30 Setembro 2022

 

  • No Bairro do Segundo Torrão, freguesia de Trafaria, Concelho de Almada, o dia 30 de setembro foi estipulado como a data-limite para muitas famílias saírem das casas onde vivem, sem terem ainda definido um local para realojamento provisório. A incerteza sobre o futuro, a ausência de uma comunicação clara e transparente pela Câmara Municipal de Almada e a falta de opções têm deixado estas pessoas sujeitas a grande pressão, por receio de perder a sua casa sem um sítio para onde irem.

 

A Amnistia Internacional – Portugal tem acompanhado a situação de realojamento do bairro do Segundo Torrão, em Almada, tendo já reunido com os moradores do bairro nos dias 29 de junho e 7 de setembro, e ainda com a Câmara Municipal de Almada (CMA) a 25 de julho. A necessidade de realojamentos e a demolição de várias casas resulta – segundo a CMA – da degradação de uma vala de drenagem de águas pluviais, situada por baixo de várias construções informais do bairro, que tem ameaçado desabar, colocando em perigo quem ali reside. A instabilidade da vala aumenta nos períodos com maior probabilidade de chuvas e marés cheias, que acarretam o risco de inundação e colapso provocado pela pressão da água. A Câmara Municipal de Almada não acedeu ao pedido da Amnistia Internacional de lhe facultar o relatório em que sustenta estas razões afirmando que apenas cede o relatório a “entidades públicas e oficiais”.

Tendo em conta todas as implicações em matéria de direitos humanos que esta situação envolve, a Amnistia Internacional tem trabalhado com as partes envolvidas, no sentido de fazer com que as melhores soluções sejam encontradas e implementadas, garantindo que todas as pessoas veem os seus direitos assegurados neste processo de realojamento, conforme definido pelas normas internacionais de direitos humanos sobre o direito à habitação adequada.

Numa primeira visita ao bairro, a 29 de junho, a organização alertou a comunidade para os seus direitos e para as obrigações que as autoridades locais e outros representantes do Estado detêm na prevenção de desalojamentos forçados, partilhando o seu “guia para a prevenção de desalojamentos forçados”. Presentes na reunião, estavam os representantes de várias famílias visadas, que relataram à Amnistia Internacional como lhes tinha sido transmitido o plano de realojamento provisório, com duração prevista de três anos, partilhando os seus receios quanto ao mesmo. Estes receios foram registados e examinados pela Amnistia Internacional, tendo sido transmitidos em audiência com a CMA a 25 de julho. Já em setembro, a organização voltou ao Bairro do Segundo Torrão para verificar como estava a decorrer o avanço de todo o processo.

“Não se pode pensar na habitação individualmente, porque ela interliga-se a outras dimensões da vida das famílias. Pensar numa solução de habitação é ter em conta a dignidade, a estabilidade e o normal acesso ao meio de sustento das famílias, assim como o acesso à educação das suas crianças e jovens”

Pedro A. Neto

Um dos nossos objetivos é apelar para um espírito construtivo de diálogo entre os moradores visados do Segundo Torrão e a Câmara Municipal de Almada. Este diálogo adequado entre a Câmara Municipal e as pessoas que ela serve auxiliará a uma boa resolução de problemas, evitando tensões graves que são frequentes neste tipo de processos de realojamento e demolição das casas, quando alguma das partes está de má-fé. Não se pode pensar na habitação individualmente, porque ela interliga-se a outras dimensões da vida das famílias. Pensar numa solução de habitação é ter em conta a dignidade, a estabilidade e o normal acesso ao meio de sustento das famílias, assim como o acesso à educação das suas crianças e jovens”, releva Pedro A. Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional – Portugal.

 

As casas por cima da vala e as preocupações das famílias que nelas habitam

Segundo a informação que a CMA prestou à Amnistia Internacional, a sinalização das construções em risco no bairro foi delineada de acordo com as conclusões de um relatório do Serviço Municipal de Proteção Civil (SMPC), visto como o “manual” de todo o processo de realojamento. Após estabelecida a área de perigo, a Divisão da Habitação da CMA determinou quais as famílias afetadas, identificando 66 construções sob ameaça de desabamento, das quais 44 têm função habitacional. Inicialmente, este plano de realojamento urgente e temporário abrangia 43 famílias e a sua concretização estava prevista até final de agosto. No entanto, mais famílias foram notificadas numa segunda fase, a 6 de agosto, e o prazo para o cumprimento do processo de realojamento foi redefinido para 30 de setembro, esta sexta-feira.

