incerteza, medo e desespero sobre o seu futuro, na esteira do acordo firmado entre a União Europeia e a Turquia, apurou a Amnistia Internacional numa investigação no terreno a dois centros de detenção de acesso extremamente restrito nas ilhas gregas de Lesbos e de Chios.

A equipa de investigação teve acesso, a 5 e 6 de abril, aos centros de detenção de Moria em Lesbos e de VIAL em Chios. Cerca de 4 200 pessoas encontram-se atualmente nestes dois centros, tendo a maioria chegado às ilhas gregas depois de ter entrado em vigor o acordo firmado entre a União Europeia (UE) e a Turquia, a 20 de março passado. Algumas destas pessoas estão detidas há 15 dias ou mesmo mais.

Os investigadores da Amnistia Internacional no terreno entrevistaram 89 refugiados e migrantes e entre eles há um largo número de pessoas especialmente vulneráveis, incluindo grávidas, bebés e crianças pequenas, assim como pessoas com deficiências, com traumas ou que sofrem de doenças graves.

“Bem nos limites da Europa, refugiados estão encurralados sem nenhuma luz ao fundo do túnel. Um sistema que tem tantas falhas, que é apressado e mal preparado é uma fonte de erros, de violação e abusos de direitos e do bem-estar de algumas das pessoas mais vulneráveis”, critica a vice-diretora da Amnistia Internacional para a Europa e Ásia Central, Gauri van Gulik, que integra a missão à Grécia. “As pessoas detidas em Lesbos e em Chios não têm virtualmente nenhum acesso a assistência legal e um muito limitado acesso a serviços e apoios, além de não lhes chegar praticamente nenhuma informação sobre o estatuto em que se encontram nem sobre o seu possível destino. O medo e desespero são palpáveis”, descreve a perita.

Da receção à detenção

“Fugi da Síria para me escapar à prisão, mas agora estou numa prisão”, lamentou um homem sírio, na casa dos vinte anos, que foi entrevistado no centro de detenção de Moria.

A decisão de transferir de centros de receção abertos para campos de detenção fechados quem atravessa o mar Egeu a partir da Turquia resultou em que milhares de pessoas são detidas arbitrariamente, em alguns casos durante várias semanas, enquanto aguardam notícias sobre os seus requerimentos de asilo e qual será o seu futuro.

No centro de detenção de Moria, na ilha de Lesbos, a polícia e militares gregos exercem um controlo rigorosíssimo sobre quem entra e sai. O campo, onde se encontram agora cerca de 3 150 pessoas, está totalmente fechado ao mundo exterior por várias secções de vedações com arame farpado nos topos. E em VIAL, centro de detenção construído em volta de uma fábrica de alumínio abandonada, na ilha de Chios, os acessos são igualmente controlados de forma muito rigorosa. As apertadas medidas de segurança seguiram-se a uma série de confrontos que emergiram na noite de 1 de abril entre pessoas de diferentes nacionalidades que se encontravam no campo, e no resultado dos quais mais de 400 refugiados e migrantes fugiram.

A maioria dos que escaparam do centro de detenção VIAL dorme agora ao relento na zona portuária e arredores na baixa de Chios. A segurança é ali praticamente inexistente e o acesso a serviços essenciais escasso.

Apenas dois dos refugiados e migrantes que a Amnistia Internacional entrevistou tinham para mostrar as ordens de detenção emitidas com base nas suas circunstâncias individuais. A detenção automática e de grupos é, por definição, arbitrária e, assim, ilegal.

Grupos vulneráveis

A detenção ilegal de todos quantos estão atualmente a chegar às ilhas gregas conduziu a um falhanço total na ponderação de circunstâncias e necessidades especiais dos requerentes de asilo nos seus casos particulares. E aqui estão incluídas vítimas de tortura, famílias com filhos muito pequenos e bebés, mulheres que viajam sozinhas com crianças, pessoas com deficiências ou que carecem de assistência médica urgente, grávidas, e pessoas em necessidade de cuidados psicológicos. A isto acresce que crianças jamais devem ser postas em detenção de imigrantes.

A Amnistia Internacional testemunhou e entrevistou pessoas nessas circunstâncias tanto em Moria e em VIAL, que se encontravam em detenção apesar de claramente não o deverem estar.

