26 Maio 2023

Foram realojadas cinco famílias que ainda permaneciam nas habitações construídas por cima da vala de escoamento que, segundo a Câmara Municipal, está em risco de ruir desde 2019. Oito meses depois das primeiras demolições, o local continua cheio de entulho. Uma situação que os moradores dizem estar a provocar infestações de ratazanas nas casas vizinhas.

 

A vida empilhada e embrulhada à espera. É difícil imaginar o que passa pela cabeça desta moradora, chamemos-lhe C., enquanto tenta, em contrarrelógio, ter tudo pronto para o realojamento desta quinta-feira no bairro do Segundo Torrão, na Trafaria, Almada.

“Entrem, entrem!”, vai dizendo. “Temos passado as últimas 24 horas a arrumar.” Na pequena sala, há sacos amontoados em cima dos móveis, como se no meio do caos a prioridade fosse a de deixar, pelo menos, o chão livre e desimpedido. Cá fora, a casa mal se distingue entre o entulho que, desde outubro do ano passado, permanece no local. Há muito pó e é inevitável trazê-lo nos pés ao entrar. Percebemos então o porquê das vassouras e da elevação dos pequenos montes de coisas: “É o que conseguimos fazer, estou muito cansada disto tudo”, confessa C..

A casa é uma das cinco, construídas em cima da vala de escoamento que atravessa o bairro, que sobreviveram às escavadoras do município há oito meses. Todas as outras habitações numa faixa de cerca de 100 metros foram deitadas abaixo. A resistência destes últimos moradores só foi possível graças a uma providência cautelar, interposta por dois advogados que, desde então, se desdobram no apoio jurídico a estas famílias.

A resistência destes últimos moradores só foi possível graças a uma providência cautelar, interposta por dois advogados que, desde então, se desdobram no apoio jurídico a estas famílias

Bairro do Segundo Torrão, 25 de maio de 2023. Local cheio de entulho desde outubro de 2022.

 

É pegar ou largar

São 9h da manhã, já se sente o calor desta primavera quente no bairro. Os funcionários da Câmara vão enchendo as carrinhas de mudanças. Há um horário a cumprir. Enquanto isso, alguns vizinhos apressam-se a tentar salvar o possível das casas antes que estas sejam esmagadas pelas escavadoras. Casquilhos, lâmpadas, janelas, maçanetas são pequenos tesouros para quem fica.

Alguns vizinhos apressam-se a tentar salvar o possível das casas antes que estas sejam esmagadas pelas escavadoras. Casquilhos, lâmpadas, janelas, maçanetas são pequenos tesouros para quem fica.

I., nome fictício, assiste à cena da própria vida sentada com o seu bebé de 20 dias no colo. As últimas semanas têm sido particularmente exigentes para a jovem mãe. É uma de 13 moradores abrangidos neste realojamento. Arrumou os móveis e os poucos pertences na véspera. “Foi tudo a correr”, conta. Visitou no último sábado o T2 para onde vai viver e diz não ter tido escolha. “Ou aceitava ou aceitava. A casa não tem condições, muito menos para o bebé. Estava tão suja…”, lamenta enquanto encolhe os ombros.

“Ou aceitava ou aceitava. A casa não tem condições, muito menos para o bebé. Estava tão suja”

Relato de uma moradora, I. (nome fictício)

Bairro do Segundo Torrão, 25 de maio de 2023. Carrinhas de mudanças.

 

Também C. só soube do realojamento dela e da filha, que é doente oncológica, no início da semana da mudança: “Ligou-me [a técnica da Câmara] às 11h da manhã de segunda-feira a dizer que ao meio-dia eu tinha que ir ver a [nova] casa.”

As duas habitações ficam na freguesia do Feijó e Laranjeiro, mas ao contrário da vizinha, a de C. tem apenas um quarto e uma sala. Segundo uma das técnicas da Câmara, apesar da casa estar registada nas finanças como T2, “os anteriores inquilinos deitaram abaixo a parede de um segundo quarto. Não podemos fazer nada”. Além da falta de espaço, os três lances de escada para chegar a este segundo andar, são o que mais preocupam a idosa e a filha, com graves problemas de saúde e mobilidade. A mesma funcionária tenta sossegar as duas mulheres e garante à Amnistia Internacional: “É uma solução temporária. Assim que houver outra casa disponível para este agregado, colocaremos a família lá”.