A estratégia de realojamento temporário encontrada pela CMA para estas famílias assenta no programa Porta de Entrada do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU). O IHRU assegura o arrendamento das novas casas, por um período de 18 meses, extensível até um máximo de 30 meses. Após os 30 meses, o objetivo da CMA com este plano é realojar novamente as famílias, desta vez de forma permanente, num novo local, em habitação de cariz social.

Pela complexidade de toda a mudança, os moradores do Segundo Torrão permanecem com preocupações que carecem de resposta por parte da CMA até esta data. Nos dois encontros da comunidade com a Amnistia Internacional – Portugal, as pessoas revelaram que o critério de escolha das casas a demolir foi o que mais gerou dúvidas que persistem entre a comunidade. Alguns moradores afirmaram existir casas em cima da vala que não foram notificadas pela CMA e estão excluídas do processo de realojamento, apesar de apresentarem igual risco de desabamento e se encontrarem no mesmo perímetro de casas notificadas. Por outro lado, existem casas fora do perímetro da vala a serem consideradas e ainda famílias que receberam notas de despejo mas que não foram posteriormente incluídas no plano de realojamento. Em pelo menos um dos casos, moradores notificados pela CMA e moradores que não o foram, pertenciam à mesma família e as suas casas tinham paredes comuns: [Elas] vivem pegadas a mim […] é tudo paredes com paredes. Deitavam a casa dela abaixo, deitavam a [outra] e o telhado é todo o mesmo, onde é que eu ficava?”, refere uma moradora nesta situação.

“[Elas] vivem pegadas a mim […] é tudo paredes com paredes. Deitavam a casa dela abaixo, deitavam a [outra] e o telhado é todo o mesmo, onde é que eu ficava?”

Relato de uma moradora

Na audiência com a CMA, a Amnistia Internacional – Portugal ressalvou esta preocupação, pedindo que o relatório do SMPC, pelo qual todo o processo de realojamento tem sido orientado, fosse partilhado com a organização, para que se pudesse verificar o rigor e a abrangência do levantamento de casas. No entanto, apesar da solicitação, a CMA não disponibilizou o relatório, referindo mais tarde que “estes relatórios, dado o seu conteúdo, são apenas entregues às entidades públicas e oficiais”. A Amnistia Internacional, não sendo uma entidade pública / estatal, é uma entidade oficial e reconhecida em Portugal, com estatuto de utilidade pública neste país.

Outra apreensão referida pelas famílias foi a análise do agregado familiar e da situação específica dos moradores visados. A Amnistia Internacional apelou à CMA que fosse realizada uma avaliação individual de cada família e casa, capaz de determinar se existem questões intrínsecas ao agregado que merecem ser consideradas para o realojamento, nomeadamente referentes ao aumento do agregado ou à sua situação legal.

Em pelo menos dois casos, a organização teve conhecimento de que está já previsto um crescimento do agregado familiar devido a situações de gravidez avançada, pedindo especial atenção a que a vida pessoal e dignidade destas famílias seja considerada e respeitada. Mesmo tendo em conta que estes bebés carecem de personalidade jurídica até ao momento do seu nascimento, a organização apela à CMA que examine estas situações com boa-fé e boa vontade, especialmente após o envio de documentação que comprova as gestações e atendendo à previsão de que o realojamento provisório dure cerca de três anos – período no qual cada um dos bebés necessitará de espaço na casa escolhida ou atribuída à família pela CMA. A Amnistia Internacional relembrou ainda a CMA que devem ser igualmente ponderadas possíveis limitações de mobilidade física de moradores, para que lhes sejam atribuídas casas provisórias acessíveis que não lhes retirem autonomia e liberdade. Sendo difícil a garantia de um alojamento em rés-do-chão e/ou em prédios com elevador, que pelo menos estas situações sejam prevenidas com cadeiras elevatórias a instalar nos prédios.