Autoridades em Moria avançaram aos investigadores da Amnistia Internacional que a identificação das pessoas com vulnerabilidades especiais é a prioridade; um grupo entre os 50 e 100 indivíduos tinham já sido libertos para centros de acolhimento abertos, mas um vasto número de outros permanecem em detenção fechada.

Entre aqueles que a Amnistia Internacional testemunhou estarem em Moria há um bebé com complicações de saúde resultantes de um ataque na Síria, mulheres grávidas em fim de termo, pessoas incapazes de andar, e uma rapariga com uma deficiência de desenvolvimento.

A primeira família com que a equipa da organização de direitos humanos conversou em VIAL chegara ao centro de detenção a 19 de março e incluía uma criança de seis anos palestiniana-síria, cuja mãe contou que a filha sofrera ferimentos muito graves quando um telhado ruiu parcialmente sobre ela num bombardeamento. Esta mulher mostrou aos investigadores da Amnistia Internacional as costas inchadas da criança, assim como os registos médicos obtidos ainda na Síria.

“Nenhum requerente de asilo pode ser detido de forma automática, e estes centros de detenção em Lesbos e em Chios não são de forma nenhuma adequados para as muitas crianças pequenas, pessoas com deficiências e indivíduos em necessidade de tratamentos médicos urgentes que ali encontrámos. Estas pessoas têm de ser libertas imediatamente”, insta Gauri van Gulik.

Condições no terreno e acesso a serviços essenciais

As questões fundamentais de que as pessoas se queixaram tanto em Moria como em VIAL têm a ver com a fraca qualidade dos alimentos, a falta de cobertores e de privacidade, a par do acesso desadequado a cuidados clínicos apropriados.

Muitos refugiados descreveram uma falta de acesso a médicos e outros profissionais de saúde em ambos os centros de detenção. Esta circunstância é particularmente premente para os grupos vulneráveis que precisam de assistência médica especializada.

Uma família iraquiana abrigada numa pequena tenda e sem cobertores suficientes contou à equipa da Amnistia Internacional que, ao chegarem ao centro há uma semana, têm vindo a enfrentar enormes dificuldades para conseguirem obter ajuda para a filha de oito anos, a quem foi diagnosticada uma infeção óssea na anca no Iraque, condição que entretanto se agravara e requer tratamento urgente.

Estas pessoas mostraram aos investigadores da Amnistia Internacional os registos médicos que trouxeram com eles desde o Iraque e que por duas vezes apresentaram a um médico desde que chegaram ao centro de detenção grego; foi-lhes recusada a assistência. Da primeira vez, foi-lhes dito que não havia interprete para a consulta e da segunda vez simplesmente lhe foi negado acesso a tratamento.

“Ela está sempre em sofrimento”, contou a mãe desta família iraquiana.

Em Moria, normalmente só estão disponíveis três médicos para prestar assistência a cerca de 3 150 pessoas; em VIAL, as equipas que prestam cuidados de saúde declararam que os serviços médicos prestados no centro de detenção só estão acessíveis durante algumas horas limitadas, além de que escasseiam medicamentos e outros produtos e equipamentos clínicos.

O acesso a alimentos é também restrito. Por exemplo, três mulheres que viajam sozinhas com as crianças pequenas e bebés, e que partilhavam um contentor em VIAL, irromperam em lágrimas ao descreverem a frustração desesperada que sentem por não conseguirem os alimentos certos nem sequer o leite suficiente para dar aos filhos.

A sobrelotação no centro de Moria significa também que não há espaço suficiente para acolher adequadamente e em estruturas interiores as 3 150 pessoas que ali se encontram – mais cerca de mil do que a capacidade do complexo. Os investigadores da Amnistia Internacional constataram a existência de pelo menos 50 tendas frágeis amontoadas umas contra as outras junto à vedação do perímetro e em outras áreas do centro, onde muitas famílias e pessoas vulneráveis dormem, em alguns casos cinco ou mesmo mais numa mesma pequena tenda. Com o continuado afluxo às ilhas gregas em números muito significativos, esta situação só pode agravar-se.

