5 Novembro 2013

Foram precisos quase 40 anos de exílio num subúrbio londrino até Leopoldo García obter justiça, mas a decisão chegou finalmente, pela mão do Tribunal Interamericano para os Direitos Humanos.

É o primeiro chileno sobrevivente de tortura durante o regime de Augusto Pinochet a obter um triunfo neste tribunal. Os juízes decidiram que o Governo chileno tem de responsabilizar aqueles que levaram a cabo as práticas de tortura de que foi vítima e reconheceu a García o direito a uma indemnização. A sua é uma história de sofrimento, luta e sobrevivência.

Aos 80 anos, este chileno diz que lhe é impossível esquecer a tortura que sofre, há quatro décadas, durante o regime do general Augusto Pinochet, o qual subiu ao poder no Chile com o golpe militar de 11 de setembro de 1973, depondo o então Presidente Salvador Allende.

Leopoldo não o esquece nem por um só dia; cada vez que se olha no espelho, lá estão as marcas e cicatrizes. “Perdi os dentes, a cicatriz na minha cara foi feita com a pancada do cano de uma metralhadora, o meu braço ficou todo torto das fraturas, os danos na minha coluna ficaram para sempre. Foi uma desgraça. Vivo com aquilo que aconteceu até hoje e irei morrer assim”, explica.

A vice-directora da Amnistia Internacional para as Américas, Guadalupe Marengo, sublinha que esta decisão do Tribunal Interamericano para os Direitos Humanos “é positiva”: “Agora o Estado chileno tem que garantir que Leopoldo García poderá ver aqueles que o torturaram serem julgados em tribunal”.

Esta é a primeira vez que aquela instância internacional examina e julga um caso de um indivíduo torturado durante o regime de Pinochet. E para García é mais do que evidente que o Chile tem de assumir responsabilidades pelo que lhe aconteceu há 40 anos e pelas consequências que o exílio lhe impos e à sua família.

A repressão exercida durante o regime de Pinochet causou oficialmente 3.000 mortos ou desaparecidos e cerca de 40.000 sobreviventes de prisões políticas e tortura. Até à data, 262 indivíduos foram condenados por violações de direitos humanos e permanecem abertos 1.100 processos judiciais. Mas a Lei da Amnistia no Chile, aprovada em 1978, continua a proteger todos os indivíduos que cometeram violações de direitos humanos entre 11 de setembro de 1973 e 10 de março de 1978 das suas responsabilidades criminais.

 

Pensar em morrer

Antes do golpe de Pinochet, em 11 de setembro de 1973, Leopoldo García trabalhava como chefe do gabinete de apostas do hipódromo da capital chilena, Santiago do Chile, e era membro do Partido Socialista. O pesadelo que viveria começou poucos dias após o golpe militar, quando foi preso pela polícia a 16 de setembro de 1973.

Leopoldo foi mantido na esquadra principal da capital, sem lhe ser deduzida qualquer acusação e sendo-lhe negado contacto com o exterior. Foi torturado para confessar o paradeiro de outras pessoas ligadas ao Partido Socialista: a cada par de horas, os polícias atavam-lhe as mãos e os pés e vendavam-no, batendo-lhe na cabeça e mergulhando-o em água.

Saiu da esquadra apenas para ser transferido para o Estádio nacional, onde a tortura se intensificou nos três meses seguintes. Depois passou cerca de ano e meio em campos de detenção em Chacabuco, em Tres Alamos e em Ritoque – onde só em muito raras ocasiões a família o pode visitar.

“Aquilo em que pensava [quando estava a ser torturado] é que todos os meus companheiros já estavam mortos e que já só faltava matarem-me a mim. Numa situação destas só se pensa no pior”, recorda.

E um dia, sem nenhum sinal prévio, as autoridades disseram-lhe que iria ser libertado, mas na condição de abandonar o país. “Percebi que nos iam expulsar. Em parte pensei que esta era a nossa salvação e que tudo se resolveria no país muito em breve”.

Quase dois anos depois de ter sido detido, a 12 de julho de 1975, Leopoldo García e a família deixaram o Chile em direção a Londres. Não sabiam falar inglês e apenas puderam levar alguns dos seus pertences com eles. E aquilo que parecera ser uma salvação depressa se revelou um novo capítulo de uma longa e muito difícil batalha.

 

Sobreviver longe de casa

García é um de centenas de milhares de pessoas que foram forçadas ao exílio durante o regime de Pinochet. A adaptação a Londres foi um processo laborioso e muito longo.

A tortura sofrida nas prisões de Pinochet deixaram-no com limitações físicas permanentes, que o impediram de arranjar trabalho. “Pensei que ficaria [em Londres] por uns dois anos, mas aqui estou ao fim de quase 40. É revoltante. Perdi os meus amigos, perdi toda a gente. Nem posso trabalhar. Não posso fazer nada do que fazia no Chile. Sinto-me como se tivesse sido enfiado numa caixa”.

Foi necessário passar por um tortuoso processo de requerimentos para conseguir que o Governo chileno lhes atribuísse ajuda financeira, na qualidade de cidadão exonerado de crimes políticos. Porém, como García não vive no país de origem, não tem acesso a uma série de outras medidas de compensação como os cuidados de saúde prestados a sobreviventes da tortura.

O exílio, agravado pelos danos da tortura e a falta de justiça, também pesou em toda a família. A mulher de Leopoldo, María Elena Otilia García, não teve outra escolha senão a de deixar o trabalho que tinha no Chile para poder cuidar do marido. As três filhas do casal – todas menores quando a família partiu para Londres, a mais nova com apenas quatro anos – enfrentaram os duros desafios de uma nova rotina escolar sem falarem a língua e imersas num ambiente cultural muito diferente daquela de onde são nativas. Perderam tudo, todas as poupanças que possuíam no Chile.

Leopoldo e a família afirmam estar gratos ao Reino Unido, mas evocam também as dificuldades que enfrentaram naquele recomeço de vida. “Também sofremos discriminação. Quando nos mudámos para o nosso primeiro apartamento, os vizinhos não nos queriam ali. Atiravam garrafas de leite e ovos à nossa casa, deixavam sacos de lixo à nossa porta… era horrível”.

Mas com meia vida passada em Londres, é já muito difícil para a família García regressar ao Chile.

 

Um longo caminho até à justiça

As coisas começaram a mudar para Leopoldo García em abril de 1994 quando decidiram abordar a organização não-governamental REDRESS, em Londres, que ajuda as vítimas de tortura. Seguindo o conselho ali recebido, a família García apresentou em 2002 uma queixa formal no Tribunal Interamericano para os Direitos Humanos, que tem sede na Costa Rica, reivindicando compensações ao Estado chileno.

Dois anos passados, em outubro de 2005, a comissão de Direitos Humanos daquela instância internacional deu aval ao caso e entregou-o para julgamento em 2011.

Os advogados da REDRESS argumentaram em juízo que nem Leopoldo nem a sua família tiveram acesso à justiça nem a uma indemnização adequada. E exigiram ao Chile que afastasse todos os obstáculos que impedem Leopoldo, e outros chilenos com casos similares, de obterem justiça, nomeadamente a Lei da Amnistia no país. O queixoso pediu ainda a restituição das poupanças que detinha no chile à data da sua expulsão e que a pensão que recebe do Estado chileno, na qualidade de indivíduo exonerado de crimes políticos, seja ajustada de acordo com o custo de vida em Londres.

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