13 Setembro 2017

Mais de quatro anos passados desde que as Nações Unidas votaram a aprovação do tratado histórico para regular o comércio internacional de armamento, grandes exportadores como o Reino Unido e a França estão efetivamente a ignorar as obrigações a que se vincularam, continuando a fornecer armas até em contextos em que existe o risco real de essas armas contribuírem para graves violações de direitos humanos, avalia a Amnistia Internacional.

  • Diplomatas reunidos em Genebra para debater o Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais
  • Vários países podem estar a violar as obrigações a que se vincularam firmando acordos imprudentes
  • Reino Unido, França e Itália estão entre os países que fornecem armas a governos que cometem abusos de direitos humanos

Diplomatas oriundos de todo o mundo estão reunidos esta semana em Genebra, desde 11 até 15 de setembro, na 3ª Conferência de Estados-parte do Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais (TCA, ATT na sigla em inglês). O TCA determina uma série de proibições com o objetivo de travar transferências internacionais de armas quando se sabe que serão usadas em crimes de guerra ou em situações nas quais existe o risco determinante de que possam ser utilizadas para cometer ou facilitar que sejam cometidas graves violações de direitos humanos.

“Cerca de meio milhão de pessoas é morta todos os anos por armas de fogo, e milhões mais ficam encurraladas em conflitos brutais alimentados por imprudentes vendas de armamento. O Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais trouxe a promessa de salvar inúmeras vidas, freando as rédeas desta indústria maciça e envolta em secretismo, mas, atualmente, a fraca concretização dos seus termos e a falta de transparência estão a ameaçar miná-lo”, explica o chefe do gabinete de Controlo de Armas e Direitos Humanos da Amnistia Internacional, James Lynch.

Este perito da organização de direitos humanos frisa a necessidade de “os Estados-parte [do TCA] reforçarem os compromissos que assumiram ao abrigo do tratado, e de se responsabilizarem uns aos outros por transferências de armas imprudentes e potencialmente ilegais”. “Não há tempo a perder – pessoas no mundo inteiro estão a ser mortas, mutiladas e aterrorizadas por armamento que não devia sequer ter sido fornecido”, exorta.

Ignorar as obrigações assumidas

Ao abrigo do TCA, as exportações de armas convencionais não podem ser feitas se existir um risco determinante de que possam contribuir para graves violações da legislação internacional de direitos humanos ou da lei humanitária. A Amnistia Internacional tem documentado e destacado numerosos casos em que os Estados-parte terão violado as suas obrigações, de acordo com o tratado.

Por exemplo, muitos Estados-parte, como a França, o Reino Unido e a Itália, forneceram uma série de armas convencionais ao Egito que podiam ser utilizadas na repressão interna, incluindo armas ligeiras e munições. E fizeram-no apesar da violenta opressão do Governo egípcio sobre a dissidência, na qual milhares de manifestantes foram mortos, torturados ou feridos.

De acordo com o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), entre 2012 e 2016, período durante o qual se registou uma repressão sem precedentes no Egito, 80% das importações das armas pesadas convencionais tiveram origem nos Estados Unidos, país que assinou o TCA, ou em França.

Vários governos continuaram também a fazer fluir armas para a Arábia Saudita, mesmo face às provas credíveis e esmagadoras de graves violações da lei humanitária no Iémen. Desde o início do conflito armado neste país em 2015 e durante o qual a coligação militar liderada pela Arábia Saudita tem bombardeado escolas, hospitais e outras infraestruturas civis, o Reino Unido aprovou exportações de armamento no valor de 3,7 mil milhões de libras (cerca de 4,1 mil milhões de euros) para a Arábia Saudita.

Dados do SIPRI indicam que a Arábia Saudita é o maior parceiro comercial dos Estados Unidos e do Reino Unido em armas pesadas convencionais. As exportações para a Arábia Saudita constituem 13% do total de fornecimentos militares externos feitos pelos Estados Unidos e 48% das exportações de armas do Reino Unido, no período de 2012 a 2016.

As importações de armas convencionais feitas pela Arábia Saudita nesse mesmo período tiveram origem, em quase 80%, nos Estados Unidos e Reino Unido.

Em maio passado, os Estados Unidos firmaram um acordo de potenciais vendas de armas à Arábia Saudita no valor de 110 mil milhões de dólares (cerca de 91,8 mil milhões de euros). Aqui se incluem 4,6 mil milhões de dólares em munições guiadas ar-terra – no total de 104 000 bombas do tipo que tem sido usado frequentemente na guerra no Iémen. Fornecimentos recentes, concluídos em 2015 e 2016, incluem 13 726 mísseis antitanque, 3 870 bombas guiadas, 60 helicópteros de combate, 1 279 veículos armados e quatro aeronaves de combate ao solo.

Ainda no período de 2015-16, o Reino Unido entregou 20 caças de combate ao solo Typhoon Block 20 no valor de 1,15 mil milhões de dólares, 2 400 bombas guiadas do tipo Paveway no valor de 48 milhões de dólares, 50 mísseis-cruzeiro Storm Shadow/SCALP no valor de 70 milhões de dólares e dois sistemas de abastecimento aéreo de combustível no valor de 20 milhões de dólares.