Em VIAL, que estava já com a capacidade repleta com cerca de 1 200 pessoas no centro, muitas famílias estavam alojadas em espaços muito apertados em contentores vedados de cerca de 30 a 40 metros quadrados. Estas pessoas dispõem de muito escasso espaço exterior onde se possam mover livremente.

Muitos reportaram à equipa da Amnistia Internacional que faltam cobertores, e que duas ou mais pessoas numa mesma família têm de partilhar uma única coberta fina durante as noites ainda muito frias.

Uma destas famílias, de oito pessoas e oriunda da Síria, em que se incluem uma mulher grávida em fim de termo, um dos filhos, de quatro anos e incapacitado de andar, e ainda um idoso que usa cadeira de rodas, contou que nas suas duas primeiras em Moria dormiram ao relento com apenas dois cobertores para todos eles. Agora partilham algumas tendas entre si, uma vez que os alojamentos nas estruturas sólidas de centro já excederam a capacidade.

Disfunções no processo de asilo

Após o acordo firmado entre a UE e a Turquia, a Grécia alterou o processo de requerimento de asilo no país numa nova lei aprovada a 1 de abril. É patente que o sistema não está ainda a funcionar, devido a uma falta de recursos e de orientações claras.

O medo e a incerteza em volta do arranque do acordo UE/Turquia fizeram disparar o número nos requerimentos de asilo. Segundo dados das autoridades gregas, desde 20 de março passado, a vasta maioria das 3 150 pessoas detidas em Moria expressaram a vontade de requerer asilo e em Chios foram mais de 830 que fizeram o requerimento.

Os prometidos reforços na capacidade para processar estes pedidos, no que se inclui o aumento de funcionários de outros países da União Europeia para tratar os requerimentos de asilo, continua por chegar em números suficientes para dar resposta às necessidades, do que está a resultar um cada vez maior atraso nos processos.

Nesta quarta-feira, 6 de abril, o responsável pelos serviços de asilo – que é o único funcionário de casos no centro VIAL – precisou à equipa da Amnistia Internacional que o aumento nos requerimentos de asilo está muito para lá da sua capacidade em processá-los. Dos 833 requerimentos já apresentados neste centro de detenção apenas dez tinham sido processados – pouco mais de 1% – e só um recebera resposta positiva. Apesar de estes casos terem sido avaliados ainda ao abrigo das anteriores regras de processamento de requerimentos de asilo na Grécia (prévias à nova lei de 1 de abril), a forma como tal está a decorrer é já indicadora da extensão das insuficientes atuais de funcionários.

A maneira apressada com que foi posta em concretização do acordo UE/Turquia tem contribuído para as falhas gritantes no registo e processamento das novas chegadas às ilhas gregas.

Uma das mais importantes questões que todos os refugiados mencionaram nas entrevistas aos investigadores da Amnistia Internacional foi não terem recebido informação suficiente sobre o que é necessário nos processos de asilo. E esta falta de informação é ainda mais urgente dado que estas pessoas permanecem detidas durante a tramitação dos seus requerimentos. Muitos receberam a documentação incompleta ou até mesmo nenhuma documentação para poderem fazer o seu registo.

Por exemplo, uma mulher síria contou que ela e todos os membros da sua família assinaram vários documentos apesar de não terem tido a ajuda de um intérprete no momento e que não lhe foram entregues cópias. “Não preciso de comida – preciso é de saber o que se está a passar”, reclamou aos investigadores da Amnistia Internacional.

Muitas das pessoas entrevistadas descreveram terem sido registadas muito tempo depois de terem chegado ao centro, ainda antes dos limites impostos a 20 de março com a entrada em vigor do acordo UE/Turquia.

Uma outra mulher síria, que chegara à Grécia a 19 de março, contou que lhe foi dito que não podia registar-se nem à família porque “o sistema não estava a funcionar”. Esta mulher mostrou aos investigadores da Amnistia Internacional a pulseira de chegada com a data de 19 de março. Apesar de esta família estar desde aquela data no centro de detenção, desde antes da entrada em vigor do acordo entre a UE e a Turquia, acabou por ficar registada como tendo chegado a 21 de março e todos permanecem assim detidos.

Pelo menos outras três pessoas demonstraram estar em situações similares.

