25 Setembro 2023

A Amnistia Internacional apela para que as Forças Armadas Árabes da Líbia (LAAF) – um grupo armado em controlo de facto do leste da Líbia, incluindo a cidade de Derna que foi devastada pelas cheias – levantem imediatamente todas as restrições indevidas impostas aos meios de comunicação social e procedam à facilitação de ajuda humanitária a todas as comunidades afetadas.

No dia 18 de setembro, milhares de residentes e trabalhadores voluntários de resgate e salvamento manifestaram-se na Praça Sahaba, exigindo responsabilidades pela devastadora perda de vidas causada pelas inundações que se seguiram ao rebentamento de duas barragens na cidade no dia 11 de setembro. Os manifestantes pediram ainda apoio para os esforços de reconstrução e reabilitação, bem como a demissão dos políticos locais e nacionais. De acordo com testemunhas ouvidas pela Amnistia Internacional, existiram igualmente detenções de críticos e manifestantes por parte da LAAF, no meio dos seus esforços para controlar o acesso dos meios de comunicação social. Após estes protestos, a LAAF aumentou as restrições impostas aos jornalistas.

“A perda de vidas e a devastação em Derna – e em grande parte da Líbia – são uma tragédia inimaginável, com milhares de pessoas desaparecidas e dezenas de milhares deslocadas. Bairros e famílias inteiras foram arrastadas para o mar. No entanto, em vez de facilitar o acesso humanitário às comunidades atingidas, a LAAF está  silenciar as críticas, reprimindo a sociedade civil e fugindo às responsabilidades“, revela Diana Eltahawy, diretora regional adjunta da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.

“Em vez de facilitar o acesso humanitário às comunidades atingidas, a LAAF está  silenciar as críticas, reprimindo a sociedade civil e fugindo às responsabilidades”

Diana Eltahawy

“As autoridades líbias e as pessoas que controlam de facto as zonas atingidas devem garantir que os direitos humanos estão no centro da resposta à crise e abster-se de represálias contra as vozes críticas. Em tempos de crise, uma sociedade civil vibrante e meios de comunicação independentes são vitais para garantir os direitos dos sobreviventes à vida, à habitação segura, à alimentação, à saúde e ao acesso à informação”, sublinha Diana Eltahawy.

A Amnistia Internacional falou com residentes de Derna, jornalistas, trabalhadores humanitários, atores da sociedade civil e médicos envolvidos na prestação de auxílio. Foram adquiridas informações adicionais junto de um funcionário da LAAF. Ainda assim, a obtenção de informações sobre a situação em Derna tem sido dificultada por perturbações nas redes de Internet e de telecomunicações.   

 

Vídeo da destruição provocada pelas cheias na Líbia. Créditos a Amnistia Internacional (legenda em inglês)

 

Os receios de que a LAAF estivesse a responder à crise com as suas habituais táticas repressivas cresceram após a detenção de um criador de conteúdos, Jamal El Gomati, que estava a fazer uma reportagem em direto de Derna horas após as inundações e que acusou publicamente os funcionários de corrupção e de responsabilidade pela catástrofe. Por sua vez, ativistas dos direitos humanos referiram à Amnistia Internacional que vários homens armados à paisana, que se crê pertencerem ao grupo armado da Agência de Segurança Interna afiliada à LAAF, prenderam Jamal El Gomati na sua cidade natal (Shahhat, nordeste da Líbia) a 17 de setembro. Jamal El Gomati desapareceu durante três dias, antes de ser libertado a 19 de setembro na sequência de intervenções de um destacado comandante da LAAF.

Desde o início da crise, os jornalistas relataram a necessidade de autorizações de segurança e outras restrições de acesso, bem como a interferência no seu trabalho por parte de membros da LAAF. Dois jornalistas líbios partilharam à Amnistia Internacional que foram detidos por funcionários locais e interrogados a 14 de setembro, antes de serem obrigados a abandonar Derna. A 16 de setembro, um ativista da cidade foi detido depois de ter dado uma entrevista sobre a situação na cidade a um canal considerado opositor da LAAF, segundo os seus familiares.

