15 Março 2012

As pessoas apanhadas na onda massiva de detenções durante os protestos na Síria foram empurradas para um mundo assustador de torturas sistemáticas, afirma um novo relatório divulgado pela Amnistia Internacional.

A escala da tortura e de outros maus-tratos atingiu na Síria um nível que não era testemunhado há anos e que faz lembrar a era negra dos anos 70 e 80.

Divulgado um dia antes do primeiro aniversário do início dos protestos em massa na Síria, “I wanted to die: Syria’s torture survivors speak out’ documenta 31 métodos de tortura ou outros maus-tratos levados a cabo pelas forças de segurança, por gangues armados pró-governo – shabiha – ou pelo exército, descritos por testemunhas ou vítimas aos investigadores da Amnistia Internacional na Jordânia, em fevereiro de 2012.

“A experiência de muitas das pessoas apanhadas na onda massiva de detenções durante o ano passado é agora muito parecida àquela vivida pelos detidos do antigo presidente Hafez-al-Assad – um mundo assustador de torturas sistemáticas”, afirma Ann Harrison, vice-diretora interina do Programa para o Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional.

“Os testemunhos que ouvimos dão uma visão perturbadora de um sistema de detenções e interrogatórios que, um ano depois de os protestos começarem, parece ter como objetivo principal quebrar, humilhar e aterrorizar as suas vítimas até se remeterem ao silêncio.”

Padrões de tortura

A Amnistia Internacional constata que a tortura e outros tipos de maus-tratos para com os detidos segue geralmente um padrão definido.

Muitas vítimas afirmaram que começaram por ser espancadas durante a sua detenção e foram posteriormente espancadas severamente – incluindo com paus, coronhas de espingardas, chicotes e com os punhos, cabos – à chegada aos centros de detenção, uma prática por vezes denominada ‘haflet al-istiqbal’ ou ‘receção’.

Os recém-detidos são normalmente despidos até ficarem em roupa interior e, por vezes, são mantidos em pé no exterior por períodos até 24 horas.

Interrogatórios

No entanto, os testemunhos dados à Amnistia Internacional indicam que os detidos correm maior risco enquanto estão a ser interrogados.

Muitos sobreviventes partilharam a sua experiência no dulab (pneu), onde as vítimas são forçadas a entrar no pneu de um veículo – muitas vezes içado – e espancadas, por vezes com cabos ou paus.

A Amnistia Internacional afirma que se observou um aumento nos relatos do uso do shabeh – onde a vítima é suspensa, num gancho içado, numa manivela ou numa ombreira, ou com os punhos algemados, de maneira a que os pés fiquem suspensos perto do chão ou de maneira a que apenas as pontas dos dedos toquem no chão. O individuo é depois frequentemente espancado.

“Karim”, um estudante de 18 anos, de al-Taybeh, na província de Dera’a, contou à Amnistia Internacional que os seus interrogadores usaram pinças para remover carne das suas pernas durante o período que esteve preso numa delegação da Força Áerea em Dera’a, em dezembro de 2011.

A tortura através dos choques elétricos parece ser usada frequentemente durante os interrogatórios. Antigos detidos descrevem três métodos: derramar água sobre a vítima ou na cela, dando-se em seguida choques elétricos à vítima através da água; a “cadeira elétrica”, onde os elétrodos estão ligados a partes do corpo; e o uso de bastões elétricos.

As torturas baseadas no género e outros crimes de violência sexual parecem ter-se tornado mais comuns no último ano. “Tareq” contou à Amnistia Internacional que durante os interrogatórios a que foi submetida no Ramo de Inteligência Militar em Kafr Sousseh, em Damasco, em julho de 2011, foi obrigado a assistir à violação de outro prisioneiro chamado “Khalid”.

“Puxaram-lhe as calças para baixo. Ele estava ferido na parte superior da perna. Depois, o militar violou-o contra a parede. O Khalid limitou-se a chorar durante o ataque, batendo a cabeça contra a parede”.

Crimes contra a humanidade

A Amnistia Internacional considera que os testemunhos dos sobreviventes vítimas de tortura apresentam ainda mais provas dos crimes contra a humanidade na Síria.

A organização tem apelado repetidamente para que a situação na Síria seja remetida ao Procurador do Tribunal Penal Internacional, mas até à data fatores políticos têm impedido que isto aconteça, com a Rússia e a China a bloquear por duas vezes os projetos de resolução do Conselho de Segurança da ONU que não faziam qualquer referência ao Tribunal Penal Internacional.

À luz das tentativas falhadas de encaminhar o caso para o Tribunal Penal Internacional, a Amnistia Internacional quer ver o Conselho de Direitos Humanos da ONU a estender o mandado da Comissão de Inquérito da ONU na Síria e quer que seja reforçada a sua capacidade de monotorização, documentação e de elaboração de relatórios, tendo em vista eventuais processos contra os responsáveis por crimes ao abrigo do direito internacional e de outras violações graves dos direitos humanos.

A organização quer ver igualmente a comunidade internacional a aceitar partilhar a responsabilidade de investigar e levar aos seus tribunais nacionais os crimes contra a humanidade – através de julgamentos justos e sem se recorrer à pena de morte – e apela a uma investigação internacional conjunta e a equipas de ações judiciais para melhorar as hipóteses de detenções.

“Continuamos a acreditar que o Tribunal Penal Internacional representa a melhor opção para garantir uma verdadeira responsabilização daqueles que cometeram crimes graves contra o povo da Síria”, defende Ann Harrison.

“Mas enquanto os políticos dificultam a realização deste cenário num futuro próximo, os sírios responsáveis por torturas – incluindo os que estão no poder – não devem ter dúvidas de que serão levados à justiça pelos crimes cometidos sob a sua vigilância. É portanto fundamental que a Comissão de Inquérito seja reforçada e que possa continuar o seu trabalho”.

Antecedentes

A Amnistia Internacional entrevistou dezenas de sírios que fugiram da violência para a Jordânia, incluindo 25 pessoas que contaram terem sido torturadas ou terem sido vítimas de outros maus tratos durante a detenção, antes de terem fugido para o país vizinho.

Mais de metade dos casos em causa são da província de Dera’a, onde os manifestantes começaram a ser mortos em março de 2011. Os restantes dizem respeito às províncias de Damasco, Rif Dimashq, Hama, Homs, Latakia, al-Suwayda e Tartus.
 

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