Regra do país terceiro “seguro”

Conforme foi explicado pelo funcionário pelo processamento de asilo em VIAL, o novo sistema grego comporta dois passos: o primeiro é o de avaliação se o país de trânsito (a Turquia neste caso) pode ou não ser considerado um país terceiro seguro para a pessoa em causa; só se for concluído que tal não acontece é que são analisados os méritos do caso do requerente.

Este responsável avançou ainda à equipa da Amnistia Internacional que cabe aos avaliadores dos casos individuais determinarem se a Turquia pode ou não ser considerado um país terceiro seguro para as pessoas que requerem asilo na Grécia. Durante a visita ao centro de detenção de VIAL, os investigadores da organização de direitos humanos, foi constatado não existirem ainda instruções claras sobre os critérios e a informação que é ponderada neste processo.

Face à falta de assistência legal para a vasta maioria das pessoas nos centros, e sendo expectável que os procedimentos de asilo sejam apressados, é provável que milhares de requerentes de asilo sejam sujeitos a retornos à Turquia, apesar de tal ser manifestamente inseguro para eles.

Vários refugiados descreveram o medo que sentem de serem enviados de volta à Turquia. Uma mulher síria jovem e grávida mostrou aos investigadores da Amnistia Internacional equimoses num dos braços, contando que um guarda-fronteiriço turco a agrediu com um bastão. O marido desta mulher apresentava contusões similares numa perna. O casal descreveu que tinham sido forçados a regressar à Síria e que, quando conseguiram atravessar a fronteira para a Turquia a 14 de março, a guarda-fronteiriça disparou contra eles enquanto se escapavam.

“A Europa está a transformar aquilo que deve ser um caminho rumo à proteção num pesadelo de arame farpado, de insegurança e de uma ansiedade incapacitante face à perspetiva que as pessoas têm de serem forçadas a regressar à Turquia”, frisa Gauri van Gulik.

“Têm de ser tomadas medidas sérias e imediatas para solucionar as lacunas gritantes que documentámos em Lesbos e em Chios. Esta investigação mostra que não só a Turquia não é um local seguro para os refugiados neste momento mas também que existem falhas graves no lado grego do acordo firmado entre a UE e a Turquia. E até que ambos os aspetos estejam totalmente resolvidos, não podem ser feitos mais retornos forçados”, avalia a vice-diretora da Amnistia Internacional para a Europa e Ásia Central.

Recomendações

As autoridades gregas e toda a União Europeia têm de suspender prontamente os retornos forçados até que esteja efetivamente garantido que:

  • a detenção das pessoas é usada apenas como último recurso, sendo sempre consideradas alternativas à detenção;

  • todas as decisões de detenção assentem em avaliações detalhadas e individualizadas sobre a necessidade de deter e em concordância com um propósito legítimo;

  • todos os detidos tenham a oportunidade de contestar a legalidade da sua detenção, com devido acesso a assistência jurídica;

  • o acesso aos procedimentos de asilo seja real e efetivo, incluindo prazos adequados para apresentação de documentação e outros materiais que justificam o requerimento para uma pessoa que se encontra sob detenção, assim como o acesso desta a apoio de intérprete;

  • a capacidade para processar os requerimentos de asilo aumente substancialmente;

  • os requerentes de asilo sob detenção recebam informação legal correta sobre os seus direitos e sobre o processo de asilo;

  • as condições de detenção são humanas e dignas;

  • todas as crianças são imediatamente libertas de detenção;

  • as circunstâncias e necessidades especiais dos requerentes de asilo em particular sejam ponderadas, incluindo os casos de vítimas de traumas ou de tortura, de crianças, de mulheres, de idosos e de requerentes de asilo com deficiências ou incapacidades;

  • são desenvolvidas orientações claras e cumpridoras dos direitos sobre como é aplicada a regra do país terceiro seguro, e assegurada a ponderação total das circunstâncias especiais dos casos assim como de informação atualizada e independente sobre o tratamento e estatuto dos requerentes de asilo na Turquia.

 

A Amnistia Internacional exorta, em petição, os líderes políticos a mudarem as políticas de asilo nos seus países e, em particular, os governos europeus a garantirem que os refugiados encontram um destino seguro na Europa, incluindo Portugal, através dos mecanismos de reinstalação e outros que permitam a admissão legal e segura nos seus territórios de quem foge de conflitos e perseguição. Assine!

 

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