Após as manifestações que ocorreram em Derna, a 18 de setembro, a LAAF ordenou aos jornalistas que abandonassem a cidade, revertendo a sua decisão no dia seguinte, mas dando instruções aos restantes jornalistas para não se aproximarem das equipas de salvamento. Os jornalistas referiram ter sido sistematicamente seguidos por agentes militares da LAAF e testemunharam intérpretes a quem estes funcionários pediram para não traduzirem conteúdos que criticassem as autoridades.

Um porta-voz da ONU relatou aos meios de comunicação social, a 19 de setembro, que uma das suas equipas humanitárias “não estava autorizada a prosseguir” para Derna. No entanto, este mesmo porta-voz confirmou que as equipas de salvamento e os trabalhadores humanitários presentes na cidade estavam autorizados a prosseguir o seu trabalho. Por outro lado, a Amnistia Internacional recebeu informações sobre atrasos na chegada da ajuda humanitária a algumas zonas afetadas, em parte devido à multiplicidade de postos de controlo estabelecidos pela LAAF. Algumas equipas médicas da parte ocidental da Líbia e pelo menos uma equipa internacional de salvamento receberam instruções para partir.

 

Apelos a um inquérito independente

Na sequência das inundações, as reivindicações para que exista responsabilização estão a crescer entre os sobreviventes e os defensores dos direitos humanos, alimentados por anos de má governação, de má gestão por parte de governos rivais e da liberdade de ação de milícias e grupos armados que privilegiam os seus próprios interesses em detrimento da vida e do bem-estar dos civis na Líbia.

Ainda que o procurador de Tripoli tenha visitado Derna e anunciado a realização de investigações, o clima de impunidade que prevalece no país suscita sérias preocupações quanto à capacidade e vontade do sistema judicial líbio de garantir a verdade e a justiça.

“Temos apelado constantemente à criação de um mecanismo de investigação internacional independente sobre a situação dos direitos humanos na Líbia. Na ausência de quaisquer perspetivas significativas de responsabilização a nível nacional, é urgente apurar os factos e as circunstâncias que rodearam a impressionante perda de vidas e a destruição na sequência da tempestade Daniel. Isto inclui examinar se as autoridades líbias e aqueles que controlam de facto as áreas atingidas não protegeram os direitos da população à vida, à saúde e a outros direitos humanos”, acrecenta Diana Eltahawy.

Desde o conflito armado de 2011, comandantes influentes e membros de milícias e de grupos armados razoavelmente suspeitos de terem cometido crimes ao abrigo do direito internacional não só usufruem de total impunidade, como também foram integrados em instituições estatais e receberam financiamento estatal.  A violenta resposta da LAAF às manifestações e às críticas expõe ainda mais a sua falta de vontade de garantir a verdade, a justiça e a reparação das vítimas.

 

Contexto

A Líbia está mergulhada num conflito armado e em divisões políticas desde 2011, com governos paralelos apoiados por milícias e grupos armados que, apesar de reivindicar legitimidade não assumem responsabilidade. A LAAF controla e exerce funções semelhantes às do governo em Benghazi – a segunda maior cidade da Líbia – e em vastas áreas do leste e sul do país. A utilização de tácticas brutais pela LAAF para sufocar a dissidência, restringir a sociedade civil independente e manter o seu controlo férreo do poder está bem documentada.

No dia 11 de setembro, foram atingidas Derna, Sousse, Bayada e outras áreas da Montanha Verde, depois de a tempestade Daniel (um ciclone de tipo tropical mediterrânico conhecido como medicane) ter provocado o colapso de duas barragens na cidade de Derna, que não eram sujeitas a manutenção há décadas. A Amnistia Internacional apelou a uma mobilização global imediata para apoiar os esforços de salvamento e reabilitação em todas as comunidades afetadas, sem discriminação, prestando especial atenção aos grupos de risco, como refugiados, migrantes, deslocados internos e outros que enfrentam formas múltiplas e intersetoriais de discriminação.

A LAAF, os grupos armados e as forças de segurança a ela associados impediram centenas de pessoas da minoria tawerghan de regressar a um campo de deslocados internos de Benghazi, onde viviam há anos e de onde tinham sido retirados a 10 de setembro, antes da tempestade. Segundo relatos de ativistas locais, outros residentes foram autorizados a regressar às suas casas na mesma zona.

 

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