Há quem não se queixe das casas, mas a ansiedade por causa do realojamento está nos olhos de todos. As mudanças vão ser profundas e há duas famílias ainda a tentar lidar com o facto de terem de mudar para o concelho da Moita. O município de Almada vai assegurar o transporte das crianças para a escola até ao final deste ano letivo, mas no próximo a opção é serem transferidas. Incerto é também o futuro de duas pessoas que trabalham na Costa da Caparica. “Provavelmente, vão ter dificuldades em manter os empregos porque começam muito cedo às 7h30 da manhã, uma hora em que não há autocarros”, explica um dos advogados do grupo.

Depois de oito meses de silêncio, os moradores não entendem o motivo da Câmara Municipal de Almada ter avançado em menos de uma semana com o realojamento. Para os advogados “a Câmara não quer realojar as pessoas, quer demolir as casas. Há ainda mais três agregados sem nenhuma resposta e uma pessoa que, desde outubro, está em situação de sem-abrigo”. E justificam: “Há uma decisão política de “resolver a questão” até ao final do mês. As pessoas foram colocadas contra a parede para aceitar soluções que há oito meses não teriam aceitado.”

“As pessoas foram colocadas contra a parede para aceitar soluções que há oito meses não teriam aceitado”

Relato de um dos advogados

 

Porquê a pressa?

A pergunta é repetida por vários moradores do bairro. O curto espaço de tempo entre a comunicação e o realojamento fez com que as famílias não conseguissem tratar dos contratos da luz, água ou gás. Sem esquentador e contadores instalados, não sabem quantos dias terão de aguardar para terem estes serviços a funcionar nas novas casas. Segundo os advogados, “há quem tenha tido de faltar ao trabalho para tentar conseguir documentos e resolver estas questões. A justificação das técnicas da Câmara é que a empresa de mudanças apenas estava disponível nesta quinta-feira”.

A Amnistia Internacional questionou o município de Almada sobre o timing escolhido para concluir o processo de demolições das casas construídas sob a vala de escoamento. A Câmara não quis responder. Ao contrário do que aconteceu no primeiro realojamento, não houve um período de transição primeiro para pousadas ou hotéis até que as famílias pudessem avaliar as opções e organizar a mudança.

De acordo com os números avançados pela Câmara, em outubro foram realojados 51 agregados num processo acompanhado e documentado pela Amnistia Internacional. A conclusão foi, contudo, a de que o município não cumpriu com as boas práticas recomendadas pela Amnistia Internacional para a prevenção de desalojamentos forçados. Desta vez, a decisão foi comunicada ao executivo camarário em reunião ordinária na última segunda-feira, 22 de maio. A semana ainda não terminou, mas as pessoas foram retiradas e as casas demolidas.

 

Paredes meias com o entulho

Se a rapidez de ação no terreno foi grande, pouco mudou na área onde aconteceram as demolições há oito meses. Há muito entulho e também há mais lixo. Os vizinhos falam de várias infestações na zona. Para T., nome fictício, o perigo é real, e já se nota, especialmente para as crianças do bairro. “Tenho a casa cheia de ratazanas que andam à volta dos meus filhos”, conta à Amnistia Internacional. Este morador diz ainda estar bastante preocupado com as condições de salubridade da casa onde vive com três crianças de quatro, sete e dez anos.

“Tenho a casa cheia de ratazanas que andam à volta dos meus filhos”

Relato de uma moradora, T. (nome fictício)

A Amnistia Internacional também questionou o município sobre o motivo de a área não ter sido ainda limpa. Mais uma vez, sem resposta.

 

Enquadramento

Em junho de 2022, várias famílias foram notificadas pela Câmara Municipal de Almada de que teriam de sair do local onde habitam dado o risco iminente de colapso de uma vala de drenagem de águas. A saída teria de acontecer até ao final do verão de 2022 e antes do início do ano letivo, para que as crianças do bairro não tivessem de mudar de escola durante o período de estudos.

No entanto, entre junho e setembro, os realojamentos foram incipientes, originando-se tumultos e tensões entre a população e a Câmara Municipal de Almada. Com o aproximar do fim do prazo, tornou-se constante a presença de escavadoras e carrinhas de mudanças no bairro.

As demolições começaram ainda com várias famílias sem proposta para o realojamento. Os seus pertences foram levados para um armazém e as pessoas conduzidas para unidades hoteleiras ou parques de campismo. Outras famílias que viviam sobre a mesma vala não foram notificadas. Apesar de, no aviso dado em junho, ter sido dada a garantia de que todas as famílias seriam realojadas. A gestão e condução de todo o processo foi feita de forma bastante confusa e com informação pouco clara o que alarmou a população e afetou sobretudo mulheres, crianças e pessoas idosas.

Vivem atualmente no bairro do Segundo Torrão cerca de três mil pessoas.

Artigos Relacionados