Em pelo menos dois casos, a organização teve conhecimento de que está já previsto um crescimento do agregado familiar devido a situações de gravidez avançada, pedindo especial atenção a que a vida pessoal e dignidade destas famílias seja considerada e respeitada

Cada família sinalizada deverá sair da sua casa atual para uma outra temporária, que poderá ser atribuída pela CMA, ou encontrada pela própria família, sendo que o novo espaço terá de cumprir com os critérios estabelecidos pelo IHRU e ser comunicado à CMA para que seja validado. Em audiência com a Amnistia Internacional, a CMA garantiu que nenhuma família seria colocada numa casa que não aceitasse, mas acautelou que, em caso de rejeição, passaria para o fim da lista e a casa designada passaria para outra família. A Amnistia Internacional recorda que a morada provisória, quer seja no concelho de Almada ou limítrofe, deve impactar o menos possível a rotina das famílias, estimando aspetos como a distância e meios de deslocação até ao emprego e, se for o caso, até à escola das crianças e jovens.

É de significativa importância que uma família que trabalha, muitas vezes em condições salariais baixas, não veja o seu orçamento familiar ser impossível de gerir pelo acrescento de custos de deslocações que não conseguem comportar, para os empregos e para as escolas.

A gente vai estar ali três anos, vamos criar laços. Os nossos filhos vão sair de uma escola e bairro onde já estão acostumados, vão para uma escola nova, fazer novas amizades e depois de três anos? É desligar tudo isso de novo e começar a nossa vida num suposto bairro que nós não sabemos onde é, se é perto dos nossos trabalhos antigos ou não? Quem é que nos responde a tudo isso? Onde é que a gente pode ir e ter as respostas na hora? Tem muita gente que sabe que vai sair, mas não sabe como está a decorrer esse processo, questiona uma das moradoras visadas.

“A gente vai estar ali três anos, vamos criar laços. Os nossos filhos vão sair de uma escola e bairro onde já estão acostumados, vão para uma escola nova, fazer novas amizades e depois de três anos? É desligar tudo isso de novo […]”

Relato de uma moradora

A falta de uma comunicação clara e transparente com a CMA é mais um desafio mencionado repetidamente pelos moradores, que não se sentem devidamente informados e ouvidos. Se inicialmente os moradores não tinham a certeza da data em que teriam de sair das suas casas, agora que o dia 30 de setembro foi estabelecido como limite em carta da vereação da proteção civil, as suas dúvidas recaem sobre o sítio para o qual irão caso a CMA não consiga garantir o realojamento até essa data, um desfecho que se revela cada vez mais inatingível. Além disso a preocupação de várias mães da comunidade é a de como irão lidar com a disrupção se, não tendo conseguido alternativa, vierem as máquinas demolir as suas casas com tudo o que têm lá dentro e sem terem para onde ir com os seus filhos.

A Câmara Municipal de Almada em vez de contar com a sociedade civil e com a comunidade para resolver os problemas locais e ouvir a população a quem serve, parece estar a antagonizar a própria sociedade civil acusando-a de ser na população causa de desespero e drama para as famílias. No entanto, o desespero e o drama que vivem estas famílias é causado – de acordo com os testemunhos das famílias que ouvimos – pela pouca clareza, esclarecimento, proximidade, e até por um discurso por vezes intimidatório da Câmara Municipal junto da população a quem serve, salienta Pedro A. Neto.

“O desespero e o drama que vivem estas famílias é causado – de acordo com os testemunhos das famílias que ouvimos – pela pouca clareza, esclarecimento, proximidade, e até por um discurso por vezes intimidatório da Câmara Municipal junto da população a quem serve”

Pedro A. Neto

A comunicação eficiente pode também facilitar a resolução de questões pendentes de regularização de algumas famílias, nomeadamente nas Finanças e Segurança Social, um desafio admitido pela CMA na audiência com a Amnistia Internacional e um tema recorrente apontado pelos moradores, que consideram que este pedido de informação tem sido feito de forma pouco convencional, criando um sentimento de desconfiança entre as partes.

