18 Fevereiro 2022

Combatentes afiliados à Frente Popular de Libertação do Povo de Tigray (FPLT) assassinaram dezenas de pessoas de forma deliberada, violaram dezenas de mulheres e raparigas em grupo – algumas como apenas 14 anos – e assaltaram propriedades privadas e públicas em duas áreas da região de Amhara, no norte da Etiópia, expôs a Amnistia Internacional num novo relatório.

As atrocidades foram perpetradas no final de agosto e início de setembro de 2021, em Chenna, Kobo, e arredores de ambas as áreas, pouco depois das forças de Tigray terem assumido o controlo destes territórios em julho. Os ataques foram, na sua maioria, caraterizados por atos adicionais de violência e brutalidade, ameaças de morte e uso de insultos étnicos e comentários depreciativos. Em Kobo, as forças de Tigray atacaram a população civil, aparentemente em retaliação devido à crescente resistência das milícias locais e de residentes armados.

“As forças de Tigray mostraram um total desrespeito pelas normas fundamentais do Direito Internacional Humanitário que todas as partes em conflito devem seguir. Desde julho de 2021, estão a surgir provas de que estas forças estão a cometer crimes de guerra e possíveis crimes contra a humanidade em áreas sob o seu controlo na região de Amhara. Isto inclui repetidos incidentes de violação generalizada, assassinatos e roubos, mesmo de hospitais”, esclareceu Sarah Jackson, diretora regional adjunta da Amnistia Internacional para a África Oriental, Corno de África e Grandes Lagos.

“A liderança da FPLT deve pôr um fim imediato às atrocidades documentadas e remover das suas forças qualquer pessoa suspeita do envolvimento em tais crimes”, afirma ainda Sarah Jackson.

“Desde julho de 2021, estão a surgir provas de que estas forças estão a cometer crimes de guerra e possíveis crimes contra a humanidade em áreas sob o seu controlo na região de Amhara”

Sarah Jackson

 

Assassinatos em Kobo

Em Kobo, uma cidade no nordeste da região de Amhara, os combatentes de Tigray executaram civis desarmados, aparentemente em vingança por perdas nas suas fileiras às mãos das milícias Amhara e de agricultores armados. A Amnistia Internacional entrevistou 27 testemunhas e sobreviventes, algumas das quais ajudaram a recolher e a enterrar os corpos.

Dez residentes de Kobo partilharam à Amnistia Internacional que, a 9 de setembro de 2021, os combatentes assassinaram os seus parentes e vizinhos no exterior das suas casas.

“Primeiro, atingiram o meu irmão Taddese, que morreu no local. O meu outro irmão e cunhado tentaram afastar-se, mas foram ambos baleados nas costas e mortos. Ainda me atingiram no ombro esquerdo. Tive de ficar deitado, a fingir que estava morto”, referiu um sobrevivente à Amnistia Internacional.

Doze outros residentes de Kobo relataram que encontraram os corpos de residentes e trabalhadores locais que tinham sido executados – baleados na cabeça, no peito ou nas costas, e alguns com as mãos atadas atrás das costas.

“Os primeiros corpos que vimos estavam junto da vedação da escola, estendidos nas suas roupas interiores e virados para a mesma. Outros três corpos encontravam-se no complexo da escola. A maior parte das pessoas foi baleada na cabeça, alguns nas costas. Os que foram atingidos na cabeça já não puderam ser reconhecidos”, afirmou um residente.

“A maior parte das pessoas foi baleada na cabeça, alguns nas costas. Os que foram atingidos na cabeça já não puderam ser reconhecidos”

Testemunho de um residente de Kobo

A análise de imagens de satélite pelo Laboratório de Evidências de Crise da Amnistia Internacional descobriu indícios de novos locais de enterro, nos terrenos das igrejas de St. George e de St. Michael – onde os residentes tinham referido que se encontravam os corpos de todos os que perderam a vida a 9 de setembro.

Os assassinatos deliberados de civis – ou de combatentes capturados, rendidos ou feridos – constituem crimes de guerra e são ainda possíveis crimes contra a humanidade.

 

Violência sexual em Chenna

A partir de julho de 2021, nos arredores e em Chenna – uma aldeia a norte de Bahir Dar, a capital da região de Amhara – as forças de Tigray violaram dezenas de mulheres e raparigas, algumas com apenas 14 anos. Muitas vezes, as violações ocorriam nas próprias casas das vítimas, depois de os combatentes as obrigarem a cozinhar para si mesmos.

