4 Outubro 2022

 

  • Autoridades do Sri Lanka e comunidade internacional devem apresentar soluções à crise económica do país que considerem o pleno respeito pelos direitos humanos;
  • Além de graves dificuldades no acesso aos cuidados de saúde, a população tem enfrentado situações de fome, subnutrição generalizada e pobreza extrema.

Um novo relatório da Amnistia Internacional denominado “Estamos a chegar a um ponto de rutura total: A proteção dos direitos à saúde, alimentação e segurança social na crise económica do Sri Lanka” (em inglês: We are near total breakdown”: Protecting the rights to health, food and social security in Sri Lanka’s economic crisis), explora as consequências que a crise económica e social tem trazido ao povo do Sri Lanka.

“Há meses que a população do Sri Lanka sofre de graves privações alimentares e luta pelo acesso à saúde, enquanto se depara com a elevada inflação que agrava as desigualdades já existentes. As autoridades do país e a comunidade internacional devem agir rapidamente para mitigar o impacto negativo da crise sobre os direitos humanos das pessoas, que cruelmente as privou do seu usufruto ” salienta Sanhita Ambast, investigadora da Amnistia Internacional sobre os direitos económicos, sociais e culturais.

“Há meses que a população do Sri Lanka sofre de graves privações alimentares e luta pelo acesso à saúde, enquanto se depara com a elevada inflação que agrava as desigualdades já existentes”

Sanhita Ambast

O relatório detalha as medidas de recuperação que os líderes do Sri Lanka e a comunidade internacional devem colocar em prática para salvaguardar os direitos humanos nas suas respostas à situação atual do país, tais como aumentar a assistência internacional disponível, assegurar uma proteção social abrangente, e considerar todas as opções para o alívio da dívida, mesmo o seu cancelamento.

Entre junho e setembro de 2022, a Amnistia Internacional realizou entrevistas com 55 pessoas de grupos diversos da sociedade: pessoas com empregos precários; trabalhadores assalariados diários; trabalhadores do setor das pescas e plantações; pessoas da comunidade Malaiyaha Tamil (estima-se que serão particularmente afetadas); profissionais de saúde pública; trabalhadores e membros de grupos da sociedade civil, organizações humanitárias e ONG internacionais, e peritos individuais.

 

“Se tivermos febre, não podemos consultar um médico”

A escassez de medicamentos e de equipamento essencial, além de ser um risco para a vida da população, é uma das principais preocupações no Sri Lanka à medida que a crise económica se acentua. Os últimos meses trouxeram grandes desafios ao sistema de saúde do Sri Lanka, desde a falta de material como de gaze, antibióticos intravenosos e insulina aos pedidos de reutilização de cateteres ou tubos endotraqueais. Um profissional de saúde partilhou à Amnistia Internacional: “Os enfermeiros estão a recolher sangue sem luvas. Isto é perigoso, quer para a enfermeira, quer para o doente”.

“Os enfermeiros estão a recolher sangue sem luvas. Isto é perigoso, quer para a enfermeira, quer para o doente”

Relato de um profissional de saúde

Em alguns casos, as pessoas que necessitavam urgentemente de materiais de saúde foram aconselhadas a comprar esses medicamentos e equipamentos em farmácias privadas, uma vez que os hospitais governamentais estavam sem material. Um médico entrevistado pela Amnistia Internacional relatou: “Nem todas as pessoas têm dinheiro para fazer isso [comprar o material em farmácias privadas]. Aqueles que não o conseguiam pagar, limitavam-se a ir para casa e regressavam pior”.

“Nem todas as pessoas têm dinheiro para comprar o material em farmácias privadas. Aqueles que não o conseguiam pagar, limitavam-se a ir para casa e regressavam pior”

Relato de um profissional de saúde

Uma mãe e o seu filho esperam por medicamentos na farmácia do Hospital pediátrico Lady Ridgewa, em Colombo (21 de abril de 2022). Foto de ISHARA S. KODIKARA/AFP via Getty Images.

 

Por outro lado, a escassez de combustível dificultou o transporte, tornando-o extremamente caro e até mesmo inexistente, o que impediu, em muitos casos, o acesso das pessoas aos serviços de saúde, particularmente quem pertence à comunidade Malaiyaha Tamil, que vive e trabalha em plantações que são historicamente mal servidas por serviços essenciais.

Padam, membro da comunidade Malaiyaha Tamil, referiu à Amnistia Internacional as complicações que tinha para levar a sua mãe ao hospital mais próximo, a 15 km de distância: “Antes da crise, eu usava o meu veículo pessoal, mas devido à escassez de combustível, isso tornou-se mais desafiante. Atualmente, os transportes públicos estão completamente cheios, o que torna a viagem impossível para pessoas idosas como a minha mãe. O preço dos bilhetes também aumentou drasticamente… Se temos febre, não podemos consultar um médico. Recorremos a um panadol para os nossos sintomas”.

Um médico mencionou à Amnistia Internacional que existiam longas filas nos postos de abastecimento de combustível, que afetavam toda a dinâmica dos profissionais de saúde e do percurso das ambulâncias: “As pessoas não podem vir trabalhar porque têm de esperar nas filas de combustível para se poderem deslocar. Tenho visto ambulâncias estacionadas em frente de postos de abastecimento durante horas por essa razão”.