Segundo dados do SIPRI, outros importantes fornecedores de armamento pesado à Arábia Saudita desde o início do conflito no Iémen são a França (218 milhões de dólares), a Espanha (196 milhões de dólares), a Suíça (186 milhões de dólares), a Itália (154 milhões de dólares), o Canadá (115 milhões de dólares) e a Turquia (91 milhões de dólares).

A transparência salva vidas

Ao abrigo do TCA, os Estados-parte devem apresentar relatórios anuais sobre as suas importações e exportações de armas, o que é crucial para ser conhecida a dimensão e as características do comércio internacional de armamento, desde há muito envolto em secretismo.

Como o TCA não está dotado de mecanismo independente de verificação, no sentido de garantir que são cumpridas as regras sobre as transferências de armas, estes relatórios públicos anuais acerca das importações e exportações são vitais para possibilitar o escrutínio da conduta dos governos pelos parlamentos, órgãos de comunicação social e sociedade civil.

Porém, até agora apenas 48 dos 75 Estados-parte do TCA apresentaram relatório anual sobre as suas importações e exportações de armas em 2016. E há 13 países, incluindo a Islândia e a Nigéria, que ainda não submeteram o relatório referente às importações e exportações de armamento em 2015.

Acresce que muitos dos relatórios que foram apresentados estão repletos de inconsistências e lacunas:

  • Vários países deixaram em branco seções inteiras nos seus relatórios, sem nenhuma explicação. A África do Sul, por exemplo, não apresentou informações sobre as importações de armas ligeiras e de pequeno calibre. O Reino Unido deixou em branco toda a seção pertinente às suas importações de armamento.
  • Alguns países não forneceram dados sobre o número de armas transferidas e/ou o seu valor comercial. A Áustria, por exemplo, não incluiu no seu relatório informações sobre as importações de armas convencionais e a França não reportou as suas importações de armamento pesado.
  • Vários países, incluindo a Bósnia-Herzegovina, a Dinamarca, Estónia e a Macedónia, misturou dados em algumas das importações e exportações ou agregou dados de diferentes países importadores, tornando impossível identificar quantas armas foram enviadas para cada destinatário.

“Um dos principais objetivos do TCA é fazer com que o comércio de armas se torne mais transparente; porém, os países continuam a não revelar informação crucial sobre a quem estão a vender armas, assim como sobre quantas armas e de que tipo estão a importar”, sublinha James Lynch.

O perito da Amnistia internacional em Controlo de Armas e Direitos Humanos aponta que “esta não é uma simples preocupação administrativa”. “O facto de que alguns Estados escolhem deixar tão grandes lacunas, ou que decidem não apresentar os relatórios, inspira dúvidas perturbadoras sobre o que estão a tentar esconder”, prossegue.

“Com os fornecimentos de armas pesadas convencionais no maior volume desde o fim da Guerra Fria, e com o armamento a fluir de forma contínua para zonas de conflito e países imersos em repressão interna, os Estados-parte do TCA têm de se lembrar do propósito deste tratado – o de reduzir o sofrimento humano. Têm, por isso, de usar a reunião desta semana como uma oportunidade para garantir que todos os exportadores e todos os importadores são responsabilizados com esse fim em vista”, exorta James Lynch.

20 anos de campanha pela regulamentação da venda de armas

Ao fim de mais de 20 anos de intensa campanha feita pela Amnistia Internacional e organizações não-governamentais parceiras na Coligação para o Controlo de Armas, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou expressivamente o TCA, em abril de 2013. O tratado entrou em vigor a 24 de dezembro de 2014.

O TCA é um tratado global que definiu, pela primeira vez, uma série de proibições com o objetivo de refrear as transferências internacionais entre Estados de armas, munições e dispositivos relacionados quando se sabe que serão usados para cometer ou facilitar que sejam cometidos genocídios, crimes contra a humanidade ou crimes de guerra. Os Estados-parte do TCA estão vinculados a procederem a avaliações do risco “determinante” de que potenciais exportações de armamento podem contribuir para graves violações da legislação internacional de direitos humanos e da lei humanitária.

São 130 os países que assinaram o tratado até agora, tendo 92 deles já procedido à sua ratificação, incluindo cinco que integram o top dez de exportadores mundiais de armas: a França, a Alemanha, Itália, Espanha e Reino Unido. Contudo, países como a Rússia e a China, muito significativos no comércio global de armamento, não integraram o TCA. Os Estados Unidos assinaram mas não ratificaram. Ao assinarem este tratado, os governos concordam em não agirem de forma que mine os objetivos e propósito do TCA.

  • 78%

    78%

    Seis países são responsáveis pela produção de 78% do armamento mundial: China, França, Alemanha, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos.
  • 12 mil milhões

    12 mil milhões

    São produzidas 12 mil milhões de balas todos os anos – o que chega, praticamente, para matar todos os habitantes do mundo duas vezes.
  • 875 milhões

    875 milhões

    Atualmente existem 875 milhões de armas de fogo.

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