Carta da Proteção Civil dirigida a uma das construções do bairro do Segundo Torrão

 

A CMA garantiu à organização que todas as pessoas terão de entregar a documentação pedida e regularizar a sua situação, quer por motivos legais, mas também para receberem os apoios a que têm direito para o arrendamento. A Amnistia Internacional pede que todos os passos deste processo sejam comunicados de forma clara com os moradores, dando-lhes autonomia para a entrega dos dados e documentação em falta e não os obrigando a ceder os seus acessos aos portais digitais dos serviços da administração pública sem que informem previamente a razão para o fazerem e sem o consentimento da pessoa. A organização ressalva ainda que, no decorrer do processo, todas as pessoas devem ficar com uma cópia dos documentos por si assinados.

 “Estas pessoas foram discriminadas toda a sua vida e o acesso que têm à informação tem de ser sempre o mais adequado face à sua situação pessoal de vida. Os serviços públicos têm de apostar na proximidade às pessoas e em serem responsivos às suas situações específicas, relembra Pedro A. Neto.

 

A ação da Amnistia Internacional – Portugal

No bairro do Segundo Torrão, ficar sem casa não é só uma preocupação para os adultos, é também um receio presente na vida das crianças. Na Fábrica dos Sonhos, uma das suas paredes está preenchida com os “medos” escritos pelas crianças, onde se destacam as expressões “ficarem na rua” ou “ficar sem teto”. Para a Amnistia Internacional, a preocupação é a mesma e o desafio passa por assegurar que todas as pessoas veem cumprido o seu direito a uma habitação adequada, que deve ser respeitado e protegido por qualquer entidade governamental nacional ou local. Para que tal se verifique, estão proibidos os desalojamentos que não cumpram as normas previstas na lei, constituindo-se como desalojamentos forçados.

A parede dos medos na Fábrica dos Sonhos

 

Para as famílias visadas do Segundo Torrão, é fundamental estar garantida uma casa provisória, que cumpra os padrões internacionais de adequação, antes da data de demolição da casa atual, de forma que não se verifiquem desalojamentos forçados. Só assim estará protegido o direito à habitação adequada, consagrado em vários tratados de direitos humanos regionais e internacionais, por forma a que as famílias possam viver em segurança, paz e dignidade.

A Amnistia Internacional – Portugal continuará a acompanhar a situação das famílias do Bairro do Segundo Torrão, permanecendo atenta aos desenvolvimentos referentes ao realojamento, para que estejam de acordo com o respeito pelos dos direitos humanos destas pessoas, relembrando a CMA dos seus deveres na proteção dos mesmos. Recorda também a CMA que os moradores devem deter conhecimento quanto às vias jurídicas e administrativas para impugnar decisões e processos e também sobre o apoio jurídico disponível.

Pedro A. Neto sublinha que “sendo que o bairro do segundo torrão é constituído por habitações sem condições e em terreno privado que não pertence aos moradores, deve ser tido em consideração que estas pessoas ocuparam um terreno vazio e construíram pequenas habitações para que não ficassem sem abrigo com as suas famílias. Muitas destas famílias trabalham a tempo inteiro servindo a sociedade de que todos fazemos parte, mas mesmo assim não conseguem sair da situação de pobreza em que vivem”.

“deve ser tido em consideração que estas pessoas ocuparam um terreno vazio e construíram pequenas habitações para que não ficassem sem abrigo com as suas famílias. Muitas destas famílias trabalham a tempo inteiro servindo a sociedade de que todos fazemos parte, mas mesmo assim não conseguem sair da situação de pobreza em que vivem”

Pedro A. Neto

Os Estados são obrigados a respeitar, proteger e cumprir o direito à habitação adequada. Com a audiência a 25 de julho, a Amnistia Internacional – Portugal pretendeu apresentar as dúvidas e receios da população, instar a CMA a cumprir as suas obrigações em matéria de direitos humanos que previnam a ocorrência de desalojamentos forçados e fortalecer os mecanismos de comunicação com as famílias afetadas. É necessário um diálogo claro, transparente e credível. Por fim, reforçámos também a nossa disponibilidade para acompanhar a implementação de todo o processo, assegurando que a vida destas pessoas segue com dignidade”, conclui o responsável.

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Pelo direito de todas as pessoas a uma habitação condigna

Pelo direito de todas as pessoas a uma habitação condigna

Em Portugal, o direito à habitação ainda é uma realidade por cumprir.

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