Fila de motoristas ao longo de uma rua para comprar combustível no posto de abastecimento da empresa petrolífera Ceylon, em Colombo (18 de maio de 2022). Fotografia de Ishara S. KODIKARA/AFP.

 

“Há dias em que não comemos nada” 

A inflação e a redução do rendimento familiar têm incapacitado muitas famílias na satisfação das suas necessidades alimentares básicas. Várias pessoas entrevistadas revelaram estar preocupadas com os seus filhos, por não terem comida suficiente para se alimentarem. Aruni, que tem três filhos, ressalvou: “Se cozinharmos o almoço, não temos o que jantar e, mesmo sem jantarmos, não temos nada para a manhã seguinte”. Há dias em que não comemos nada…”

Os trabalhadores e membros das organizações da sociedade civil partilharam à Amnistia Internacional que o montante do financiamento do governo para as refeições escolares já não é suficiente para alimentar todas as crianças.

Savita, uma mulher de 39 anos da comunidade Malaiyaha Tamil que trabalha numa propriedade de chá, afirmou: “No mês passado, passámos dois dias sem qualquer refeição porque não tínhamos nada para cozinhar. Os meus filhos não conseguem compreender os problemas do país. Quando sentem fome, pedem comida, e por vezes choram pelas refeições”.

“Os meus filhos não conseguem compreender os problemas do país. Quando sentem fome, pedem comida, e por vezes choram pelas refeições”

Relato de uma mulher da comunidade Malaiyaha Tamil

Vendedor de legumes em Pettah a 25 de agosto de 2022 em Colombo, Sri Lanka. Foto de Thilina Kaluthotage/NurPhoto via Getty Images.

 

A necessidade de priorizar os direitos humanos

O governo do Sri Lanka, os Estados doadores e as instituições financeiras internacionais estão a implementar programas e reformas económicas para enfrentar a crise económica. Quer as autoridades do país, quer os Estados doadores devem assegurar o cumprimento das suas obrigações ao abrigo da legislação internacional sobre direitos humanos, salvaguardando os direitos à saúde e à alimentação adequada em todos os acordos de ajuda.

O governo do Sri Lanka e as instituições financeiras internacionais devem também analisar o impacto sobre os direitos humanos que as reformas económicas que pretendem implantar podem ter. No entanto, continua a não ser claro se estas avaliações foram ainda conduzidas.

Atualmente, as autoridades do Sri Lanka encontram-se em discussões com os credores sobre a reestruturação da dívida do país. Todas as opções para o alívio da dívida devem ser consideradas, até o seu cancelamento, o que permitiria ao governo aumentar o investimento público em sistemas cruciais de saúde e proteção social.

Qualquer que seja o acordo de alívio da dívida, não deve prejudicar a capacidade do Sri Lanka no cumprimento das suas obrigações em matéria de direitos humanos. Ao mesmo tempo, as reformas dos sistemas de proteção social devem ser realizadas de forma transparente e com uma participação significativa daqueles que serão afetados pelas mudanças. O governo deve ainda explorar todas as opções de acesso aos recursos máximos disponíveis, de modo a respeitar os seus deveres de direitos humanos, nomeadamente através da implementação de uma reforma fiscal progressiva e redistributiva.

“A crise económica trouxe consequências devastadoras para o povo do Sri Lanka. Muitas pessoas não conseguem assegurar uma alimentação suficiente para os seus filhos nem o acesso devido a cuidados de saúde para familiares doentes. A fim de converter esta crise num progresso, as autoridades do país devem garantir que os direitos humanos estão no centro das suas respostas à crise, e que a população possa ter acesso aos sistemas de proteção social”.

“Muitas pessoas não conseguem assegurar uma alimentação suficiente para os seus filhos nem o acesso devido a cuidados de saúde para familiares doentes”

Sanhita Ambast

“A comunidade internacional deve oferecer todo o apoio financeiro e técnico possível ao Sri Lanka, ao mesmo tempo que procura proteger os grupos mais marginalizados de efeitos excessivos com a implementação de medidas específicas”, remata Sanhita Ambast.

 

Contexto

A crise económica do Sri Lanka tem a sua origem não só nas políticas governamentais que se verificaram durante várias décadas, como na pandemia da COVID-19, que prejudicou gravemente a economia do país, com a perda de receitas relacionadas com o turismo, mas também com a diminuição dos pagamentos para os trabalhadores estrangeiros.

Em março de 2022, o governo ficou sem circulação de moeda estrangeira, que era essencial para a importação de artigos essenciais como combustível e medicamentos. Isto contribuiu para o aumento da inflação, para a subida do preço de bens essenciais, para o racionamento do fornecimento de eletricidade, e para as longas filas de espera nos postos de combustível.

Em maio de 2022, o Sri Lanka falhou pela primeira vez o pagamento da sua dívida. Com o agravamento da situação, milhares de manifestantes foram para as ruas, apelando para que o governo assumisse a responsabilidade pela crise. No entanto, a resposta das autoridades foi violenta, atentando contra os direitos humanos daqueles que se manifestavam. Esta situação foi anteriormente documentada pela Amnistia Internacional.

*Todos os nomes foram alterados para proteger a identidade.

 

Recursos

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