A violência sexual foi acompanhada por níveis chocantes de brutalidade, incluindo espancamentos, ameaças de morte, e insultos com base na etnia. Das 30 sobreviventes, catorze que foram entrevistadas pela Amnistia Internacional afirmaram ter sido violadas em grupo, algumas em frente aos próprios filhos. Sete eram raparigas com menos de 18 anos.

Lucy, uma estudante do 7º ano com 14 anos, e a sua mãe foram ambas violadas por combatentes na sua casa em Did-Bahr: “Eu estava em casa com a minha mãe e avó, quando dois jovens com espingardas chegaram, por volta das 11h. Um deles tinha farda militar vestida e o outro roupas civis. Falavam uma mistura de tigrínia e algum amárico e disseram-nos ‘As nossas famílias foram violadas, agora é a nossa vez de vos violarmos.’ Um deles violou-me no pátio e o outro violou a minha mãe no interior da casa. A minha mãe está muito doente agora, deprimida e desesperada. Não conseguimos falar sobre o que aconteceu, é impossível.”

“A minha mãe está muito doente agora, deprimida e desesperada. Não conseguimos falar sobre o que aconteceu, é impossível”

Testemunho de uma vítima

Salam, uma mulher de 29 anos, relatou como foi violada em grupo durante 15 horas, depois de os combatentes fecharem os seus pais, mais idosos, num quarto separado.

Muitas das sobreviventes sofreram danos físicos e psicológicos graves e duradouros. Dez permaneceram hospitalizadas três meses após terem sido violadas. Os médicos que lhes prestaram cuidados de saúde partilharam à Amnistia Internacional que duas delas tiveram de ser tratadas a lacerações, provavelmente causadas pela introdução de baionetas de espingardas nos seus genitais.

A Amnistia Internacional tinha documentado previamente padrões semelhantes de combatentes de Tigray que violaram mulheres e raparigas Amhara em Nifas Mewcha, e recebeu relatos credíveis de violação de outras áreas da região de Amhara. Estas atrocidades constituem crimes de guerra e, potencialmente, crimes contra a humanidade.

 

Pilhagem de propriedade civil

Tanto em Kobo como em Chenna, os residentes relataram à Amnistia Internacional que os combatentes de Tigray assaltaram as suas casas e lojas, roubando e vandalizando propriedades públicas, como clínicas médicas e escolas.

Os roubos e os danos em instalações médicas tornou impossível a prestação de cuidados médicos aos sobreviventes de violação e outros residentes necessitados, forçando-os a esperar até poderem chegar aos hospitais em Debark, Gondar e Bahir Dar, semanas mais tarde. Para os sobreviventes de violação, foi demasiado tarde para receber cuidados cruciais, alguns dos quais têm de ser administrados no prazo de 72 horas pós-violação.

“Estas atrocidades fazem regressar a necessidade de ação célere por parte da comunidade internacional para investigar abusos de todas as partes, para responsabilizar os responsáveis, e para garantir que os sobreviventes conseguem concretizar os seus direitos”, afirma Sarah Jackson.

“Durante demasiado tempo, a comunidade Internacional falhou às vítimas e sobreviventes de crimes à luz do direito Internacional na Etiópia. As Nações Unidas e a União Africana devem implementar equipas de investigação relevantes para a região. Deve ser ainda permitido à Comissão Internacional de Peritos de Direitos Humanos sobre a Etiópia, estabelecida pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em dezembro, que inicie o seu trabalho, sendo-lhe concedido acesso ao país tão cedo quanto possível.”

Durante demasiado tempo, a comunidade Internacional falhou às vítimas e sobreviventes de crimes à luz do direito Internacional na Etiópia

Sarah Jackson

 

Contexto

O conflito em Tigray iniciou-se em novembro de 2020 e alastrou-se a outras regiões do norte da Etiópia a partir de julho de 2021. A Amnistia Internacional documentou uma múltiplas violações por todas as partes em conflito, como massacres, execuções, violência sexual e com base no género e detenções arbitrárias pelas forças do governo etíope e milícias aliadas, e por forças eritreias que atuam ao seu lado.

Para descarregar imagens de satélite e evidências fotográficas exclusivas que confirmam os testemunhos sobre os locais de enterro e pilhagem em Kobo, pode aceder aqui.

 

Recursos

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